quinta-feira, 19 de julho de 2018

Ateliê de Comédia - Sesc Poconé - MT


Laura chega acompanhada de Alice, 6 anos. Parece sem jeito. A menina é falante, opinativa, gosta de chamar a atenção para si – sabe que é uma graça, enfim. Laura fica envergonhada, pede para Alice ficar quieta. “Amanhã ela não vem mais, professora!” Sei que um dos fatores que permitiu à mãe participar do Ateliê de Comédia à noite foi levar a filha consigo.  Néia e Jose levaram Kauane e Daniele, as filhas de 11 anos. “Laura – eu disse – Alice vem amanhã e em todos os outros dias. Os filhos não podem ser impedimento para as nossas realizações”. Milena e Rafaela, as filhas já moças de Maira, também se juntaram a nós por algumas noites e, claro, escreveram.


Parte do grupo que compareceu aos encontros do
Ateliê de Comédia
Sesc Poconé - MT


“No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: ‘eu escuto a cor dos passarinho’.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos –
O verbo tem que pegar delírios.”
Manoel de Barros



Eu diria que, da mesma forma, na comédia o verbo pega delírios. E mais: pega delírios um Ateliê de Comédia que viaja a Poconé.

Estava com saudade desse tema. Os projetos que conduzo, em sua maioria, estão voltados à memória ou à dramaturgia contemporânea. A especificidade do gênero seria um estímulo a reler peças e a retomar os estudos teóricos, a passar novamente os olhos pela História do Teatro. Fiz a proposta e Josenira, a coordenadora da unidade, aprovou.

Cheguei à simpática Poconé, o portal do Pantanal matogrossense, com o projeto debaixo do braço, uma carreada de livros e uma serie de exercícios que desaguariam em textos e cenas. Acontece que...


Praça central de Poconé - MT
(Foto: Adélia Nicolete)

...um dos pressupostos mais caros dos Ateliês de Dramaturgia, conforme descrevo em minha tese de doutorado, é o contato com o grupo, o espaço, o entorno e tudo o que possa contribuir para o desenvolvimento da proposta. Foi assim com o Ateliê de Memórias do Recife e a dramaturgia do Mercado de São José; com o Ateliê da Fainc e a dramaturgia do calçadão de Santo André e a obra de Luiz Sacilotto; com o Ateliê da Funsai pelas ruas do Ipiranga num trabalho de intervenções poéticas, com o Ateliê no Galpão Cine Horto, em BH, e a escrita a partir de obras do artista plástico mineiro Eymard Brandão, entre outras vivências. Não poderia ser diferente com os poconeanos. Assim, o meu projeto tão caro... mudou.

Para começar, é impossível desligar o Mato Grosso da figura de Manoel de Barros. A biblioteca em que trabalhamos leva seu nome. Embora não se considerasse um poeta pantaneiro, o imaginário que serviu às suas criações e que ele tratou de compartilhar conosco, carrega muito daquela região. Seus textos foram, portanto, um rico manancial a dialogar com a comédia e a nossa escrita, o que pode ser verificado nessa descrição de um Andarilho - complemento verbal do Louco do tarô, a meu ver, uma importante figura a ser considerada num estudo sobre o riso.


"Os andarilhos são como Tirésias sem Sófocles. São sábios sem instrução, sem Aristóteles. São poetas que não fazem versos, mas se fazem videntes. Conheci um andarilho na minha infância. É nele que penso quando uso esses sers de personagem. Era o João Sapé. Andava pelo Pantanal. Nunca se sabe de onde chegava. Com as pernas comia léguas. Certa vez pediu quatro pedaços de couro cru a meu pai. Fez uma mala com alças. Jogava a mala nas costas e ia pelas fazendas. Tinha panela, caneca, pratos, rede, coberta, fósforo, trouxa de mate e um parelho de roupa. Chamavam para ir embora: botava a casa nas costas e ia. Tinha 12 cachorros. Parava muito na fazenda do meu pai. Eu teria cinco anos quando o conheci. Ouvia a prosa dele no galpão até escurecer. Ele não tinha solidão por dentro só por fora. Na estrada os cachorros pegavam caça para ele. Ouvi-lo era um deslumbramento para mim. Era um vidente. Era um poeta. Era um fascínio para os meus cinco anos. Conhecia a voz das pedras e do Sol. Se você é um homem, você sabe a dor do homem - ele dizia. E se você é uma árvore você sabe a dor da árvore. Ele era a natureza."


Assim, começamos por pegar delírios ao pegarmos como parceiro o poeta.

Um outro fator que condicionou a mudança de boa parte da rota já traçada foi o perfil do grupo. Apenas três participantes já tinham feito algum curso ou oficina de teatro e, portanto, conheciam minimamente a estrutura dramatúrgica escrita ou encenada. As demais eram, em sua maioria, professoras da rede pública, estudantes de Pedagogia ou, no caso das crianças e jovens, acompanhantes dispostas a escrever, inclusive a pré-letrada Alice. Mudança de percurso à vista! É hora de matar a saudade de outro tipo de trabalho, o de iniciação teatral.


Dinâmicas e jogos com vistas à cena e à sua dramaturgia

O congraçamento, a celebração e a festa característicos dos rituais que deram origem à comédia, puderam ser relembrados por meio de jogos de integração e de estímulo à cumplicidade do grupo. A partir do levantamento de fatores geradores de riso durante as práticas, pudemos trabalhar tanto a origem quanto os fundamentos cômicos. A ideia era seduzir para o teatro, criar situações em que a dramaturgia verbal fosse uma decorrência do exercício cênico. 


