quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Mercado de São José - disputa simbólica no velho Recife


Uma das quatro portas de entrada do Mercado de São José
(Foto: Adélia Nicolete)


A todes participantes do
Ateliê de Dramaturgia e Memória do Recife



Um dos mais famosos do Recife, o Mercado de São José ocupa uma grande área próximo ao Cais de Santa Rita, onde realizamos o Ateliê de Dramaturgia e Memória entre agosto e setembro desse ano. São inegáveis seu valor arquitetônico, econômico, social e sua importância histórica como palco de várias disputas simbólicas ao longo do tempo. Por isso, consideramos tomá-lo como "disparador" de um processo criativo que resultou em roteiros de ações, narrativas e um projeto coletivo de dramaturgia. É disso que trataremos em linhas gerais nessa postagem.



"Área fria" do Mercado, destinada aos frutos do mar
(Foto: Adélia Nicolete)


Sua história remonta ao século 19, quando comerciantes se reuniam em frente à igreja de Nossa Senhora da Penha, na chamada Ribeira do Peixe, para distribuir seus produtos sob o sol, longe das condições ideais de higiene e numa atmosfera caótica. Intentava-se naquele momento a substituição dos mercados de rua e do comércio informal e popular por modelos europeus. Isabel C. M. Guillen, nossa principal fonte de pesquisa para o trabalho, informa que

“Durante décadas, investiu-se na imagem de Recife como a Veneza Brasileira, valorizando seu conjunto arquitetônico, a beleza das pontes que atravessam o Capibaribe, as linhas imponentes do Bairro do Recife, as igrejas coloniais.” *


Nessa idealização, as bancas dispostas indiscriminadamente ao ar livre, a mistura de peixe com outros alimentos e mercadorias; os pregões e as cantorias; quituteiras, cordelistas, mágicos e outros ambulantes deveriam ser banidos. 


"Foi com o objetivo de modificar hábitos e costumes arraigados entre a população recifense que a administração pública decidiu construir o Mercado de São José, edifício que, em seu projeto arquitetônico inspirado no mercado de Grenelle, simbolizava e resumia todos os ideais de modernidade, salubridade e civilidade discutidos e aspirados pela elite."

Inaugurado em 1875, não demorou muito para que sua vocação popular transbordasse. Novas barracas foram instaladas à sua volta, num processo incontrolável, gerador de inúmeros conflitos com a polícia e a administração pública. Seu projeto original foi descaracterizado pelos comerciantes na medida de seus interesses e necessidades: subdivisão de box, estreitamento de corredores, etc. 


Corredores da alimentação e do artesanato
(Foto: Adélia Nicolete)



Reformas foram feitas na tentativa de reverter o processo e, como medida para barrar mais e mais alterações, em 1975 - ano do centenário do edifício - o mercado foi tombado como patrimônio arquitônico da cidade. O tombamento, por sua vez, gerou outros tipos de conflito, agravados pelo incêndio ocorrido em 1989.

Modelo de resistência, o Mercado de São José e todo o seu entorno, segue um dos principais centros de abastecimento da cidade. É possível verificar, desde as primeiras horas da manhã, o grande afluxo de consumidores em busca de peixes e frutos do mar, de artesanato e alimentos típicos encontrados no interior do edifício. À volta dele, em carrinhos, barracas e lojas, são vendidos os produtos horti-fruti, roupas, utensílios domésticos,  bem como ervas e outros materiais destinados à fitoterapia e às práticas afrodescentes.

Foi esse o ambiente motivador de nossos estudos históricos e de nossas criações.

(Foto: Adélia Nicolete)




(Foto: Adélia Nicolete)






(Foto: Adélia Nicolete)


O processo teve início na primeira fase do Ateliê, em agosto, quando foram desenvolvidos exercícios de escrita em diversos formatos, estudos teóricos e a leitura de peças teatrais cuja temática envolve a memória. 

Durante o intervalo entre as duas etapas, o grupo se encarregou de pesquisar a respeito do Mercado de São José, de ler e analisar duas peças que viriam a ser discutidas em conjunto no mês de setembro: A moratória, de Jorge Andrade e Caranguejo overdrive, de Pedro Kosovski em colaboração com Aquela Cia. Os dois textos, distantes 60 anos, abordam de maneiras distintas a questão da disputa simbólica e sua análise prestou-se a intensivo estudo formal, registrada na postagem anterior deste blog.

O contato mais detalhado com as duas peças e o paralelo realizado entre elas foram atividades indispensáveis para o desenvolvimento do que veio a se seguir na medida em que abordaram uma série de questões. Como trabalhar com diferentes momentos históricos? Como operar com materialidades de características diversas? Como estruturar uma dramaturgia de múltiplas origens? Em que momentos o diálogo interpessoal é a melhor via de expressão na cena e quando a narrativa e os procedimentos épicos são a melhor solução? Quando abrir mão da dramaturgia verbal em nome de outros discursos tão ou mais potentes?

