sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Ateliê de Dramaturgia Solo - São José dos Campos




“Uma micropolítica é ativa quando o desejo se deixa guiar por aquilo que lhe indicam os embriões de futuros; neste caso, a germinação vai se completando num processo de criação até encontrar palavras, imagens, gestos etc, que lhes permitam deixar o ninho e voar para o mundo. O que resulta disto é uma diferença, um devir de nós mesmos e de nosso campo relacional, com potência de proliferação por toda trama social. Este é o destino ético da pulsão, aquele em que a vida se afirma em sua força de transfiguração. Poderíamos dizer que o inconsciente é esta fábrica de mundos. Estar à altura desse tempo e desse cuidado para dizer o mais precisamente possível o que sufoca e produz um nó na garganta e, sobretudo, o que está aflorando diante disso para que a vida recobre um equilíbrio – esta é, precisamente, a tarefa de uma micropolítica ativa.”
Suely Rolnik
Entrevista ao Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco



O convite partiu de Atul Trivedi, um dos curadores do evento “Noites em Processo”, idealizado e coordenado por Wangy Alves ao longo desses oito anos. Mostra a cada edição mais intensa, congrega durante dez noites oficinas, partilha de processos criativos seguidos de reflexão, palestras, mesas temáticas, espetáculos itinerantes e leituras dramáticas, tanto na Fundação Cultural Cassiano Ricardo, em São José dos Campos, como nos bairros e distritos vizinhos. Intercâmbio entre artistas, formação de público, debates - política cultural da melhor qualidade.

Chegou-me a proposta logo após o impacto do segundo turno das eleições e com carta branca para que eu desenvolvesse um Ateliê de Dramaturgia em oito encontros. Mais do que nunca, pareceu-me impossível desvincular o exercício dramatúrgico das atuais circunstâncias, o que inspirou um projeto que tomasse como disparador as urgências de cada participante rumo às urgências coletivas. Micropolítica ativa. Projeto-projétil: prático, portátil, direto, viável, adaptável, possível num contexto de investimentos baixos em educação, arte e cultura em geral. Num contexto de censura e preconceito rumo à consagração da ignorância.

Daí que decidi propor um Ateliê rente à minha pesquisa dos chamados “solos teatrais” contemporâneos: trabalhos em sua maioria idealizados e realizados por um/a artista, a partir de seu desejo de pesquisa – pulsões internas, subjetivas ou sociais, coletivas – e que chega ao público, muitas vezes, sem o destaque das grandes produções, até porque trafegam na contramão dos padrões estabelecidos e estabelecem novos modos de criar e fruir a cena.  Trabalhos que podem até contar com a participação, voluntária ou não, de outros/as profissionais, mas que solicitam fundamentalmente o empenho – e muitas vezes o investimento financeiro – do indivíduo que os propôs. 


Quatro particpantes que chegaram ao fim da jornada
Willyam, Guilherme, Claudio e Vitor
(Foto: Atul Triveli)

A partir das urgências de cada participante, foram trabalhados conteúdos relativos à forma dramática e suas subversões, bem como aos diversos sentidos da dramaturgia e à sua função, exercida por todas e todos componentes da equipe. Fizemos um apanhado histórico do formato no Brasil, com destaque para Denise Stoklos, e analisamos trechos de espetáculos e de textos a fim de refletir a respeito das proposições, dos processos e das soluções estéticas encontradas. Exercícios de escrita e de cena foram apresentados e discutidos a fim de promoverem o desenvolvimento dos projetos pessoais que, espero, encontrem em breve as urgências comuns e promovam, com isso, as transformações tão necessárias.

Ao fim da jornada, realizamos a leitura cênica de “Peixes”, peça resultante do solo criado por Ana Régis, atriz, professora e dramaturga mineira, em circuito na periferia de Belo Horizonte. A ela será dedicada nossa próxima postagem.

Muito obrigada a Ana Régis, Janaína Leite, Grace Passô, Sara Antunes, Eduardo Okamoto, Silvero Pereira, Assis Benevenuto, Paulo Azevedo e Raysner de Paula por suas criações, por disponibilizarem textos, vídeos e relatos de processo. 

Agradeço a todas e todos que passaram pelo Ateliê, à organização e à equipe técnica e de produção: obrigada pelas trocas! Incríveis! Foi também revigorante acompanhar as mesas de debate e assistir às cenas em processo durante o evento - tantas reflexões, tantas promessas! 

