domingo, 3 de abril de 2016

As dinâmicas coletivas de criação em teatro e os diferentes sentidos de dramaturgia





As dinâmicas coletivas de criação em teatro e os diferentes sentidos de dramaturgia é o título de um artigo que escrevi para a Revista Pitágoras 500, editada pelo Instituto de Artes da UNICAMP, cujo volume de número 9 é dedicado a reflexões sobre coletivos de criação.

Transcrevo logo abaixo o primeiro tópico. O texto completo e todos os excelentes artigos estão disponíveis no endereço indicado no final.

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As dinâmicas coletivas em arte têm se mostrado, a partir dos anos 1950, um potente meio de criação. Muitas delas emergiram no caudal da contracultura e de seus pressupostos de desierarquização de funções, de autonomia em relação aos mecanismos consagrados de produção, de subversão à cultura dominante e seu culto à figura de um autor único que, muitas vezes, sobrepunha-se à obra.

Há quem considere redundância falar em dinâmicas coletivas quando se trata de teatro – arte grupal por natureza, a construção da cena já implicaria em colaboração mútua. Ocorre, porém, que os esquemas convencionais de produção operam com atribuição específica de funções, que não se inter-relacionam e costumam obedecer a uma hierarquia. No topo da pirâmide está o diretor a coordenar atores, iluminadores, cenógrafos, figurinistas, músicos, cenotécnicos, divulgadores, que respondem às suas concepções de modo paralelo. É comum que apenas o encenador tenha uma visão geral do trabalho até bem próximo da estreia, quando todas as áreas são agregadas, constituindo o todo da encenação. Esse modelo difere substancialmente de práticas como a criação coletiva ou o processo colaborativo.

A criação coletiva foi um dos primeiros movimentos rumo à equivalência criativa e à divisão de responsabilidades que confluem para a construção do espetáculo. No Brasil, ela desenvolveu-se e alcançou proporções significativas a partir de meados dos anos 1960, mantendo-se por quase duas décadas como importante procedimento de pesquisa estética e de militância, bem como de formação e fortalecimento do teatro de grupo. Na década de 1990, ganharam força no país os coletivos de artes visuais, música e cinema. Eles apresentaram uma saída para a viabilização, divulgação e comercialização de trabalhos fora da tirania do mercado. Nesse contexto, despontou o processo colaborativo que, desde então, tem sido utilizado por um número cada vez maior de grupos teatrais.

Herdeira de alguns princípios da criação coletiva, a dinâmica colaborativa pressupõe que as hierarquias sejam substituídas pelas responsabilidades criativas, não havendo predomínio do autor, do diretor ou dos intérpretes. Há proposições a serem feitas por todos os envolvidos e funções a serem desempenhadas, sempre com interferência mútua entre os criadores, mas com decisões e assinatura final de cada área, sob a coordenação geral da direção (ABREU, 2003). A dramaturgia desenvolve-se no decorrer do processo, com base nas pesquisas, na improvisação dos atores, no ir e vir das proposições, experimentações e avaliações de cenas (SILVA, 2011). O grupo pode abrir os ensaios ao público e ter também sua colaboração, na forma de análises, críticas e sugestões. Novas etapas de criação sucedem-se até que chegue o momento das finalizações de cada área e da busca de uma identidade geral do trabalho. Dificilmente um espetáculo nesses moldes pode se considerar finalizado, pois é permanentemente revisto em função da relação com o espectador, da rotatividade dos intérpretes ou dos diferentes espaços de exibição (NICOLETE, 2005).

Constata-se que, assim como na criação coletiva, a dramaturgia baseada em múltiplas proposições, tende a uma conformação igualmente polifônica. Diferente de um autor individual, no controle do texto desde as primeiras ideias até a conformação final, o dramaturgo em processo avança no mesmo passo da cena, a administrar criativamente as sugestões. Seu objetivo não é uniformizar as colaborações, nem reduzi-las a um denominador comum, ao contrário, é compor um trabalho com os diferentes materiais – situações improvisadas, textos sugeridos, ações, gestos, vozes, etc. –, conservando, muitas vezes, sua discrepância. Todos os demais criadores, porém, ao sugerir materiais com vistas à composição dramatúrgica e cênica, desempenham de alguma forma a função dramaturgia.

Decorre daí a dificuldade de se pretender uma dramaturgia textual e, consequentemente, uma encenação, semelhantes ao “organismo” perfeitamente estruturado da forma dramática convencional. É praticamente impossível encaixar na conformação canônica as contribuições de origens, aspectos e funções tão variados. Nesses casos, é necessário que o dramaturgo resista à tentação de operar com os estímulos da cena do mesmo modo com que opera uma dramaturgia particular, que resista a bloquear as leituras que se fazem de uma proposta nova por utilizar velhas lentes. Daí a importância de se discutir um pouco mais alguns sentidos abarcados pelo termo dramaturgia no teatro contemporâneo e verificar se contribuem para um alargamento de referências capaz de facilitar o trabalho dramatúrgico e sua leitura, seja por parte dos criadores, seja dos espectadores. É a isso que nos propomos com esse artigo.

  
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Adélia Nicolete