Grupo ensaia uma cena gerada pelo jogo


Grupo se prepara para apresentar




Equipe planeja a cena a ser apresentada


Últimos retoques antes da apresentação 


Do plano original, restavam a minha preparação, os meus estudos. Na verdade, quem assumiu a condução do trabalho foi a professora de Teatro da graduação em Artes Cênicas, foi a Adélia que, nos anos 1990, plantou a semente do que viriam a ser os Ateliês de Dramaturgia. Não é difícil imaginar o meu prazer ao recriar cada encontro, colocar-me aberta à interferência do grupo e mais, à interferência do acaso. Falo dos Mascarados de Poconé.


Trceho de apresentação dos
Mascarados de Poconé...

... na E.E. Frei Carlos Vallet - Poconé



























Trata-se de uma manifestação cultural típica da cidade, dançada apenas por homens e meninos e que se apresenta oficialmente nos dias de São Benedito, de Nossa Senhora do Rosário e na festa do Divino Espírito Santo. No restante do ano, o grupo cuida de ensaiar, de criar e manter o figurino e os adereços e de levar a dança a outras cidades, em instituições e eventos, a fim de divulgá-la e preservá-la.* O fato é que topei por acaso com uma apresentação e pude conferir pessoalmente o ritual que remonta ao século 18 e, assim, estabelecer mais uma conexão entre o Ateliê e o contexto local.

A festa, o culto às divindades, as máscaras, o travestismo, o coro, a música e a dança, presentes no germe da comédia, resistem ali mesmo em Poconé, no cotidiano dos escrevedores. Serviram de exemplo, uma ponte a nos levar direto à Pré-História.

Máscara confeccionada em espaço do grupo
no Centro Cultural de Poconé

Traje feminino decorado pelo
próprio dançarino

Outros elementos a renderem discussão foram o linguajar e o sotaque poconeanos. Existe um modo de falar típico da cidade - algo que aos meus ouvidos soou como uma mistura do gaúcho com o caipira paulista. A população letrada, caso do grupo, vai aos poucos e voluntariamente abandonando a fala cantada e sonora, em nome de uma suposta fala urbana e educada. A questão foi: é correto se expressar dessa maneira no teatro? Não seria antipedagógico? A resposta veio da própria equipe: se a personagem fala dessa maneira, é correto. E se é para provocar riso, mais correto ainda! Que o diga a commedia dell’arte! O grupo, então, decidiu-se por usar o dialeto em algumas de suas figuras.

O vídeo abaixo oferece uma amostra da riqueza que é a fala poconeana:




A cada encontro foram propostos exercícios de escrita individual e coletiva. A dúvida com relação à própria competência cedeu lugar à aceitação do desafio. Algumas escreveram mais e com maior desenvoltura, outras reconheceram-se mais sintéticas, outro ainda chegou a criar o embrião de um texto maior. Todos leram e foram ouvidos. Imaginamos figuras e cenas. A pequena Alice foi uma referência preciosa de graça espontânea - criança a escutar a cor dos passarinhos. 

Pude atender também o projeto pessoal do grupo de teatro e sua intenção de tratar do feminismo por meio da comédia e do circo. Torço para que se concretize!

Momento de partilha das criações

Ao final do processo realizamos a leitura coletiva do texto “Sacra folia”, de Luís Alberto de Abreu. Muitos risos, mas também algum constrangimento. Apesar da intensa observação do grupo durante a semana, eu não havia levado em consideração o grande número de católicas praticantes. A peça, encenada com sucesso em todo o Brasil, é um bom exemplo de comédia popular, daquele tipo que se utiliza do sagrado para provocar o riso sem, no entanto, aviltá-lo. Pensei que agradaria a gregos e poconeanos. Enganei-me. Algumas participantes, por motivos perfeitamente compreensíveis, sentiram-se incomodadas com certas figuras e, mais ainda, com o tratamento dado à Sagrada Família pelo autor. Não teve acordo. Tivesse eu pensado um pouco mais, poderia sugerir Martins Pena, Arthur Azevedo ou mesmo um Luís Alberto de Abreu de outros risos.

Não importa, os comentários renderam discussão sobre a ética. Relembramos o atentado ao Charlie Hebdo em 2015, falamos sobre o papel demolidor da comédia e de seu desejo de horizontalização do poder. Falamos, enfim, sobre o encontro do texto com o público e suas inúmeras variáveis a depender da época e do lugar, do repertório, das referências individuais e sociais.

Que bom operar com flexibilidade! Afinal, trata-se de um dos princípios da comédia!

 
Parte do grupo ocupa a Biblioteca Manoel de Barros


Agradeço à equipe do SESC Poconé pela acolhida e a cada participante pela dedicação e pela disponibilidade. Foi muito divertido e carregado de afeto. Quem sabe volto e encontro um grupo maior, já experimentado na linguagem, disposto a reunir num espetáculo um tanto dos tesouros dessa terra? Vamos pensar nisso? Alice, você vem?Vamos delirar uma peça de teatro?

Adélia Nicolete


* É possível baixar gratuitamente o livro "Mascarados de Poconé" nesse link





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