Encerro 2018 com o coração arejado pelos encontros artísticos e afetivos - que eles se repitam e se fortaleçam no ano que em breve chegará!

Adélia Nicolete








terça-feira, 30 de outubro de 2018

"O jogo do amor e do acaso" - Pierre de Marivaux




Durante muitos anos atuei como professora de Iniciação Teatral, História do Teatro e Dramaturgia nas Faculdades Integradas Teresa D’Ávila, mais tarde Coração de Jesus, em Santo André. Era a única instituição de ensino superior no ABC Paulista a oferecer cursos na área de Artes – Licenciatura e Bacharelado em Música, Artes Plásticas, Desenho e Artes Cênicas. Se uso o verbo no passado é com imensa tristeza: a FATEA ou FAINC já não existe e, portanto, uma das regiões mais adensadas do estado de São Paulo deixou de contar com uma faculdade voltada para a formação de artistas e professores. Fechou as portas sem qualquer comunicação oficial à comunidade, como se fosse quitanda, boteco ou loja de R$ 1,99. Como se não fizesse diferença.

Provável é que a justificativa seja econômica, pois há um bom tempo temos acompanhado a investida furiosa de grandes investimentos no ramo. A educação de qualidade é, a cada dia, substituída por um tipo de negócio que lucra, no mínimo, a partir de quatro fatores: baixo salário dos professores e funcionários, mensalidades a preço promocional, cursos de duração reduzida e grande número de alunos em sala de aula. A qualidade do ensino não entra em questão, tanto que muitos dos estabelecimentos em questão ficaram conhecidos por “vender diplomas” a prazo e não pela excelência. Diante desse massacre, é difícil a uma instituição séria resistir.

É de se lamentar a desativação de uma vasta biblioteca temática, das salas de aula adaptadas, dos laboratórios e ateliês. Com o fechamento da FATEA/FAINC e o descaso com relação à Escola Livre de Teatro, ambas em Santo André, o futuro da Arte e da Cultura na região está visivelmente comprometido.



Vista aérea do prédio da FATEA/FAINC
(foto: internet)


Dentre os trabalhos que realizei na FAINC, um deles foi a tradução e adaptação de um texto de Pierre de Marivaux (França 1688-1763) – O jogo do amor e do acaso, escrito em 1730. Autor de peças para a Commédie Française e para a Commédie Italienne, Marivaux foi um dos maiores autores de seu tempo. A decisão pelo texto surgiu do trabalho interdisciplinar que realizávamos à época, em 2007: estudávamos o Renascimento no teatro durante as aulas de História, a professora Solange Dias abordava os fundamentos da Commedia Dell’Arte em suas aulas de Encenação, Daniele Pimenta coordenava os estudos de corpo e voz, enquanto Celso Motta encarregava-se da pesquisa e elaboração de cenografia e figurinos. 



Grupo de alunos sob a direção de Solange Dias
Ao centro, a diretora à época - Ir. Theresinha Carvalho Castro
(Foto: Cassia Regina / Kiah Kilk)

A trama

Orgon deseja casar Silvia, sua filha, com o jovem Dorante, filho de um velho amigo. A moça resiste a desposar alguém que não conhece, por isso propõe ao pai trocar de lugar com sua criada Lisette a fim de observar melhor o pretendente. Orgon está de acordo e confidencia a seu filho Mario que Dorante teve a mesma ideia: virá visitá-los disfarçado como seu criado Arlequim.

Em pouco tempo, Silvia percebe qualidades significativas no suposto criado e, da mesma forma, Dorante encanta-se pela jovem que supõe a serviçal de sua pretendente. Não é preciso dizer que a dupla cômica Lisette e Arlequim, travestidos de patrões, enamora-se sem grandes dificuldades.


Seria um simples jogo se Marivaux não abordasse os conflitos internos de Silvia e Dorante ao verem-se apaixonados por quem julgam ser a criadagem. No entanto, a crise é superada de forma a unir os enamorados e a provar que o amor e o acaso são parceiros no jogo da vida.


2016 - Produção televisiva francesa de
O jogo do amor e do acaso


A adaptação


O jogo do amor e do acaso é uma das peças mais conhecidas do autor, mas não bastaria traduzi-la, teria de adaptá-la ao grande número de alunos, pois não queríamos revezá-los nos papeis. A solução encontrada foi criar e modificar alguns personagens e integrá-los à trama. Assim, ao núcleo original proposto por Marivaux acrescentei Ragonda, uma cozinheira, as criadas Beliza e Coralina, dei um pai e uma irmã a Dorante, Senhor Remy e Isabella, respectivamente, e troquei Mario por Flaminia, uma governanta. Tais acréscimos geraram uma abertura e alguns intervalos cômicos, além de duas novas relações amorosas, tão ao gosto dos jogos de amor de Marivaux.


