domingo, 16 de junho de 2019

Prefácio do livro "Entrelinhas, sinais e sentidos", de Renata Fonseca



Em 2016 teve início a primeira turma da Pós-Graduação em Artes-Manuais para a Educação, coordenada pela Profª Drª. Nina Veiga, em São Paulo. Depois de um ano e meio de curso, foram apresentados os trabalhos de conclusão e eu participei da banca de alguns, dentre os quais "Entrelinhas, sinais e sentidos", defendido por Renata Fonseca. Numa iniciativa inédita, todos os textos foram publicados em uma coleção e eu tive o prazer de prefaciar o livro de Renata - linhas que compartilho a seguir.





“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento,
o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota
em que seu pai o levou para conhecer o gelo.
Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara,
construídas à margem de um rio de águas diáfanas
que se precipitavam por um leito de pedras polidas,
brancas e enormes como ovos pré-históricos.
O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome
e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo.”

Cem anos de solidão
(Gabriel García Márquez)


Desde suas primeiras linhas, Cem anos de solidão é anunciado como um relato memorialístico. Ao longo de mais de trezentas páginas, García Márquez, por meio de seu narrador, nos levará a conhecer a família Buendía, o povoado de Macondo e, num fluxo subterrâneo de águas ora diáfanas ora lodosas, a história da Colômbia e, por extensão, da América Latina. Um romance que marcou toda uma geração de leitores e influenciou a literatura subsequente a ponto de reconhecermos sua presença em um sem número de obras, não só da ficção como também da academia – caso do presente livro de Renata Gladcheff Fonseca, fruto de sua Pós-Graduação em Artes-Manuais para a Educação.

Nossa epígrafe avisa que no tempo em que Macondo era apenas uma aldeia, “o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo” – tal foi a motivação inicial da autora para sua pesquisa: a jovem mãe de um menino com dificuldades de audição em um contexto que não estava preparado para lidar com isso. Seria preciso muito empenho, muita procura e, principalmente, muito amor para “inventar nomes” e modos de proceder. E foi isso que ela e seu marido fizeram: saíram em busca de escolas que pudessem atender o menino.

Décadas depois, o filho crescido, casado e pai – o mundo já minimamente nomeado –, a agora pesquisadora refaz parte da trajetória a fim de verificar o panorama de “Macondo” e, por extensão, o nacional. Como estavam o Brasil e o mundo naquele período? Como estão hoje? Em que medida o tratamento dado aos alunos com dificuldades auditivas e às artes-manuais reflete a passagem do tempo?
Enquanto reflete sobre esses temas, a narradora viaja, conhece outros artistas, encontra um talentoso rapaz em seu estágio - continua a buscar ou a criar novos sentidos e trata de compartilhá-los conosco.

Conforme pede a narrativa memorialística documental, Renata parte de uma inquietação do presente para empreender buscas no território da recordação. Para conferir um distanciamento crítico ao falar de si, propõe uma narrativa em terceira pessoa, o que se mostra ao longo do texto um recurso ora crítico, ora poético, mas sempre atento ao ir e vir da memória. Como no crochê, a narradora lança a agulha por dentro do ponto já feito (uma situação do passado) e puxa o fio que, por sua vez, trama um novo ponto. Assim, ela fala da jovem que se recusou a aprender crochê com a avó, mas que agora se vê a recuperar o tempo “perdido”; volta à escola em que seu filho estudou, hoje como pesquisadora a traçar paralelos entre os modos de ensino-aprendizagem das artes-manuais. Logo adiante, volta ao livro que leu na juventude e faz outro ponto.

Não à toa Renata se propôs o desafio de desenvolver um tapete de crochê, ele mesmo um duplo artístico de seu texto: as dúvidas, os impasses, as questões da escrita, enfim, encontravam seu reflexo no “faz e desmancha” do tapete, nas pausas criativas, por exemplo. Diga-se de passagem, a memória trabalha igualmente com o “faz e desmancha”: a depender de como estamos no momento, olhamos para o passado de uma forma. Se alguém interfere numa lembrança, traz outro ponto de vista, uma informação desconhecida, desmanchamos a imagem para reconstruí-la de um outro modo.

Sob esse ângulo, Entrelinhas sinais e sentidos é uma bela conjugação de fundamentação teórica, da memória, da pesquisa empírica, da criação manual e da vida vivida. Um relato tecido com cheiros, sabores, músicas, texturas diversas, mas também com o bom humor e a ironia característicos da autora, assim como sua delicadeza. Daí tornar-se fácil a identificação.

Identificamo-nos com a jovem rebelde e mochileira, que se recusou a aprender crochê. Com a leitora atenta de García Márquez, mais tarde incansável mãe, com a profissional da enfermagem a usar as mãos nos cuidados do outro. Nos envolvemos com a avó amorosa, com a viajante, com a artista-manual redescoberta, com a estudante de pós e com a mulher aposentada que, finalmente, poderá realizar todos os sonhos que deixou à espera.

Ao final da leitura, a imagem que guardo da autora é a da eterna jovem destemida e aventureira. Na mochila agora lãs e linhas, agulhas e livros, papel e caneta – ou quem sabe um notebook – para os infinitos modos de registro. Porque há um mundo a se fazer e é preciso compreender os seus sinais, nomeá-lo e, quem sabe, atribuir sentidos a ele.


Adélia Nicolete



FONSECA, Elizabeth Renata Gladcheff. Entrelinhas, sinais e sentidos. Org. de Ana Lygia Vieira Schil da Veiga. São Paulo: Círculo das Artes, 2018. (Coleção ARTES-MANUAIS PARA A EDUCAÇÃO: aprendizagem e processos de singularização; vol. 14)