sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Ateliê de Dramaturgia - Cultura Inglesa - São Paulo

J.M.W.Turner - Autorretrato
Óleo sobre tela

  
Faz algumas décadas que a Cultura Inglesa encara o teatro como um importante aliado no ensino-aprendizado da língua, tanto que, atualmente, cerca de 2.500 alunos estão distribuídos em aproximadamente 130 grupos a ocupar as unidades da escola. 

Para o trabalho com as mais diferentes faixas etárias, são contratados os chamados ensaiadores – profissionais de áreas diversas, com fluência em inglês e que recebem apoio pedagógico a fim de ensaiarem e produzirem espetáculos curtos ao final de cada período. Além disso, uma vez por ano, a instituição promove o Drama Festival com atuação, produção e direção de alunos, ex-alunos e professores. Ambas as iniciativas envolvem milhares de pessoas entre artistas, técnicos e público.


Sob a coordenação artística do ator Laerte Mello e a coordenação pedagógica do diretor Francisco Medeiros, a equipe de ensaiadoras e ensaiadores reúne-se periodicamente para estudos, troca de ideias e supervisão dos trabalhos. A partir das demandas levantadas, busca-se o aperfeiçoamento em determinada área. Neste ano de 2017 o foco é a Dramaturgia e, para fomentá-la junto ao grupo, foram convidados profissionais a fim de ministrar workshops. O Ateliê de Dramaturgia foi uma dessas atividades e o artista plástico escolhido para motivar a escrita foi o inglês J.M.W. Turner (1775-1851).


J.M.W. Turner - Geleira e nascente do Arveron elevando-se
para o Mar de Glace
 - 1803 - Aquarela
68,5 x 101,5 cm

Por se tratar de um grupo de artistas-pedagogos, consideramos que não bastaria uma vivência de Ateliê, mas também uma abordagem mais detida nos procedimentos a fim de que se pudesse relacioná-los à prática junto às turmas de teatro. Outra preocupação foi pensar nos exercícios do Ateliê especificamente na na aquisição e/ou aperfeiçoamento de língua estrangeira. 

Para tanto, iniciamos o trabalho com uma visão panorâmica do processo descrito em minha tese de doutoramento para, somente depois, realizarmos o exercício de escrita, ele também vivenciado e pensado sob dois aspectos: o do participante da turma de teatro (aluno de inglês) e o do ensaiador/condutor da proposta. *

J.M.W.Turner - Petworth: o artista e seus admiradores - 1830
Guache sobre papel azul - 14 x 18,9 cm















Mike Leigh - cena do filme Mr. Turner - 2014
em que se reproduz guache de Turner













A escolha de Turner como artista disparador do processo de escrita justifica-se pela numerosa produção em técnicas diversas e com abordagens que vão do figurativo ao conceitual. Sendo assim, seu trabalho pode ser apreciado por todas as idades, independente das preferências estéticas, e estimular a criação de textos que percorram a forma dramática, bem como outras escritas verbais e cênicas descoladas do drama.

Tais características atendem ao perfil dos ensaiadores e ensaiadoras no que diz respeito às suas próprias pesquisas formais. Para tanto, a obra de Turner pode ser usada como referência inicial a ser dispensada em seguida, mas pode igualmente suscitar a hibridização, bastante presente na cena atual. 


J.M.W.Turner - Tempestade de neve - Navio à entrada do porto
a fazer sinais em fundo baixo e guiando-se pelo prumo.
O autor estava nesse temporal na noite em que
o Ariel zarpou de Harwich
s - 1842
Óleo sobre tela, 91,5 x 122 cm

Após a apreciação individual da obra Tempestade de neve..., partiu-se para a fruição coletiva guiada por estímulos da condutora. Diante da tela projetada, inquiriu-se sobre emoções, sensações, lembranças, imagens, ideias e impressões em geral. O objetivo, além do levantamento de um repertório comum a todos (pressuposto do Ateliê) foi o reconhecimento da amplitude vocabular possível de ser desenvolvida numa atividade como essa. Por exemplo, ao buscar e identificar em si uma emoção despertada pela tela e mais, ao justificar essa identificação, espera-se que o aluno-ator de um curso de línguas possa integrar o uso do idioma a aspectos não somente instrumentais, mas internos. 

O contato com artistas britânicos, por sua vez, estende o alcance da atividade para além do teatro e alcança a formação cultural do aprendiz. Se lembrarmos que os procedimentos do Ateliê de Dramaturgia podem ser utilizados para a apreciação de qualquer outra linguagem, o campo de ação e de formação fica ainda maior.