Tradução e adaptação estão disponíveis neste link e poderão ser utilizadas gratuitamente para fins acadêmicos, desde que comunicada a tradutora.


Adélia Nicolete



sexta-feira, 28 de setembro de 2018

"Se essa rua fosse minha" - questões de gênero e abuso no teatro para a infância





Será que existe mesmo brincadeira só de menina ou de menino? E profissão de homem e de mulher tem muita diferença? Em casa, quem sai para trabalhar fora e quem faz o trabalho doméstico? Tais perguntas povoam cada dia mais o nosso cotidiano, assim como outras do tipo Quem pode tocar o corpo de uma criança? A quem ela pode recorrer no caso de se sentir desrespeitada?

No ano de 2007 fui convidada pela dramaturga e diretora Solange Dias a integrar, junto ao Teatro da Conspiração, um projeto vinculado à Secretaria de Saúde do município de Diadema, na Grande São Paulo. O objetivo era abordar alguns temas por meio do teatro e, com isso, despertar o interesse da população para discussões e ações a curto e médio prazo. Um dos temas era o abuso infantil, bastante presente naquela cidade. A equipe pretendia que, ao assistirem a encenação e depois conversarem a respeito com professoras e professores, as crianças encontrassem neles uma figura de apoio e referência.

No texto escrito por mim para fins didáticos e levado à cena pelo Teatro da Conspiração naquele mesmo ano, três crianças passam a tarde em brincadeiras: oportunidade para que venham à tona preconceitos, questões de gênero e, muito sutilmente, o abuso infantil – sua ocorrência, as tentativas de silenciamento e as opções de denúncia. De acordo com o perfil do grupo, os papeis podem ser desdobrados ou, em certos casos, interpretados por várias atrizes e atores, por alunas e alunos, entre outras adequações/apropriações. Penso que o mais importante são as questões geradas no processo de montagem e, sem dúvida, com o público após as apresentações.

“Se essa rua fosse minha” encontra-se disponível nesse link para download gratuito. Caso haja interesse na encenação, basta entrar em contato com a autora. Os direitos estão liberados para apresentações em escolas ou quaisquer propostas sem fins lucrativos.

Adélia Nicolete

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

"O que os meninos pensam delas?" - teatro para adolescentes





Em meados dos anos 1990, fui desafiada por dois amigos a levar para a cena o triângulo amoroso entre Arlequim, Pierrô e Colombina. A ideia era algo romântico e em versos para que pudessem exercitar a commedia dell’arte e levantar o espetáculo com apenas três intérpretes (leia-se poucos recursos). Não me lembro por quais motivos – quem sabe a incompetência da dramaturga tenha sido um deles? – a adaptação nunca foi feita. Acontece que a semente acabou por germinar num outro texto anos depois, “O que os meninos pensam delas?”, dirigida ao público juvenil, onde pude abordar os dilemas amorosos próprios da fase, a amizade, a relação entre irmãos e também a influência dos meios de comunicação de massa. Reluto em classificar como comédia, pois temo que a encenação exagere e resulte em algo caricato. Digamos que seja uma peça leve, a contrastar com o peso das emoções juvenis.

Para minha alegria, esse triângulo amoroso já teve encenações em todo Brasil e, embora tenha sido escrito na era pré-internet, telefone celular e redes sociais, parece falar de perto a um bom número de jovens. Costumo dizer a quem me procura que “O que os meninos pensam delas?” pode ser usado apenas como um disparador para a criação das próprias cenas do grupo. Pode ser usado em partes, pode ganhar um antes e um depois, pode acolher questões raciais, de classe, de gênero – como foi para mim um disparador a relação entre Arlequim, Pierrô e Colombina.

Fundação das Artes de São Caetano do Sul
Encontro com o elenco dirigido pela professora Paula Venâncio
setembro 2018


Nesse link você encontra o texto na íntegra e caso queira encená-lo ou tomá-lo como base para um trabalho com jovens em ambiente escolar ou amador, pode fazê-lo gratuitamente. Peço apenas que entre em contato comigo para que eu saiba por onde têm voado minhas letrinhas.

