domingo, 15 de novembro de 2015

Ateliê de Dramaturgia na UDESC – III – Dramaturgia do descarte


Arthur Bispo do Rosário veste uma de suas criações
(Fonte: internet)

Ao dar continuidade às propostas de escrita a partir do contato com as artes plásticas, o terceiro encontro do Ateliê de Dramaturgia na UDESC foi direcionado à temática do descarte. Para tanto, nos valemos da apreciação de alguns artistas performers e também de peças teatrais cujos procedimentos de criação assemelham-se ao das linguagens visuais no sentido de operar com materialidades de origens diversas.

Uma das características mais marcantes da pós-modernidade é a exacerbação do consumo em todos os níveis. Decorre daí um grande volume de material descartado e, em nível filosófico e existencial, a tentativa de lidar com o provisório e o superficial, com o que é passageiro, frágil e de curta validade. O ser humano, em busca permanente de sentido para si e para o que está ao seu redor, debate-se na tentativa de lidar com a sucata, com o dejeto, o resíduo, a sobra, o resto.

Dessas tentativas resultam trabalhos como os do norte-americano RockNRoll, do brasileiro Raimundo Borges Falcão, do japonês Eijiró Miyama – todos já contemplados neste blog – e de Arthur Bispo do Rosário.

Eijiró Miyama vestido com uma de suas criações
(Fonte: internet)


Tais artistas, como tantos outros a lidar com o descarte, partem de um impulso interno de organização e criação, impulso esse que determina o tipo de material a ser colecionado, bem como seu direcionamento a certa resultante. O processo é semelhante na maioria dos casos apreciados e percorre busca, identificação e coleta, seguidas de seleção, composição e formalização.


A técnica compositiva vale-se de seriação, sobreposição e repetição, podendo ocorrer também a justaposição e a fragmentação dos materiais selecionados. Costura, bordado e colagem são procedimentos comuns aos artistas escolhidos para o encontro e, não bastasse a criação dos objetos, eles assumem-se também como performers de sua obra.


Casaco criado pelo artista RockNRoll
(Coleção Lisa Spindler)


No que tange à dramaturgia teatral, analisamos trechos de peças de padrões não mais dramáticos, compostas via intertextualidade, fragmentação, justaposição de imagens, listagem – num paralelo com as obras de arte apreciadas. 

Um dos textos escolhidos para leitura e análise foi “X-WRITE”, de Ana Luísa Santos, dramaturga e performer mineira. O trecho inicial dá uma ideia das estratégias compositivas da autora, que segue na mesma proposta até o final da peça:

EU SOU DE AÇÚCAR
EU QUERIA FAZER UM DIÁLOGO ATÉ DERRETER
MAMÃE PASSOU STÉVIA EM MIM
PAPAI NÃO FALA SOBRE ISSO
VOCÊ SÓ DUBLA
IGUALZINHO COM A GENTE
ACHEI MASSA DO PERFIL_
A CASA DELE É TODA TOSCA_
NÃO TEM NADA DE FEMININO_
ATÉ DÁ MAIS CAMADAS_
É UMA COISA ESTEREOTIPADA MESMO
CRISE SOCIAL_
CRISE SEXUAL_
CÉU SOBRE OS OMBROS_
OLHAR PELA FECHADURA
UMA TRAVESTI QUE ESCREVE_
FAZ PROGRAMA E FAZ MESTRADO
COMO A GENTE É PRECONCEITUOSO
É PORQUE EU NÃO ASSISTO
VIAGEM SOLITÁRIA_
LUTA CONTRA O CORPO
CONFLITOS NORMAIS DO SER HUMANO
-


Ana Luísa Santos vale-se da colagem como técnica principal. Segundo ela, depois de criados e/ou coletados os fragmentos, foram testadas diversas disposições. Chegou-se a utilizar literalmente do recorte em papel de cada um dos itens da lista a fim de experimentar as localizações em nível rítmico, gráfico e temático, por exemplo, o que sugere novas possibilidades de arranjo. Em outras palavras, trata-se de um texto-jogo de infinitas possibilidades.

De certo modo, tais possibilidades ganham quase uma progressão geométrica, na medida em o público participe da elocução e/ou da leitura do texto, o que ocorreu em duas apresentações propostas pela dramaturga-performer. Na primeira, o texto foi distribuído a leitores específicos, que tinham os pés mergulhados em bacias com água, e páginas igualmente distribuídas aos espectadores, que puderam não só acompanhar a enunciação feita por outrem, como também ler em voz alta quando lhes aprouvesse. Tal estratégia foi utilizada quando de nossa leitura no Ateliê de Dramaturgia na UDESC, o que propiciou protagonismos e momentos corais, a propiciar sentidos diversos aos materiais propostos por Ana Luísa.


A segunda encenação feita pela dramaturga contou com um telão onde o texto foi projetado de modo espelhado e outro em que se podia ver o rosto da atriz em tempo real. O público acompanhava a peça pelo telão, enquanto a performer, ao microfone, lia em um teleprompter, mais uma vez com os pés submersos. Comandado por um parceiro “de jogo”, o teleprompter exibia o texto ora num ritmo normal, ora acelerado, ora pausado, obrigando a intérprete a alterar voz, corpo e estados internos.

Ana Luísa Santos em apresentação no evento "Janela de Dramaturgia" - BH
(Foto: Ethel Braga)



Ana Luísa Santos em apresentação no evento "Janela de Dramaturgia" - BH
(Foto: Ethel Braga)


Ana Luísa Santos em apresentação no evento "Janela de Dramaturgia" - BH
(Foto: Ethel Braga)

Sob certo ponto de vista, “X-WRITE” pode ser considerado um texto polifônico na medida em que congrega vozes perceptivelmente diferenciadas. Encontra-se ali a fala das ruas e da sala de estar; a conversa de comadres e o discurso publicitário; a fofoca, a manchete, postagens e comentários das redes sociais; o verso poético e contemplativo, o grito, a angústia. Podem-se ouvir os manifestos das ruas, o noticiário, as reflexões filosóficas e sociológicas, de um sem número de fontes.

Ana Luísa Santos é observadora atenta. Coleciona o que seus olhos e seus ouvidos consideram legenda do mundo contemporâneo e, a partir do material coletado – verdadeiros descartes – cria dramaturgia e cena, na maioria das vezes, com a colaboração do público. 

***

Logo após a análise de alguns trechos de dramaturgia, os participantes do Ateliê foram convidados a relacionar "materiais" descartáveis, ideias e conceitos fora de uso, termos já sucateados ou esvaziados de seu sentido e, a partir da seleção de alguns deles, criar um material textual com base nas estratégias compositivas estudadas anteriormente.



Adélia Nicolete


* Sobre esses artistas e a dramaturgia do descarte, consultar as postagens sobre

Raimundo Borges Falcão

Rock'N'Roll

Eijiró Miyama