quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Adolf Wölfli


Adolf Wölfli e sua trombeta de papel - 1926
Fotógrafo não identificado


Para Carlos Vinícius
por sua pesquisa sobre artistas visionários

Meu primeiro contato com a obra de Adolf Wölfli foi em 2015 em uma exposição no American Folk Art Museum de Nova York: "When the curtain never comes down". Suas obras  dividiam espaço com trabalhos de outros artistas diagnosticados com algum tipo de distúrbio psíquico. Como o título da exposição anunciava, eram artistas em tempo integral, vários deles internos em manicômio, para quem a composição estética constituía o motivo da existência.

Adolf Wölfli

Adolf Wölfli


Wölfli nasceu em Berna, Suíça, em 1864. Caçula de sete irmãos, teve uma infância marcada pelo abandono e pela violência. Seu pai, alcoólatra e delinquente, foi preso várias vezes até que deixou a família quando Adolf tinha cinco anos. Sozinha para manter a casa, a mãe trabalhou como lavadeira e mais tarde tomou o rumo do interior levando apenas o menino mais novo consigo. Ambos atuaram como mão-de-obra nas fazendas em troca de comida e abrigo, muitas vezes separados um do outro.

Adolf Wölfli - "The St. Adolf Cathedral in Band-Wand"
1910

Aos dez anos Adolf viu-se órfão de mãe e não teve outra saída que não continuar na lavoura e em outros pequenos trabalhos. Sofreu maus tratos, foi abusado sexualmente e cresceu em abrigos estatais. Mesmo com tantas dificuldades, conseguiu completar a educação báscica em 1879.

Adolf Wölfli - "General View of the Island of Neveranger"
1911

Aos dezoito anos Wölfli apaixonou-se pela filha de um rico fazendeiro, mas sua condição social impediu que o relacionamento fosse aprovado pelos pais da moça. Desiludido, o jovem retomou o rumo de Berna.

Adolf Wölfli
Adolf Wölfli


Na capital, juntou-se brevemente ao exército, quando uma sequência de tentativas de abuso sexual de garotas enviou-o à prisão por dois anos. Ao ser libertado e com dificuldade de encontrar um trabalho formal, ocupou-se como jardineiro e coveiro.

Com o passar do tempo seu comportamento tornou-se cada vez mais estranho e agressivo até que em 1895, depois de nova tentativa de estupro, foi enviado ao Manicômio de Waldau, onde permaneceu por 35 anos, até sua morte.

Adolf Wölfli

Nos primeiros anos de internação, Wölfli mostrava-se às vezes violento e incontrolável, ocasiões em que era levado à solitária. Certa vez, em 1899, chegou a usar a mesa de cabeceira para derrubar a porta da cela, tal a sua fúria, e com a madeira da porta quebrou a janela do corredor que o levaria à liberdade. No entanto, foi encontrado na manhã seguinte, imóvel diante da possibilidade de fuga. Nesse ano começou a desenhar. 


Adolf Wölfli

Adolf Wölfli


Primeiro recebia apenas um lápis preto por semana, esgotando-o rapidamente. Ao perceber que o desenho e a escrita acalmavam-no, passaram a aumentar seu suprimento de materiais. No Natal, por exemplo, recebia uma caixa de lápis de cor, esgotada em duas ou três semanas. Contentava-se, então, em trabalhar com tocos de poucos milímetros e até com as pontas que sobravam, habilmente presas entre as unhas.

Seus suportes eram papel jornal, usado em toda sua extensão, e até mesmo papeis de embrulho ou qualquer outro papel de embalagem, solicitados aos guardas e aos companheiros de manicômio. 

Trabalhos da fase inicial não foram preservados. Os desenhos mais antigos datam de 1904 e foram feitos em lápis preto. A cor só veio a aparecer em suas criações em 1907.