Adélia Nicolete


 

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Dona Bem, guardiã da memória - Parte II: caverna do tesouro


Dos meus livros de infância, um dos preferidos era “As mais belas histórias”, organizado por Lúcia Monteiro Casasanta. Nele eu encontrava Esopo, irmãos Grimm, Andersen, mas também mitologia e alguns autores brasileiros. Lia e relia, sempre com interesse renovado. As histórias alimentavam-me a alma e, hoje sei, o imaginário. Tanto que, ao visitar o “Cantinho da Vovó Bem” lá em Poconé, tive a impressão de adentrar na caverna de Ali Babá!

Uma das salas do museu domiciliar de Dona Bem
(Foto: internet)

Ali estão guardados tesouros recolhidos durante décadas. Objetos de família a registrar artes e ofícios, hábitos e costumes da vida pantaneira. Outros foram trazidos por amigos ou garimpados nas fazendas e na vizinhança, graças a indicações: “Dona bem, em tal lugar tem coisa pro seu museu!”. E lá vai a colecionadora buscar e salvaguardar do esquecimento.

O hábito pantaneiro do guaraná em pó e
os apetrechos utilizados para consumo em casa e
nas viagens
(Foto: internet)

Louças antigas
(Foto: internet)

A princípio o acervo estava disposto de modo informal e intuitivo. Depois de alguns anos de atendimento, porém, ao receber a visita de representantes do Cadastro Nacional de Museus, a exposição foi organizada por grupos de objetos e dividida em dois ambientes.

No primeiro plano, a prensa de modelar ladrilhos hidráulicos
(Foto: internet)

A área que abriga os objetos da cozinha pantaneira
(Foto: Adélia Nicolete)

Não se trata de um museu nos padrões consagrados, pois ali não encontramos legendas ou placas de identificação. Talvez seja essa a maior motivação para se conhecer o espaço: ali tudo ganha vida e sentido pela voz de Dona Bem. O percurso que ela tanto conhece, as histórias ligadas a cada objeto – sua origem, sua utilização, as circunstâncias que o levaram até ali – as comparações entre hoje e os antigamentes só podem ser conhecidos na relação, no diálogo com a colecionadora. Não fosse assim, tudo se transformaria em coisa velha, todo o tesouro de Ali Babá perderia o brilho aberta a caverna.

(Foto: Adélia Nicolete)

Iniciativas como o Cantinho da Vovó Bem precisam ser conhecidas e divulgadas. Sinalizam o esforço pessoal de preservação da memória não só pela conservação material, mas pelo convívio com testemunhas de outros tempos. Ali se dá o diálogo vivo entre passado e presente, entre memória e História, para além do poder público, das burocracias, da máquina que dificulta a composição e a manutenção de acervos a ponto de incendiá-los.

Adélia Nicolete

Veja aqui a postagem anterior e saiba mais sobre Vovó Bem e como chegar ao seu Cantinho. 


segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Dona Bem, guardiã da memória - Parte I: prendas domésticas e filosóficas



Placa à entrada do museu domiciliar de Vovò Bem.
É só agendar, chegar e bater.
(Foto: Adélia Nicolete)

Conservo objetos antigos em minha casa. São lembranças de avós, tias, de meus pais, objetos afetivos que, ao serem olhados ou tocados lembram minhas origens, sinalizam quem sou através daqueles e daquelas que me antecederam. Tenho primos que montaram uma espécie de museu em sua propriedade na mineira Itajubá. Artigos os mais diversos, estão ali para mostrar aos familiares e amigos como eram os tempos antes do celular, do computador, das modernidades todas. Penso que muitos de nós mantêm sua pequena “coleção de memórias”, mas juro que não conheço uma pessoa sequer como Vovó Bem, que fez do quintal de sua casa um museu aberto à comunidade.


De tanto ser chamada de “bem” pelo marido, dona Maria Piedade ficou conhecida em Poconé como Dona Bem. Os anos passaram, os filhos cresceram, estudaram, casaram-se e deram-lhe netos que, a partir de então, nomearam-na Vovó Bem.

(foto: Adélia Nicolete)


Maria Piedade casou-se aos 17 anos, em 1955. Na época trabalhava como balconista em uma loja da praça, mas antes disso já estava no magistério.


