sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

"Pavio vermelho fogo" - Prefácio


PAVIO VERMELHO FOGO - Diálogos sobre um laboratório de dramaturgia para mulheres - Editora Giostri - São Paulo






PALAVRA DE MULHER



O ABC paulista pode ser definido como uma região de passagem. Sua posição estratégica entre o planalto e o litoral fez dele um corredor, uma via por onde passam matéria-prima, mercadorias e pessoas, um território “entre”. Tal intermediação foi facilitada pela inauguração da linha férrea em meados do século 19 e da rodovia Anchieta, no final dos anos 1940 – as duas igualmente fundamentais para o adensamento da população regional.

A primeira leva de imigrantes italianos chega à região no final dos anos 1800 e encontra tudo por fazer. Outros imigrantes instalam-se, dedicando-se especialmente à lavoura, às pedreiras, serrarias e olarias – essas já existentes em São Caetano do Sul desde o século 18 – estabelecendo uma economia de primeiro setor. E onde estão as mulheres? A que se dedicam nesses tempos? É certo que trabalham nas chácaras e hortas, bem como nas olarias, embora seja trabalho pesado. Casam-se, como é de se esperar, e desincumbem-se das tarefas domésticas, do cuidado com a prole. Deitam-se exaustas assim que o sol se põe e, antes que ele surja no horizonte, já estão em pé a fazer marmitas para a jornada. Analfabetas em sua maioria, as mulheres imigrantes que ajudam a construir o ABC não têm tempo livre para sonhar com o exercício da ficção. As que conhecem algumas letras usam-nas para anotar receitas, remédios ou para escrever cartas aos familiares deixados no além-mar.

No início do século 20 a economia de segundo setor desponta na região com a instalação de tecelagens, cerâmicas, movelarias e outras indústrias de pequeno e médio porte. Grande parte das fábricas absorve a mão de obra feminina e embora já comece a constituir-se uma classe média regional, as famílias ainda contam com o trabalho da mulher e dos filhos e filhas de menor idade na complementação do orçamento doméstico. Estudo formal é privilégio da população mais abastada e, portanto, o pouco que se sabe ler, escrever e fazer algumas contas deve bastar para as necessidades básicas da existência. A quem não escreve nem o próprio nome, é suficiente imprimir à tinta o polegar e está firmado o documento. De quê serviriam literatura, ficção e dramaturgia em tais circunstâncias?

É somente a partir dos anos 1950 que se insinua alguma alteração no panorama. O ABC paulista ficará conhecido nacionalmente como região industrial e a mão de obra será suprida com a chegada de migrantes vindos do Nordeste, de Minas Gerais e do interior de São Paulo em sua maioria. Assim como os imigrantes, tais populações deixam seus lugares de origem e lá parte de sua família, de suas referências culturais e emocionais, parte de seu imaginário. Veio seu corpo, vieram suas mãos – a memória e o coração ficaram enterrados onde estavam suas raízes. É certo que buscam melhores condições de vida e assumem o ABC como seu novo lar, fazendo-o o que é hoje, mas por muito tempo ele permanece como lugar de passagem, lugar provisório em que se trabalha para juntar dinheiro e depois voltar – o que de fato aconteceu e ainda acontece com milhares de migrantes. Nesse contexto, muitas mulheres ocupam postos de trabalho na indústria, o que se intensifica ao longo das décadas seguintes. Nas famílias em que o homem é o provedor, cabe à dona de casa – definida como “do lar” no campo da profissão – os cuidados domésticos gerais, a educação e a saúde das crianças.

A demanda por escolas aumenta e os migrantes podem realizar um de seus sonhos: ver os filhos e as filhas estudarem a fim de se dedicarem a profissões ditas “limpas”, profissões do pensamento tais como secretárias, contadores, auxiliares administrativos, projetistas, professoras, administradores e assim por diante. Ocupações em que não se sujem de graxa as mãos ou o macacão do uniforme. No final dos anos 1960 é instituído em nível nacional o MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização – calcado no Método Paulo Freire de alfabetização de adolescentes e adultos. Assim, durante quase duas décadas, milhares de analfabetos passam a frequentar as salas de aula e adquirir competências de leitura e de escrita. Dado o acesso ao conhecimento, muitas mulheres podem ter contato com a literatura e usar a escrita com maior frequência. É importante lembrar os movimentos sociais e o movimento feminista que acenavam no horizonte. Durante os anos 1960 e 70, durante a ditadura civil-militar, o ABC é palco de militância e de intensa luta operária. As Sociedades Amigos de Bairro e as Comunidades Eclesiais de Base desempenham importante papel na formação de um olhar crítico sobre o momento histórico e no fomento a ações efetivas para a inclusão social e as transformações de que a região necessitava, tanto em nível de infraestrutura quanto de articulação e representação política.  Programas femininos na televisão, como o de Xênia Bier, confrontam os padrões do patriarcado e estimulam as mulheres em vários aspectos – o orgasmo, os métodos contraceptivos e o aborto; o desquite e o divórcio, por exemplo, são discutidos diariamente no horário vespertino. Se uma revolução feminista não aconteceu entre as mulheres daquela geração, é certo que tais discussões interferiram no modo como as filhas foram educadas. E nós, que ora escrevemos e lemos esses textos em 2019, somos provavelmente as filhas e netas daquelas mulheres.

