Laura
chega acompanhada de Alice, 6 anos. Parece sem jeito. A menina é falante,
opinativa, gosta de chamar a atenção para si – sabe que é uma graça, enfim.
Laura fica envergonhada, pede para Alice ficar quieta. “Amanhã ela não vem
mais, professora!” Sei
que um dos fatores que permitiu à mãe participar do Ateliê de Comédia à noite
foi levar a filha consigo. Néia e Jose levaram Kauane e Daniele, as filhas de 11 anos. “Laura – eu disse – Alice vem amanhã e em todos os
outros dias. Os filhos não podem ser impedimento para as nossas realizações”.
Milena e Rafaela, as filhas já moças de Maira, também se juntaram a nós por algumas
noites e, claro, escreveram.
Parte do grupo que compareceu aos encontros do Ateliê de Comédia Sesc Poconé - MT |
“No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: ‘eu escuto a cor dos passarinho’.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo,
ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de
fazer
nascimentos –
O verbo tem que pegar delírios.”
Manoel de Barros
Eu diria que,
da mesma forma, na comédia o verbo pega delírios. E mais: pega delírios um
Ateliê de Comédia que viaja a Poconé.
Estava
com saudade desse tema. Os projetos que conduzo, em sua maioria, estão voltados
à memória ou à dramaturgia contemporânea. A especificidade do gênero seria um estímulo
a reler peças e a retomar os estudos teóricos, a passar novamente os olhos pela
História do Teatro. Fiz a proposta e Josenira, a coordenadora da unidade,
aprovou.
Cheguei à
simpática Poconé, o portal do Pantanal matogrossense, com o projeto debaixo do
braço, uma carreada de livros e uma serie de exercícios que desaguariam em
textos e cenas. Acontece que...
Praça central de Poconé - MT (Foto: Adélia Nicolete) |
...um
dos pressupostos mais caros dos Ateliês de Dramaturgia, conforme descrevo em
minha tese de doutorado, é o contato com o grupo, o espaço, o entorno e tudo o
que possa contribuir para o desenvolvimento da proposta. Foi assim com o Ateliê
de Memórias do Recife e a dramaturgia do Mercado de São José; com o Ateliê da
Fainc e a dramaturgia do calçadão de Santo André e a obra de Luiz Sacilotto; com o Ateliê da Funsai pelas
ruas do Ipiranga num trabalho de intervenções poéticas, com o Ateliê no Galpão Cine Horto, em BH, e a escrita a partir de obras do artista plástico mineiro Eymard Brandão, entre outras vivências. Não poderia ser diferente com os poconeanos. Assim, o meu projeto tão caro... mudou.
Para começar, é impossível desligar o Mato Grosso da figura de Manoel de Barros. A biblioteca em que trabalhamos leva seu nome. Embora não se considerasse um poeta pantaneiro, o imaginário que serviu às suas criações e que ele tratou de compartilhar conosco, carrega muito daquela região. Seus textos foram, portanto, um rico manancial a dialogar com a comédia e a nossa escrita, o que pode ser verificado nessa descrição de um Andarilho - complemento verbal do Louco do tarô, a meu ver, uma importante figura a ser considerada num estudo sobre o riso.
"Os andarilhos são como Tirésias sem Sófocles. São sábios sem instrução, sem Aristóteles. São poetas que não fazem versos, mas se fazem videntes. Conheci um andarilho na minha infância. É nele que penso quando uso esses sers de personagem. Era o João Sapé. Andava pelo Pantanal. Nunca se sabe de onde chegava. Com as pernas comia léguas. Certa vez pediu quatro pedaços de couro cru a meu pai. Fez uma mala com alças.
Jogava a mala nas costas e ia pelas fazendas. Tinha panela, caneca, pratos,
rede, coberta, fósforo, trouxa de mate e um parelho de roupa. Chamavam para ir
embora: botava a casa nas costas e ia. Tinha 12 cachorros. Parava muito na
fazenda do meu pai. Eu teria cinco anos quando o conheci. Ouvia a prosa dele no
galpão até escurecer. Ele não tinha solidão por dentro só por fora. Na estrada
os cachorros pegavam caça para ele. Ouvi-lo era um deslumbramento para mim. Era
um vidente. Era um poeta. Era um fascínio para os meus cinco anos. Conhecia a
voz das pedras e do Sol. Se você é um homem, você sabe a dor do homem - ele
dizia. E se você é uma árvore você sabe a dor da árvore. Ele era a natureza."
Assim,
começamos por pegar delírios ao pegarmos como parceiro o poeta.
Um outro fator que condicionou a mudança de boa parte da
rota já traçada foi o perfil do grupo. Apenas três participantes já tinham
feito algum curso ou oficina de teatro e, portanto, conheciam minimamente a
estrutura dramatúrgica escrita ou encenada. As demais eram, em sua maioria,
professoras da rede pública, estudantes de Pedagogia ou, no caso das crianças e
jovens, acompanhantes dispostas a escrever, inclusive a pré-letrada Alice. Mudança de percurso à
vista! É hora de matar a saudade de outro tipo de trabalho, o de iniciação
teatral.
Dinâmicas e jogos com vistas à cena e à sua dramaturgia |
O congraçamento, a celebração e a festa característicos dos
rituais que deram origem à comédia, puderam ser relembrados por meio de jogos
de integração e de estímulo à cumplicidade do grupo. A partir do levantamento
de fatores geradores de riso durante as práticas, pudemos trabalhar tanto a origem
quanto os fundamentos cômicos. A ideia era seduzir para o teatro, criar
situações em que a dramaturgia verbal fosse uma decorrência do exercício
cênico.