J.M.W.Turner - Colour beginning, 1819
Aquarela, 22,5 x 28,6 cm














Mark Rothko - Sem título, 1955
Óleo sobre tela
















A apreciação em si já se constitui importante etapa criativa - momento em que se estabelecem conexões as mais diversas - pictóricas, literárias, cinematográficas, musicais, etc - se realiza o levantamento de referências, em que o imaginário se amplia para além da obra observada. Daí a sugestão de que fruição e escrita se dêem num mesmo encontro a fim de que o fluxo da criação não seja interrompido.

Por isso, constituído o repertório comum de materiais, chegou a hora de definir os delimitadores da escrita. Ao contrário do que se supõe, os delimitadores são libertadores na medida em que permitem um recorte à criação. Não fosse assim, correríamos o risco de ficar paralisados frente ao infinito de possibilidades. 

Propôs-se, então, o sorteio de formatos breves – cartas, depoimentos, diários, poesias, diálogos, adaptações, etc – a serem escritos em um tempo determinado, individual ou coletivamente, dentro ou fora da sala.


Parte do grupo em processo de escrita

No Ateliê, cada corpo escolhe como quer escrever























Concluído o tempo para a escrita, o grupo reuniu-se novamente a fim de ler os materiais criados e pensar possibilidades de utilização junto aos grupos sob sua orientação. A ideia de uma dramaturgia rapsódica pareceu-nos a mais indicada nesses casos e, para isso, nos debruçamos sobre a semelhança entre os processos criativos em dramaturgia e em artes plásticas. Em outras palavras, recursos tais como seleção, composição, recorte, colagem, montagem, fragmentação, justaposição, repetição e outros mais, mostram-se bastante adequados à lida com as materialidades em ambas as áreas. 

Durante todo o processo, buscamos oferecer referências para que os ensaiadores possam aprofundar o que foi tão somente apontado nas quatro horas do Ateliê.**  Esperamos que a experiência, necessariamente condensada, possa gerar um sem número de outras ações, a depender da criatividade e do interesse de cada um/a.





















Agradeço a Francisco Medeiros e a Laerte Mello pelo convite e aos ensaiadores e ensaiadoras pela disponibilidade para o Encontro – consigo mesmos, com o Outro e com a escrita. Conhecer, fruir e fazer arte coletivamente em meio a esse caos em que nos encontramos soa como experiência de sanidade e ato de resistência.

Adélia Nicolete


J.M.W.Turner - Navio incendiado (?) - circa 1826-30
Aquarela, 33,8 x 49,2 cm



J.M.W.Turner - Navios no mar - circa 1835-1840
Aquarela, 22,2 x 27,9 cm

* A tese de doutorado "Ateliês de Dramaturgia: práticas de escrita a partir da integração artes plásticas, texto e cena" pode ser baixada nessa página.

* Um artigo de Jean-Pierre Sarrazac a respeito de Oficinas de Escrita Dramática pode ser acessado aqui.

** Um vídeo curto com o cineasta Mike Leigh a respeito de cenas da obra de Turner presentes em seu filme "Mr. Turner", pode ser acessado aqui.

** A coleção de obras de Turner no Tate Britain pode ser acessada aqui.

** A abertura da ópera "O navio fantasma" de Richard Wagner, autor citado durante a apreciação, pode ser ouvida aqui:




** Mais exemplos de ações em Ateliês de Dramaturgia podem ser acessados nesse blog.




quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Ateliê de Dramaturgia e Memória - SESC Santa Rita - Recife


Turma reunida no encerramento das atividades

Durante oito encontros, divididos em duas fases entre agosto e setembro de 2017, conduzi um Ateliê de Dramaturgia e Memória no Recife como parte das atividades do programa Sesc Dramaturgias. O que segue é um resumo bem resumido do que foi a grandeza dos Encontros.


***

O objetivo geral da atividade foi trabalhar a memória na dramaturgia a partir dos três pilares da pedagogia das Artes: conhecer, fruir e criar.

Para tanto, formamos um repertório comum de peças teatrais a serem lidas por todos, de preferência previamente ao Ateliê.  Tais obras pertencem a várias fases do teatro brasileiro, apresentam-se em formatos que vão desde o dramático até as propostas menos vinculadas ao drama e têm todas a memória pessoal ou social como motivador, tema ou recurso formal. Ainda que não lidas em sua totalidade para a primeira fase, serviram como referência durante os encontros, citadas ou mencionadas em fragmentos.

Atividade escrita na primeira fase do Ateliê

Durante as sessões os participantes desenvolveram textos a partir dos seguintes princípios: memória pessoal, memória relacionada a outra pessoa, memória relacionada a objetos e, por fim, memória social. Sempre referenciadas pelas peças teatrais do acervo comum, bem como orientadas com relação à forma e a procedimentos em geral, as escritas contemplaram narrativas, depoimentos, relatos, roteiros de ação e cenas dialogadas. 

Pretendeu-se a experimentação de diferentes formatos, todos relacionados às mais diversas fontes memorialísticas, dentre elas, a pesquisa histórica.


