terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A dramaturgia barroca de Papa Palmerino


Palmerino Sorgente


Boa parte dos textos dramáticos contemporâneos guardam semelhança com a produção de alguns dos artistas que tenho apresentado no blog. Hoje falarei de Palmerino Sorgente, um artesão cujo requinte equipara-se aos mais dedicados investigadores da linguagem.

Nascido na Itália em 1920, o artista mudou-se para o Canadá em 1954, depois de servir na Segunda Guerra Mundial. Casado e pai de treze filhos, Palmerino ganhava a vida como dono de pizzaria até que, em 1970, um acidente de trabalho forçou-o a uma aposentadoria prematura. Para dar vazão à hiperatividade e tirar proveito de suas habilidades técnicas, converteu uma área de sua casa num bairro proletário em Montreal em oficina de reparos eletrônicos. Tudo caminhava normalmente até o dia em que começou a ouvir vozes. Em uma das ocorrências, Nossa Senhora ordenou-lhe que tomasse para si o anúncio da fé e, a partir desse dia, dedicou-se exclusivamente a tal propósito, vindo a ganhar a alcunha de Papa Palmerino, o Papa de Montreal.

A antiga oficina transformou-se em um genuíno espaço de arte e também em refúgio, já que foram transferidos para lá cama, geladeira, dispensa e objetos pessoais do artista, agora convertido em missionário. Para atrair os visitantes dispunha placas escritas à mão em letras grandes e vermelhas, ora na calçada ora na janela de sua loja. Em pouco tempo tornou-se uma figura urbana popular.


Chapéus criados por Papa Palmerino e expostos no
American Folk Art Museum

“Rosários, cruzes e medalhas; frascos de água benta, imagens de santos, santuários e pingentes se tornaram a matéria bruta para uma idiossincrática e intensa produção artística, em funcionava 24 horas por dia. Com movimentos confiantes e equipado com uma lente de aumento e pinças, Sorgente fez o design de ricas vestimentas desde chapéus de cardeal, tiaras, e coroas, todas moldadas para sua cabeça, a roupas cerimoniais, anéis elaborados, amuletos, pingentes para chaveiros, e pequenos e ornamentados cartões de memória com orações.” *


Diferente dos demais artistas expostos até agora, os únicos descartes utilizados por Palmerino visavam à estruturação das peças. Todos os outros materiais eram novos, preferencialmente os que oferecessem algum tipo de brilho – lantejoulas, miçangas, pedras preciosas, glitter, objetos metálicos, tecidos e fitas – ou que fossem vermelho-sangue: “Cristo vestia vermelho quando foi condenado à morte”.** O efeito pretendido por Sorgente era fazer circular a mensagem de paz e amor de Deus, facilitar o acesso ao divino e encorajar a devoção.

Papa Palmerino em sua loja, em 1999


Mesmo depois do incêndio ocorrido em 2000 em que perdeu tudo, o artista continuou sua missão obstinadamente. Mudou-se para um pequeno apartamento próximo dali onde reproduziu o método anterior: oficina e quarto separados da loja por uma porta com cadeado e a inscrição “Área privada. Proibida a entrada sem permissão”. Ali viveu e trabalhou até sua morte em 2005, deixando um legado de objetos e muitos álbuns com figuras de santos mescladas a pensamentos e retratos seus - “A Nova Santa Bíblia” era o título mais comum.

Chapéu de autoria de Palmerino Sorgente


Quando observo o chapéu acima, identifico nele toda uma construção dramatúrgica que invariavelmente associo a alguns autores contemporâneos. Há nesse objeto um meticuloso trabalho com os materiais, intensificado se pensarmos nas dimensões dos objetos criados por Palmerino, pequenos em sua maioria. Repetição de padrões, predominância de certas tonalidades, alternância calculada de elementos, variedade de texturas e materiais e assim por diante. Embora o todo constitua-se num chapéu, cada setor pode ser apreciado de forma independente, pois carrega uma composição diferente dos demais.