Adolf Wölfli - "The Assizes of the Middle-Land,
The Shah of Canton Anger-Valley-Hall, Negre"
1904-1914
Adolf Wölfli


O ano de 1907 foi decisivo para Wölfli, pois marcou a chegada do doutor Walter Morgenthaler a Waldau. Jovem psiquiatra residente, logo notou o talento do interno e não poupou esforços em estimulá-lo, estudá-lo e divulgar seu trabalho fora da instituição. Em 1921, por exemplo, Morgenthaler apresentou um estudo da obra de Wölfli e expôs alguns de seus desenhos em livrarias de Berna, Basileia e Zurique. 

Há notícias de que o caso atraiu o interesse de Gustav Jung e outros psiquiatras, bem como de artistas como André Breton, M. Oppenheim e Jean Dubuffet. 


Adolf Wölfli - "Gramophon"

Prolífico, Wölfli trabalhou continuamente até sua morte, chegando a criar uma autobiografia fictícia tecida pela conjugação de textos, desenhos, colagens e composições musicais sui generis e que, quando empilhada, mediu quase seis metros de altura. Nela o artista recriou a infância e vislumbrou um futuro glorioso a partir de uma mitologia pessoal. Tal foi a impressão causada pela obra que o surrealista Breton a descreveu como “uma das três ou quatro obras mais importantes do século XX”. 



Adolf Wölfli - "Irren-Anstalt
Band-Hain" - 1910
Adolf Wölfli


Adolf Wölfli



Adolf Wölfli


"Do berço ao túmulo", sua autobiografia, começou a ser escrita em 1908. Desenhada folha por folha, num total de 2.970 páginas, resultou em nove volumes onde o artista figura como Santo Adolfo II, aquele se aventurou por várias terras. Há, por sinal, diversos mapas a descrever detalhadamente os lugares visitados.


Adolf Wölfli
Adolf Wölfli
















Adolf Wölfli


Em seus escritos, Wölfli usava vocábulos estrangeiros e chegou a recriar o alfabeto para formar novas palavras, o que veio a formar uma espécie de linguagem secreta que só ele compreendia e dominava. Tal linguagem contou igualmente com os números, usados para expressar ideias e registrar suas músicas. Segundo ele, "Oberon" seria o número insuperável a não ser por "Zorn" (raiva), maior que tudo.

Adolf Wölfli



Adolf Wölfli


Entre 1912 e 1916 Wölfli criou "Livros geográficos e algébricos", uma coleção de mais de 3 mil páginas desenhadas e escritas com números e notas musicais - uma espécie de testamento para seu sobrinho Rudolf Wölfli.

A seguir, deu início à série denominada "Arte-Pão" - desenhos em uma única folha destinados à venda e à consequente compra de mais materiais artísticos. Embora preferisse os trabalhos maiores, recorreu a esse expediente até o final da vida, servindo-se dele também para presentear amigos e admiradores.

Adolf Wölfli - "Packard" - 1927
Um exemplar de Arte-Pão

Foram essas obras que Morgenthaler publicou em sua monografia em 1921 e que propiciaram o interesse de Hans Prinzhorn - um psiquiatra e historiador da arte. Entusiasmado com os trabalhos de Wölfli, Prinzhorn apresentou-os a Jean Dubuffet, que não só adquiriu algumas criações em sua viagem à Suíça como associou-as à Art-Brut. Não bastasse, exemplares da Arte-Pão foram expostos na Documenta 5, de Kassel, em 1972.


Adolf Wölfli - "Hautania and Haaverianna"
1916
Exemplo de Arte-Pão



Atuante na clínica até 1919, Morgenthaler estimulou Wölfli a trabalhar em paineis e decorações e, em 1922 foi a vez de atrair a atenção do professor Hermine Marti, que a veio a se tornar admirador, colecionador e mecenas do artista. 

Adolf Wölfli



No que se refere à música, ela é conteúdo de muitos dos desenhos de Adolf Wölfli, que chegou a assinar como "Compositor" e não como pintor. São trabalhos que se distanciam da notação musical conhecida no que se refere às notas e, no que tange ao ritmo, à duração ou aos instrumentos, as indicações estão escritas à parte no desenho. O fato é que essas "composições sonoras" são, na verdade, composições visuais.