_ Aos 15 anos comecei a ajudar uma professora no Colégio Caetano e logo fui nomeada – naquele tempo não era preciso ser formada para dar aula. Da cidade fui transferida para um sítio bem longe e lá fiquei hospedada na casa de um conhecido, que depois virou meu compadre e tudo. Aos 16 anos pedi transferência para cidade e comecei a trabalhar na loja, de modo que quando eu me casei eu já trabalhava no balcão e ainda era professora.

Curiosa de enxovais, pergunto a respeito do seu. 

_ Aqui não se usa falar enxoval, mas aprontação. Aprontação de casamento, aprontação de recém-nascido. A moça leva de tudo que precisa. Eu levei. Levei toalha de banho, camisola bonita enfeitada de renda ou então bordada à mão, anágua, penhoar. As pessoas que tinham mais dinheiro mandavam fazer redes lavradas – eu mesma tive uma tia que lavrava a rede no tear: ela tecia a rede e ia tecendo as iniciais dos noivos junto. Estudei em colégio de freira, aprendi a bordar, a fazer tricô, essas coisas, mas como eu trabalhava fora quando me casei e não tinha tempo de fazer nada, o meu enxoval foi feito pela minha mãe, pela minha tia. Muita gente ajudou.


Baús de enxoval expostos do museu
(Foto: Adélia Nicolete)


Vovó Bem ainda se lembra das amigas e de mulheres de sua família a fazer aprontações de casamento.

_ Me lembro da minha irmã, que sabe abordar muito bem esses bordados bonitos de marcar lençóis – ela inclusive ensinava a moçada a bordar em casa.  Cada moça tinha seu baú. Aquele baú mais antigo que a gente viu ali no museu, eu encontrei jogado num quintal! Me avisaram e eu fui lá buscar. Mas aqui em Poconé ainda há bastante daqueles lá, bonitos, conservados. Eles passam os baús de mães para filhas e hoje servem de enfeite ou de uso mesmo.


Toalha bordada pela irmã de Vovó Bem
(Foto: Adélia Nicolete)

Ela conta que sua avó e suas tias colhiam e fiavam o algodão para fazer lindos tapetes. Além disso, cuidavam da casa, costuravam e iam pra roça, pois moravam num sítio.

_ O tempo era outro - filosofa Vovó Bem sem o mínimo pesar. Agora existe muita coisa para distrair. O celular, por exemplo. Tenho aqui uma netinha pequena de dois anos que fica sentada na cadeira – é a coisa mais engraçada – desfiando o cabelo e olhando o celular. Dão coisa pra ela assistir e passa o dia se deixar! Outra coisa é a casa: antigamente a casa você limpava uma vez e pronto. Hoje ela é feita de um jeito diferente, o piso, as janelas, um tantão de móveis e você tem que limpar muito mais vezes, tem de limpar toda hora e ajeitar, isso toma tempo. Mudou também o modo de se fazer comida: hoje um quer uma coisa, outro quer outra! De primeiro, a mãe ou avó diziam: "hoje tem arroz e feijão" e ninguém queria outra coisa, ninguém podia querer outra coisa – era aquilo e pronto! "Se não quer, não come". Esse negócio mudou. Hoje em dia é assim (aqui em casa, pelo menos, é muito assim): a pessoa vê a comida e diz “Ah, é isso? Então eu não quero...” Aí eu digo “Tá bom, deixa, eu vou fritar um ovo para você...” E o tempo é outro também porque a gente está fazendo uma coisa e pensando em outra. Eu estou fazendo uma coisa e penso: daqui a pouco eu tenho que terminar tal coisa, preciso ir lá em tal lugar. A nossa cabeça se divide e daí não concentra no que faz, o tempo passa e a gente parece não fez nada. 




Uma das várias máquinas de costura expostas
(Foto: Adélia Nicolete)
Vovó Bem conta que sua avó colhia o algodão, descaroçava,
fiava e tecia as roupas da família
(Foto: Adélia Nicolete)

Fusos artesanais para fiação de algodão
(Foto: Adélia Nicolete)


Por falar em uso do tempo, Dona Bem ocupa-se de muitas tarefas: cuida da casa e do belo jardim que disputa espaço com o museu; da conservação do acervo e da recepção dos visitantes, além da fabricação de doces e licores com que mantém o espaço - como o ingresso é gratuito, a proprietária recebe doações voluntárias e vende seus produtos.

Orquídeas dão as boas vindas
(Foto: Adélia Nicolete)



Na próxima postagem, saberemos mais sobre o acervo histórico d'O Cantinho da Vovó Bem, que consta do Cadastro Nacional de Museus. Lá podemos encontrar endereço e telefone para agendamento.