A próxima etapa foi dirigir-se ao Mercado e integrar-se à sua rotina num exercício de observação ativa. Os pés na calçada do Sesc Santa Rita (abrigo do Ateliê) marcaram o início do passeio. A partir dali, cada participante ativaria todos os sentidos na busca por integrar-se ao ambiente. Cheiros, sons, imagens e falas; objetos, detalhes urbanísticos e arquiteônicos, pessoas e animais; percursos, surpresas, novidades e o já bem conhecido – tudo deveria ser anotado. Conversas não estavam proibidas, tampouco entrevistas. O único delimitador era o tempo: 90 minutos.


Lidiane em observação ativa
(Foto: Adélia Nicolete)


Bruno já na etapa de observação
(Foto: Adélia Nicolete)






















Paulo André anota o que sente, ouve,
observa e conhece, após tantos anos 
como frequentador
do local
(Foto: Adélia Nicolete)





























Ytalo em seu posto de observação
(Foto: Adélia Nicolete)

Períodos de caminhada e movimento foram seguidos de observação mais alentada em um único lugar. Deixar-se contagiar pela vida pulsante do Mercado, integrar-se a ele. Ouvi-lo, compreender suas marcas e seus sinais. Dialogar de corpo e espírito com o espaço. E recolher os tesouros encontrados.


Breno em exercício de observação
(Foto: Adélia Nicolete)



Ao fundo, Anderson anota suas observações
(Foto: Adélia Nicolete)

Em sala, as anotações foram compartilhadas com o grupo e teve início uma discussão sobre possibilidades dramatúrgicas suscitadas pelo estudo histórico, pela arquitetura e pelas observações coletadas. Personagens e trajetórias foram sugeridos – fruto da observação, da pesquisa bibliográfica ou da imaginação. 


Os peixeiros e a "orquestra de facas", 
conforme observou um participante
(Foto: Adélia Nicolete)

A senhora que perambula no Mercado
(Foto: Adélia Nicolete)






O gato que virou narrador
(Foto: Adélia Nicolete)



Na sequência, cada participante decidiu-se por um determinado momento de acirrada disputa simbólica no Mercado, escolheu ou criou dois personagens e tratou de definir-lhes uma pequena trajetória naquele contexto. 

Um roteiro de ações foi criado para cada personagem e, a seguir, uma narrativa em primeira pessoa que transmitisse a experiência imaginada. Para isso, usamos como principal referência as narrativas presentes em Caranguejo overdrive, em especial as do personagem Cosme. Diálogos também estavam previstos na medida em que fossem suscitados pela ação.

Todos esses exercícios de escrita foram devidamente compartilhados e discutidos com os colegas com vistas ao aprimoramento. Sua qualidade, sem dúvida, foi fruto de todas as práticas da primeira fase, das leituras e discussões e da cumplicidade estabelecida entre todos.

A experiência culminou em um projeto coletivo de dramaturgia elaborado por três participantes do Ateliê a partir dos estudos realizados e das narrativas criadas por toda a turma. **


Lidiane, Bruno e Paulo André elaboram projeto de dramaturgia
(Foto: Adélia Nicolete)

O trio foi orientado a examinar todo o material disponível, refletir sobre as possibilidades de sua utilização e estruturar uma dramaturgia que privilegiasse a questão das disputas simbólicas. Foram solicitados o conceito geral e os objetivos do projeto; o espaço cênico e a relação com o público, assim como aspectos relativos à concepção estética, à utilização de hipertextos e de outros recursos e, finalmente, à produção.

Nosso propósito foi motivar os participantes à criação de uma rapsódia com os textos criados. A eles poderiam juntar-se músicas, fragmentos audiovisuais, material teórico, literatura, artes plásticas e tudo mais que concorresse para o tratamento teatral da memória a ser trabalhada.

A elaboração de projetos e sua "defesa" são, cada vez mais, parte integrante do trabalho de dramaturgas e dramaturgos, daí que, no último encontro, Lidiane, Bruno e Paulo André apresentaram e "defenderam" seu projeto a fim de serem arguidos pela turma. 


Equipe apresenta projeto
(Foto: Adélia Nicolete)

Esse e os demais projetos coletivos de dramaturgia criados pelo grupo mostraram-se viáveis e despertaram a vontade de vê-los realizados. Esperamos que os participantes tenham sido fisgades pela Memória como material dramatúrgico. 

Que a Arte em nosso país seja devidamente valorizada e que saia vitoriosa das tantas disputas simbólicas em que se vê envolvida ao longo de nossa História.


Parte da turma do Ateliê de Dramaturgia e Memória
(Foto: Adélia Nicolete)


Adélia Nicolete


* Todas as citações da postagem referem-se a:

GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Mercado de São José: contando histórias em um lugar de memória. ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. 

O artigo pode ser acessado nesse link.

** Outros dois projetos coletivos tiveram como base os textos criados na primeira fase do Ateliê.

Mais informações sobre o Mercado de São José, acessar o site Faces do São José.



2 comentários:

  1. Oxi! Mas queria muito ter ido junto. Que desenrolar bacana este Ateliê! Riqueza e inspiração para a alma! Quem sabe numa outra oportunidade vou junto para captar! Sucesso e prosperidade, que venham novos!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada pela visita e pelo comentário, Elaine. Suas boas energias completam a maravilha que foi esse Ateliê! Que venham novos! Que venham turmas tão incríveis como aquela!

      Excluir