Na velhice, Wölfli executava suas composições numa trombeta de papel. Adaptações de suas músicas podem ser ouvidas na trilha sonora do documentário abaixo, que retrata parte de seu trabalho.






No vídeo a seguir, com trilha de Gregorio Allegri, temos outra seleção de obras de Adolf Wölfli: 


E, finalmente, o livro "Creator of the universe", apresentado em vídeo:



Após a morte de Wölfli, em 1930, suas obras foram conservadas no Museu da Clínica Waldau. Mais tarde, criou-se a Fundação Adolf Wölfli com a finalidade de preservar sua arte para as futuras gerações. Atualmente a coleção está sob a guarda do Museu de Belas Artes de Berna.

Adolf Wölfli

Adolf Wölfli

A quem se interessar, há muito mais que se descobrir a respeito de Adolf Wölfli. Uma infinidade de obras estão na internet, a grande maioria sem os devidos títulos e datas, bem como vídeos, composições e materiais a respeito do artista. Todos em idioma estrangeiro.

Até onde pude verificar, ainda que de modo sucinto, nosso blog talvez seja o primeiro a divulgar esse talentoso artista em língua portuguesa. Uma honra para mim.

Adélia Nicolete


Mais informações acerca de Adolf Wölfli, sua biografia e sua obra (fontes dessa postagem), podem ser acessadas no


ROUSSEAU, Valérie. Adolf Wölfli In: When the curtain never comes down: performance art and the alter ego.  New York: American Folk Art Museum, 2015. p. 128-131




quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Memória feita à mão: artes-manuais e suas narrativas


Fachada da Biblioteca Infantil de Sorocaba
(Foto: Zaqueu Proença)

Sabe aquele trabalho de artes-manuais que guardamos pelo seu grande valor afetivo? Uma peça bordada, uma colcha de retalhos, um tricô, um crochê. Aquela boneca de pano, aquele bicho de feltro, a tapeçaria, o vagonite, a toalha em tecido xadrez. Se conservamos cada uma delas não é só por sua utilidade, mas pelas histórias que trazem consigo: quem as fez ou as ofertou, a técnica já esquecida, uma ocasião especial em que foi usada - a memória de um tempo vivido. 

Na tarde ensolarada de 6 de fevereiro, a Biblioteca Infantil de Sorocaba acolheu um grupo especialmente dedicado a conversar e a tecer histórias de peças afetivas.

As irmãs Amábilis e Lúcia (de costas) divertem
e emocionam com suas histórias
(Foto: José Roberto Costa)

Cerca de vinte pessoas deixaram sua casa, seu trabalho e sua rotina e tomaram o rumo do Encontro. Desligamos celulares, plantamos os pés no chão, respiramos em conjunto. Durante quatro horas vivemos o momento presente e, a partir dele, voltamos a outros tempos. Como bem observou José Rubens Incao, diretor da Biblioteca, ao final sentiamo-nos todos irmanados por um passado comum - aquele em que as artes-manuais ocupavam um espaço significativo no dia-a-dia e no bem-querer.

Uma cozinha caipira e um circo ocupam os fundos
da Biblioteca. São espaços de acolhimento para
diversas atividades.
(Foto: Adélia Nicolete)















Cada participante levou uma peça feita à mão: modelagem, costura, tear, crochê, tricô, bordado, patchwork, colagem, joalheria, encordoamento. Os trabalhos criados por familiares ou amigos, comprados em uma viagem, elaborados em um curso foram expostos livremente no espaço - o lugar escolhido também diria algo sobre o objeto.

Tirá-lo de seu ambiente e fazê-lo habitar um outro espaço, longe de descaracterizá-lo, ressaltou muitos de seus aspectos e fez com que o relacionássemos com o mundo, ampliando sua importância para além da subjetividade.