Selfie com Dona Bem e Renato em seu jardim

A visita foi realidada na tarde do dia 11 de julho de 2018. Agradeço aos poconeanos Josenira e Pollyana pela indicação e Renato pela companhia.


Adélia Nicolete

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Ateliê de Dramaturgia - Trupé de Teatro


Esta não é a primeira postagem sobre a Trupé de Teatro aqui no blog e, tenho certeza, não será a última. Um pouco atrasada no tempo do relógio, publico hoje um encontro acontecido em outubro do ano passado, quando o coletivo promovia as oficinas temáticas durante a Mostra de Artes “Do bolso à praça”, uma das ações do Proac “Território das Artes”, prêmio recebido em 2016.



O Núcleo de Dramaturgia coordenado por Débora Brenga trabalhara reflexões e textos a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o grupo desafiou-me a conduzir um Ateliê intitulado “Eu, Tu, Ele - Nós, Vós, Eles”. O objetivo principal era investigar a narrativa em primeira pessoa numa abordagem entre o real e o ficcional. Na fria sorocabana, incandescemos.

Depois de refletir um bocado acerca do título, decidi abordar um tema premente que também contemplava a questão dos direitos humanos: o trânsito de refugiados. Os noticiários e o próprio cotidiano se encarregavam de nos colocar frente à frente com o assunto e o filme “Era o Hotel Cambridge”, lançado há pouco no Brasil, valia-se do movimento dos sem-teto para trazer à tela o drama de homens e mulheres a procurar refúgio em nosso país. Daí a buscar referência nas fotografias de Sebastião Salgado foi um passo.


Foto: Sebastião Salgado

No livro Êxodos – registro fotojornalístico de movimentos populacionais mundo afora – encontrei a imagem que serviria de disparador para a criação dos textos. A princípio ela foi tão somente exibida e apreciada pelo coletivo, não divulguei o lugar ou a situação em que foi flagrada. Minha intenção era que as sensações e ideias brotassem da própria foto e não de informações factuais a seu respeito.

Durante a apreciação levantamos uma serie de elementos presentes e tratamos de imaginar outro tanto. Estabelecemos relações entre os retratados, criamos situações possíveis, enfim, exploramos a cena que se nos apresentava pelo olhar de Sebastião Salgado.


A próxima etapa foi a escolha de uma determinada pessoa da foto para que narrasse aquele momento vivido. A tarefa de cada participante do Ateliê seria, então, compor uma narrativa a partir do estabelecimento de um/a enunciador, de suas motivações, de seu ponto de vista, de suas expectativas e assim por diante. Em outras palavras, a personagem compartilharia em primeira pessoa a experiência daquele momento, mas num tempo futuro, trajetória já feita.

Carlos Doles no escritório da Trupé

Josias Padilha preferiu escrever em pé, no bar do teatro

Mariana Bizzotto compõe sua narrativa à vontade
no piso do espaço cênico




















Dado o tempo para as criações individuais, foram feitas a leitura e a análise dos textos. É sempre surpreendente observar a riqueza desse tipo de trabalho – a variação de abordagens, de tons e mesmo de formatos. Uma das escrevedoras operou de modo tão precioso o ritmo e as imagens, que parece ter composto uma canção. Bob Dylan, pensei! E sugeri a ela que, professora de inglês, fizesse a versão. 

Tivemos, ao final, dez narrativas de travessia a dialogar com a foto de Sebastião Salgado que, agora sim, pode ser revelada:



***

Agradeço ao grupo pelo convite e mais: pelo privilégio de vivermos teatro juntos durante todo esse tempo. 

E como o blog é meu e quem manda aqui sou eu, vou dizer e pronto: amo vocês muito mais que coxinha da Padaria Real!

Adélia Nicolete









terça-feira, 31 de julho de 2018

Prefácio do livro "A encomenda", de Heloísa Cardoso


Arte: Gabriela Ribeiro

A dramaturga Heloísa Cardoso teve seu projeto Odisseia por elas aprovado na edição 2017 do PROAC Dramaturgia. Durante o processo, ela compartilhou em vídeo algumas das fases da pesquisa e da criação que resultaram na peça A encomenda, inspirada nas figuras femininas da Odisseia de Homero. O próximo passo é a publicação do livro. Convidada a escrever o prefácio, reuni algumas amigas e, feito Penélope, tecemos uma rede para saudar o texto e a jovem autora. Que nada a desmanche.