Como ocorre em todos os Ateliês, a teoria é suscitada pela prática. Assim, os textos criados em sala são lidos e analisados por todos e as demandas teóricas são supridas de imediato sempre que possível. As orientações que antecedem a escrita dos textos são, em sua maioria, básicos da linguagem: tipos de discurso, tipos de narrador, tempos verbais, formatos, bem como esboço, roteiro de ações, estruturação, etc. Básico também é o entendimento de dramaturgia como tessitura de ações, ou seja, o texto verbal é apenas um dos fios que compõem a escritura cênica e todos os demais precisam ser levados em consideração, até mesmo o que se refere ao público. A ideia de dramaturgia como rapsódia e não apenas como diálogo interpessoal em um fluxo causal foi outro aspecto estudado tanto na análise das peças quanto na prática.


Registro da primeira fase, em agosto


O plano inicial do Ateliê era que, na segunda etapa, cada um desenvolvesse um projeto pessoal. Uma série de ocorrências, porém, motivou a mudança do percurso: muitos trabalhos escolares, outras prioridades e a participação quase maciça no III Usina Teatral promovido pelo SESC e que tinha como tema o Teatro e a Memória. O evento traria mesas de debates, oficinas e espetáculos que, se efetivamente vivenciados, poderiam estabelecer várias conexões com o próprio Ateliê.

Ficou decidido em comum acordo que no intervalo entre os dois momentos haveria participação no máximo de atividades possível do Usina. Decidiu-se igualmente que todos leriam “A moratória” de Jorge Andrade e “Caranguejo overdrive” de Pedro Kosovski a fim de traçarmos um paralelo entre as duas obras do ponto de vista das motivações, dos modos de criação, da forma como conteúdo precipitado, das disputas simbólicas presentes nos diferentes contextos, etc. E, finalmente, que seria lido um material acadêmico sobre o Mercado de São José com o objetivo de dialogar com os dois textos analisados e gerar um projeto coletivo. Assim foi feito.


Mercado de São José - parte da área de pescados

Alguns dos temas levantados na análise das duas peças foram a base para a reflexão coletiva do artigo sobre a história do Mercado. Formamos assim, a base estética e histórica para um de nossos projetos coletivos. Seguimos, então, para a deriva no local a fim de realizar uma apreciação arquitetônica, ambiental e humana: depois das devidas orientações, o grupo percorreu o lugar e realizou observações e anotações individuais, posteriormente compartilhadas com os colegas em sala - atividade que terá uma postagem específica no blog.

Desse conjunto de procedimentos, cada participante selecionou um momento de disputa simbólica relacionada ao Mercado (dentre cinco) e criou ou selecionou duas personagens a serem desenvolvidas. Da seleção resultaram dois roteiros de ações e uma narrativa ou duas, isto é, dois pontos de vista sobre uma mesma ocorrência. A essa altura, reunimos todas as pontas anteriores do Ateliê: escritas individuais em terceira pessoa, em primeira e diálogos – todos envolvendo a memória.

No último encontro, promovemos a vivência de um coletivo de dramaturgia: dividimos a turma em três grupos de acordo com as preferências temáticas dos projetos "Mercado de São José", "Personagem marcante" e "Momentos marcantes" - todos a partir da reunião dos textos individuais da primeira fase e da segunda fase do Ateliê. 

Participantes trabalham na biblioteca da Unidade
a composição da dramaturgia em grupo


Cada uma das equipes tratou de elaborar um projeto com conceito, utilização dos escritos, trilha sonora, hipertexto, definição de espaço de apresentação, entre outros detalhes, e de apresentar ao coletivo no final da sessão. Pediu-se que observassem a si mesmos e aos demais numa situação de coletivo de dramaturgia e que isso também fosse levado em conta na hora do compartilhamento geral.


***

A divisão em duas etapas permitiu que os elementos básicos fossem trabalhados na primeira semana e, amadurecidos, tornassem possíveis exercícios mais complexos na segunda fase. O grupo respondeu muito bem às proposições e espero que os encontros tenham despertado o interesse para futuras leituras, buscas e para o desenvolvimento de projetos individuais e coletivos relacionados à Memória.

Deixo aqui meu agradecimento a toda a equipe Sesc e especialmente a cada participante. A cumplicidade necessária para a formação de um coro de escrevedores esteve presente todo o tempo, o que gerou confiança para o compartilhamento, cuidado e generosidade nos momentos de análise mútua dos textos criados. Num Ateliê de Dramaturgia em que se pressupõe a horizontalidade das relações, o posicionamento ativo do coro é ponto chave para o desenvolvimento individual e coletivo. E mais, num tempo de desmontes da Cultura, saber tanta gente dedicada à reflexão e à criação é um verdadeiro alento.





A todes o meu abraço registrado e juramentado nesse blog. A declaração de amor eu já fiz pessoalmente.

Adélia Nicolete