Vênus trazida por Débora
(Foto: Adélia Nicolete)
Marinês escuta a narrativa de Débora
(Foto: Adélia Nicolete)


Anália ouve a história da
toalha de batizado do século 19
trazida por Donizetti
(Foto: Adélia Nicolete)
Quadrinhos bordados na infância
por Lilian
(Foto: Adélia Nicolete)


Toalha crochetada pela mãs de Benedita
(Foto: Adélia Nicolete)
"Pano de amostra" feito no curso
de corte e costura por Eliana
(Foto: Adélia Nicolete)


As artes-manuais estão inscritas numa lógica outra que não a da pressa e do consumo. Inscritas num tempo outro - o tempo do desejar, do planejar e do compor. O tempo do criar e do finalizar. O tempo do processo, enfim, que figura o processo interno de quem faz. 

Num contexto como o nosso em que predomina o descartável e o provisório, o tempo que poderia ser dedicado ao exercício criativo nos é roubado em nome de outras "prioridades". Sob o argumento da praticidade, nos tornamos consumidores de produtos, em sua maioria industrializados, cuja narrativa, quando revelada, denuncia a precarização do trabalho.


Saia costurada por Ketlyn
(Foto: José Roberto Costa)
Pano de copa bordado pela avó de Tarsila
(Foto: José Roberto Costa)












Blusa tricotada pela tia de Angeles
(Foto: José Roberto Costa)



Jogo americano em tear manual, comprado
por Carlos em viagem e crochetado pela tia
do companheiro
(Foto: José Roberto Costa)













Muitas das participantes integram o grupo de bordadeiras que se reúne todas as quartas na Biblioteca, o que tornou ainda mais potentes as reflexões acerca do tema. Elas foram estimuladas a conversar com colegas de outras áreas a fim de compartilhar também as experiências do grupo.

A vivência plena do momento presente nos permitiu ouvir e sermos ouvidos em nossas narrativas. Permitiu identificações, indagações, estabeleceu redes que ultrapassarão o encontro. Pode-se dizer que as artes-manuais foram a urdidura em que tecemos nossas relações.


Caderno de culinária feito por
Lisa à época da escola
(Foto: José Roberto Costa)




Pano de amostras de costura
feito pela mãe de Marinês
(Foto: José Roberto Costa)

Cachepô de corda feito pela tia
de Rodrigo
(Foto: José Roberto Costa)
Pano de copa bordado pela mãe de Mazé
(Foto: Adélia Nicolete)

O passo seguinte foi a elaboração do que se ouviu e sua transformação em texto escrito ou narrativa oral - "ao gosto do freguês". Bordamos a história do Outro junto à nossa, cerzimos as lacunas com a imaginação ou com a pesquisa, arrematamos ou deixamos em aberto os fios tramados.

As narrativas ouvidas foram tramadas ao lugar onde as peças foram expostas, o que resultou em poesia. As referências de cada ouvinte, por sua vez, acrescentou matizes às histórias originais. 


Cada um/a escolheu o lugar preferido para escrever
(Foto: Adélia Nicolete)

No último terço do encontro, compartilhamos os textos escritos e também as narrações improvisadas. Quem já escreve, quem acha que não escreve, quem nunca foi à escola - ninguém se colocou de fora.*

Marta lê o que escreveu
(Foto: José Roberto Costa)


Costumo dizer que a narrativa memorialística é feito crochê: a cada investida da agulha no plano conhecido, puxa-se um novo fio, faz-se nova laçada e um novo ponto é criado. Tenho a impressão de que tecemos uma bela colcha a quarenta e tantas mãos.

Ao diretor José Rubens Incao agradeço pela gentil acolhida, ao Beto sou grata pela simpatia e pelos registros. Obrigada Débora Brenga pela intermediação, a Victor Motta pela divulgação. 

Agradeço a todes que se dispuseram à partilha do presente, ao re-conhecimento do passado e à perspectiva de um outro Tempo em que haja mais tempo para as artes-manuais, para si e para o Outro. Que bela tarde!



Adélia Nicolete

* Exercício semelhante, desenvolvido na Pós-Graduação em Artes-Manuais para a Educação (A Casa Tombada / FACOM), originou a publicação de:

VEIGA, A. L. V. S da, NICOLETE, A. (Org.).  Artes-manuais: narrativas e memórias afetivas.  São Paulo: A Casa Tombada, 2017.