Livro publicado pela editora Patuá
Capa: Andréa Tolaini



PREFÁCIO POR ELAS


"sou uma mulher do século XIX
disfarçada em século XX"
Ana Cristina Cesar


Desde a mais remota ideia de nosso nascimento, gerações incontáveis atrás, uma caixa está à nossa espera. Dentro dela estão depositados uma infinidade de conteúdos, semelhantes aos de milhões de outras caixas ou específicos de um tempo, de um lugar, de uma certa condição dada ao nosso berço. Mal saímos à luz, é esperado que nos conformemos ao pacote e a todas as expectativas ali contidas. Ele nos acompanhará desde o primeiro vagido até os estertores finais e a cada vez que nos levantarmos, ou mesmo em sonho, lá estará ele, incólume, a nos desafiar.

Creio que saibam do que se trata: do amontoado de conceitos, ideias, valores, leis e normas a que se submeter; do feixe de narrativas, de exemplos e modelos a seguir. Pautam nosso pensamento e nosso comportamento, nos doutrinam, subjugam nosso corpo, determinam nossas relações familiares, afetivas e sociais; conferem-nos papéis e roteiros, convencionam que a uns caberá a caça e o provimento e a outras, a procriação da espécie e a domesticidade. Louvam a força, o heroísmo e a aventura de um gênero, preceituam a castidade, a docilidade e a abnegação do outro. Estampam, desse modo, as figuras de protetores e protegidas, justificam subordinações e dependências que se estendem do nível econômico ao emocional. A romancista inglesa Virginia Woolf chamou tais figuras de “Anjo do lar” e afirmou tê-la assassinado a fim de se tornar uma verdadeira escritora. Nossa trajetória, vista à distância, é a relação diuturna com essas imagens, com essa caixa e penso ser a respeito disso que Heloísa Cardoso trata em sua peça A encomenda, que tenho a ventura de prefaciar. 


(...) Imaginei que voltarias como prometeste 
Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome. 
(Acho que te criei no interior de minha mente

Deveria, em teu lugar, ter amado um falcão  
Pelo menos, com a primavera, retornam com estrondo 
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro:   
(Acho que te criei no interior de minha mente.)” 
Sylvia Plath


Inspirada pelas figuras femininas presentes na Odisseia de Homero, Heloísa propõe um jogo relacional que, numa primeira leitura, nos parece a estilização do vínculo entre Ulisses e as diversas mulheres que conheceu em sua perambulação. No caso, o herói seria a própria encomenda, figurada em uma pesada caixa de papelão, deixada por engano diante de Circe, Caribdes, Cila, Calípso, Euricleia e as escravas e, finalmente, Penélope, aquela que há tanto tempo resiste à fúria dos pretendentes e mantém-se à espera de seu homem.

Ao examinarmos detidamente, porém, não é difícil perceber o quanto a relação com a caixa diz sobre as próprias mulheres que a recebem. O quanto se diz sobre algo que supera a ideia de um homem/herói/amante e alcança conteúdos mais amplos – mesmo porque a figura responsável pelo transporte da encomenda é ninguém menos que Atena, a deusa nascida da cabeça de Zeus, já adulta, paramentada com elmo e escudo, armada com uma poderosa lança. Sendo assim, a autora nos questiona sobre a maneira de lidar com os pacotes e conteúdos que nos são propostos. Temos receio, nos colocamos na defensiva? Questionamos, confrontamos? Arriscamo-nos e à nossa própria integridade em nome da violação? Ou será que aceitamos e até nos tornamos dependentes dela? A cena final chega a colocar em questão a própria ideia que se faz da caixa.

Nesse sentido, a peça de Heloísa Cardoso opera com uma simbologia que fala de perto às atuais circunstâncias. Vivemos em um tempo de violação dos princípios democráticos, num país campeão de feminicídios e de crimes por homofobia, em que as populações indígenas são historicamente dizimadas, ecologistas e defensores da ocupação justa do território, exterminados, e a juventude negra e pobre perece sob porrete, coronha e bala. A cada eleição, velhas caixas diante de nós. De que modo lidar com elas?