Não houvesse a série de  crucifixos, o acessório poderia ser tomado como profano e desfilado em ocasiões festivas. Assim também o texto dramático contemporâneo pode muitas vezes ser tomado por algo de outra natureza. O fato de ser classificado como teatral pelo seu autor é que conduz a nossa apreciação para a cena. Citei em postagem anterior um fragmento de “Descrição de imagem”, de Heiner Müller. O fragmento abaixo, que encerra Gritos de socorro de Peter Handke pode também ilustrar a reflexão:

“luz!: NÃO. entra!: NÃO. baixo!: NÃO. obrigado!: NÃO. obedeceis!: NÃO. levantar a cabeça!: NÃO. para todos!: NÃO. nome próprio!: NÃO. a partir de hoje!: NÃO. o seguinte!: NÃO. atenção!: NÃO. seguir eles por favor!: NÃO. profissão!: NÃO. nunca!: NÃO. pena!: NÃO. para a ducha!: NÃO. precisa-se!: NÃO. até nova ordem!: NÃO. estrangulado!: NÃO. que venha!: NÃO. a porta!: NÃO. dispa-se!: NÃO. (...) sentado!: NÃO. mãos sobre a mesa!: NÃO. contra a parede!: NÃO. nem mas nem meio mas!: NÃO. nem para a frente nem para trás!: NÃO. sim!: NÃO. agora!: NÃO. depor! NÃO. não prender!: pare!: NÃO. fogo!: NÃO. eu afogo-me!: NÃO. ah!: NÃO. mas!: NÃO. não!: NÃO. olá!: santo!: NÃO. santo, santo, santo!: NÃO. por aqui! NÃO. boca fechada!: NÃO. quente!: NÃO. do ar!: NÃO. içar!: NÃO. água!: NÃO. daí!: NÃO. perigo de vida!: NÃO. nunca mais!: NÃO. perigo de morte!: NÃO. alerta!: NÃO. vermelho!: NÃO. viva!: NÃO. luz!: NÃO. atrás! NÃO. não!: NÃO. lá!: NÃO. aqui!: NÃO. para cima!: NÃO. ali!: NÃO. NÃO. NÃO.
Socorro?: SIM!
Socorro?: SIM!
Socorro?: SIM!

SOCOSIMrroSIMSOCOSIMrroSIMSOCOSIMrroSIMSOCOSIMrroSIMSO- COSIMrroSIMSOCOSIM

rroSIMsocorro.


socorro.” ***



O lúdico proposto por Handke equivale, sob certo ponto de vista, à composição de Sorgente. É inegável o “jogo” simétrico de repetição tanto no texto quanto no chapéu. Inegável também a profusão de elementos capazes de entorpecer os sentidos de quem vê/ouve. Em ambos os casos, me parece, mais do que pretender uma apreensão lógica e racional dos enunciados, a intenção é causar um efeito quase sinérgico no espectador. Os dois artistas operam com o ritmo, com a pausa (vide a conformação gráfica do trecho de Handke), com o excesso. Em outras palavras, é como se a tradução do texto dramático (não necessariamente Gritos de socorro) pudesse ser representada em termos pictóricos pelo chapéu de Papa Palmerino.

Ainda, é como se a uma jaqueta de Rock N Roll, a uma fantasia de Miyama, a um adereço de Borges Falcão ou a um cajado de Logan pudéssemos corresponder e criar uma dramaturgia. Ou ainda: que rico exercício é a identificação de uma composição dramatúrgica nesses objetos, uma tradução para teatro de tais repetições, recortes, sobreposições, variações, etc. Mesmo porque, para todos aqueles artesãos, as criações paramentavam o criador, serviam todas elas a uma performance. Serviam a uma cena.

Adélia Nicolete
 
Papa Palmerino pode ser visto no Youtube. O endereço é:

* ROUSSEAU, Valérie. Palmerino Sorgente. In: AMERICAN FOLK ART MUSEUM. When the curtain never comes down : performance art and the alter ego.  New York: American Folk Art Museum, 2015.  p. 112 (Tradução de Bernardo Abreu)

** Idem. p. 113

*** HANDKE, Peter. Gritos de socorro. In: HANDKE, Peter. Peter Handke: peças faladas. Org. e trad. de Samir Signeu.  São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 218