Grupo ensaia uma cena gerada pelo jogo |
Grupo se prepara para apresentar |
Equipe planeja a cena a ser apresentada |
Últimos retoques antes da apresentação |
Do plano original, restavam a minha preparação, os meus estudos. Na verdade, quem assumiu a condução do trabalho foi a professora de Teatro da graduação em Artes Cênicas, foi a Adélia que, nos anos 1990, plantou a semente do que viriam a ser os Ateliês de Dramaturgia. Não é difícil imaginar o meu prazer ao
recriar cada encontro, colocar-me aberta à interferência do grupo e mais, à
interferência do acaso. Falo dos
Mascarados de Poconé.
Trceho de apresentação dos Mascarados de Poconé... |
... na E.E. Frei Carlos Vallet - Poconé |
Trata-se de uma manifestação cultural
típica da cidade, dançada apenas por homens e meninos e que se apresenta
oficialmente nos dias de São Benedito, de Nossa Senhora do Rosário e na festa
do Divino Espírito Santo. No restante do ano, o grupo cuida de ensaiar, de criar
e manter o figurino e os adereços e de levar a dança a outras cidades, em
instituições e eventos, a fim de divulgá-la e preservá-la.* O fato é que topei por acaso com uma
apresentação e pude conferir pessoalmente o ritual que remonta ao século 18 e, assim,
estabelecer mais uma conexão entre o Ateliê e o contexto local.
A festa, o culto às divindades, as
máscaras, o travestismo, o coro, a música e a dança, presentes no germe da comédia,
resistem ali mesmo em Poconé, no cotidiano dos escrevedores. Serviram de exemplo, uma ponte a nos levar direto à Pré-História.
Máscara confeccionada em espaço do grupo no Centro Cultural de Poconé |
Traje feminino decorado pelo próprio dançarino |
Outros elementos a renderem discussão foram
o linguajar e o sotaque poconeanos. Existe um modo de falar típico da cidade -
algo que aos meus ouvidos soou como uma mistura do gaúcho com o caipira
paulista. A população letrada, caso do grupo, vai aos poucos e voluntariamente
abandonando a fala cantada e sonora, em nome de uma suposta fala urbana e
educada. A questão foi: é correto se expressar dessa maneira no teatro? Não
seria antipedagógico? A resposta veio da própria equipe: se a personagem fala
dessa maneira, é correto. E se é para provocar riso, mais correto ainda! Que o diga a commedia dell’arte! O grupo, então, decidiu-se por usar o dialeto em algumas de suas figuras.
O
vídeo abaixo oferece uma amostra da riqueza que é a fala poconeana:
A cada encontro foram propostos
exercícios de escrita individual e coletiva. A dúvida com relação à própria competência cedeu lugar à aceitação do desafio. Algumas escreveram mais e com maior desenvoltura,
outras reconheceram-se mais sintéticas, outro ainda chegou a criar o embrião de
um texto maior. Todos leram e foram ouvidos. Imaginamos figuras e cenas. A pequena Alice foi uma referência preciosa de graça espontânea - criança a escutar a cor dos passarinhos.
Pude atender também o projeto pessoal do grupo de teatro e sua intenção de tratar do feminismo por meio da comédia e do circo. Torço para que se concretize!
Momento de partilha das criações |
Ao final do processo realizamos a
leitura coletiva do texto “Sacra folia”, de Luís Alberto de Abreu. Muitos
risos, mas também algum constrangimento. Apesar da intensa observação do grupo
durante a semana, eu não havia levado em consideração o grande número de
católicas praticantes. A peça, encenada com sucesso em todo o Brasil, é um bom
exemplo de comédia popular, daquele tipo que se utiliza do sagrado para
provocar o riso sem, no entanto, aviltá-lo. Pensei que agradaria a gregos e
poconeanos. Enganei-me. Algumas participantes, por motivos
perfeitamente compreensíveis, sentiram-se incomodadas com certas figuras e,
mais ainda, com o tratamento dado à Sagrada Família pelo autor. Não teve
acordo. Tivesse eu pensado um pouco mais, poderia sugerir Martins Pena, Arthur
Azevedo ou mesmo um Luís Alberto de Abreu de outros risos.
Não importa, os comentários renderam
discussão sobre a ética. Relembramos o atentado ao Charlie Hebdo em 2015, falamos
sobre o papel demolidor da comédia e de seu desejo de horizontalização do
poder. Falamos, enfim, sobre o encontro do texto com o público e suas inúmeras variáveis a depender da época e do lugar, do repertório, das referências individuais e sociais.
Que bom operar com flexibilidade! Afinal, trata-se de um dos princípios da comédia!
Agradeço à equipe do SESC Poconé pela
acolhida e a cada participante pela dedicação e pela disponibilidade. Foi muito divertido e carregado de afeto. Quem sabe
volto e encontro um grupo maior, já experimentado na linguagem, disposto a reunir
num espetáculo um tanto dos tesouros dessa terra? Vamos pensar nisso? Alice, você vem?Vamos delirar uma peça de teatro?
Adélia
Nicolete
* É possível baixar gratuitamente o livro "Mascarados de Poconé" nesse link
Maravilhosa! Muito Obrigada! Bjos! Poliana Queiroz
ResponderExcluirUm beijo, Poli! Adorei te conhecer!
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