“El teatro hace patente un amor por la muerte, un culto por lo efímero, como una especie de impulso de aniquilación, la sensación de que algo muere. (...) Algo que está ocurriendo sobre la cuerda floja y en cualquier momento se puede caer la trapecista (y todo el mundo empieza a aplaudir). El actor se puede equivocar, puede incluso abandonar la escena. Eso no existe en la literatura, ni en el cine, por ejemplo. Tal vez es esa especie de tanatofilia lo que hace que siga existiendo público para el teatro. Y eso debemos tenerlo muy en cuenta también los autores, quiero decir, responder a la expectativa de riesgo con la que el público se enfrenta al escenario, volver a poner la escena sobre esa cuerda floja,                                     sobre la caída y muerte del trapecista.”
Angelica Liddell


A encomenda é a sétima peça teatral de Heloísa Cardoso e pode-se considerá-la, quem sabe, a terceira parte de uma trilogia precedida por Manual doispontos Insaciável barra Mórbida (2012) e Lolita (2016). Uma porção de fios une as três dramaturgias. O de maior destaque talvez seja a relação homem-mulher, o desejo e sua objetificação, os embates entre expectativa e realidade, o amor e as frustrações dele decorrentes. Há, no entanto, uma linha subjacente a estruturar os enredos todos e colaborar no estabelecimento da unidade. Falo da tensão psicológica. As personagens de Heloísa equilibram-se num fio retesado ao máximo, quase a ponto de se romper, as situações aproximam-se do limite e se alguma leveza existe, é a dos balões de gás prestes a escapar dos dedos e se perderem para sempre. Numa escrita onde tudo é pulsão e intensidade, imaginamos que direção e interpretação invistam, elas também, num jogo arriscado com o espectador, como recomenda e realiza Angelica Liddell.

Em seu novo trabalho, a dramaturga verticaliza e, consequentemente aprofunda algumas opções. A tensão psicológica é acentuada pela atmosfera onírica - pode-se dizer que A encomenda é noturna, bem como os seres que transitam por ela. A festa dos pretendentes que se prolonga até a exaustão e a morte, os bastidores da boate de strip tease gerenciada por Cila e Caribdes, a gruta de Calipso, embalada por uma música dark e sensual, bem como as provações prenhes de elementos do inconsciente a perturbar Penélope são apenas alguns exemplos. Nada ali é o que parece, pois a dramaturgia dispõe de filtros que embaçam a leitura imediata. Se quisermos nos aventurar, será preciso deixar as bolsas e os casacos no guarda-volumes, fechar a porta atrás de nós e, sem medo da escuridão ou do pesadelo, testemunhar o percurso da caixa e o modo como é recebida em cada estação. Asseguro que vale a pena.

Este é, sem dúvida, o texto mais denso e maduro da dramaturga. Tomou como base uma obra consagrada, mas conseguiu apropriar-se dela e criar uma narrativa autônoma em que Penélope assume o protagonismo da trajetória. Arrisco-me a dizer que a peça sinaliza um novo ciclo temático e mesmo de vida para sua autora. Livre de fantasmas, ela poderá chegar “à maior de todas as liberações, que é a liberdade de pensar nas coisas em si”, conforme nos ensina mais uma vez Virginia Woolf. Todavia, quer A encomenda sinalize o começo de outra fase ou não, o importante é prosseguir na escrita, pois esse é o caminho de Heloísa Cardoso.

“Digo ainda como se algum dia pudesse deixar de dizer. Não vou saber até o fim. Aqui deve ser o começo. É reconfortante saber que há muitas coisas sem solução. Tem gente que diz: no fim você resolve. E vem uma angústia, um torniquete apertando desde o começo. Não estou livre. Para chegar ao fim devo continuar ainda que não exista solução.”
Hilda Hilst


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Peço licença para algumas linhas adicionais, pois gostaria de comentar sobre a importância das leis de fomento a viabilizar não só a criação, mas a publicação dramatúrgica. Este livro e, portanto, este prefácio se devem à verba obtida com uma parcela dos impostos recolhidos em nível estadual e destinada à Cultura. Parte da tiragem será enviada gratuitamente às bibliotecas públicas e outra parte chegará aos demais leitores, de modo a fomentar, por sua vez, a criação de novos textos por onde passar.

É preciso, pois, assegurar a continuidade dos programas de incentivo à Cultura se quisermos viabilizar uma Arte de qualidade e em aperfeiçoamento contínuo. Graças a um deles pude tramar essa rede com Ana, Sylvia, Virginia, Angelica e Hilda a fim de saudar e acolher a jovem Heloísa.


                                                                                                                Adélia Nicolete