Dos anos 1970 em diante podemos pensar em uma escrita feminina na região do ABC Paulista. Com forte influência da contracultura, diversas manifestações tornam possível o exercício literário para as jovens: é  estimulada a nível mundial a troca de cartas e de cartões postais – há sessões dedicadas a isso nas revistas infanto-juvenis – , os diários pessoais voltam a fazer parte do cotidiano adolescente e os clubes de leitura e de venda de livros multiplicam-se. A poesia alternativa escapa às editoras e ganha as ruas sob a forma de panfletos mimeografados. O jornal alternativo “A Cigarra”, criado em 1982 por Jurema Barreto de Souza e Terezinha Savio, alunas da Fundação Santo André, é um exemplo, assim como o coletivo Poetas Independentes do ABC e o Grupo Livrespaço de Poesia, criado em 1983 e que conta com textos de Dalila Teles Veras, Jurema Barreto de Souza, Katsuko Shishido, Rosana Chrispim, Tônia Ferr, entre outros poetas.

Na mesma década e na seguinte, o teatro amador ganha força nas associações de bairro, nos clubes e nas escolas. A criação coletiva permite que se abra mão de uma peça já pronta em nome de um texto que traduza os anseios do coletivo, o que permite que mais mulheres assumam a dramaturgia. Os festivais de teatro amador pelo estado de São Paulo estimulam a troca artística entre os amadores e fortalece ainda mais o movimento. O fazer teatral perde um pouco do preconceito que o envolve na medida em que mais e mais mulheres tomam parte dele e podem obter capacitação como atrizes ou professoras na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na FATEA (Faculdades Integradas Teresa d’Ávila, futura FAINC). Sem a possibilidade de uma formação em dramaturgia na região, os pretensos dramaturgos e dramaturgas são autodidatas ou buscam sua formação em São Paulo. Somente no final dos anos 1980, com a criação da Escola Livre de Teatro de Santo André, a região pode contar com um curso voltado à dramaturgia e que, depois de um hiato de alguns anos, torna-se o principal responsável pela formação dramatúrgica no ABC, possibilitando a formação continuada de profissionais atuantes na área estética ou pedagógica. Solange Dias, aluna da primeira turma de dramaturgia da ELT, coordena por vários anos o curso nos anos 2010. Tais conhecimentos se multiplicam em cursos e oficinas regionais e em cursos de graduação e pós-graduação. Pode-se afirmar que o NED - Núcleo de Experimentos em Dramaturgia é fruto de todas essas experiências, na medida em que suas idealizadoras participaram de cursos na ELT, em oficinas livres em São Bernardo do Campo e na FAINC de Santo André. E é nesse momento que se pode falar de uma atuação mais significativa das mulheres na criação dramatúrgica regional.

O NED representa um passo além na medida em que se propõe a ser um coletivo de mulheres que pensa, faz e fomenta a dramaturgia em seu alcance estético e político. Seu projeto Laboratório de Dramaturgia para Mulheres, transcorrido em 2019, é prova disso. Como sabemos, o ano de 2019 ficará marcado em nossa História pela ascensão de uma direita retrógrada ao poder. Grande parcela da sociedade alinhou-se a um governo que desde a campanha eleitoral demonstrava maior apreço às armas que à educação e cujas premissas supunham a censura, os cortes de verba e, consequentemente, o retraimento das artes cênicas e visuais. Mas não só, ameaçados também estão os direitos constituídos, o meio ambiente, as lutas igualitárias, a população indígenas, as conquistas com relação aos direitos LGBTQI+ e tantos outros. Igualmente lamentável foi a nomeação do dramaturgo e diretor Roberto Alvim para o comando do Centro de Artes Cênicas da FUNARTE – Fundação Nacional de Artes –, pois implica num projeto conservador e revisionista. No que diz respeito às mulheres, a eleição do ex-coronel Jair Messias Bolsonaro para a Presidência da República resultou em uma reforma ministerial que extinguiu a pasta da Cultura, mas criou uma outra denominada Ministério da Mulher e da Família, sob o comando da advogada e pastora evangélica Damares Alves, acusada de sequestrar uma criança indígena para adoção. Tal ministério representa o que há de mais ultrapassado e preconceituoso com relação ao debate sobre gêneros, com relação à educação sexual e mesmo à família.

No atual contexto, o Laboratório de Dramaturgia para Mulheres constituiu-se uma ação concreta e corajosa. Com suas propostas de reflexão sobre o feminino e sobre a mulher na literatura e na sociedade, bem como de estudo das formas contemporâneas de teatro e de dramaturgia, o NED instituiu um espaço de debates que se estendeu para além da cena e alcançou uma reflexão regional sobre teatro, arte e sociedade.

Não que a rotina atual da mulher seja mais favorável à criação, pois continuamos a exercer muitas funções. O que nos diferencia de nossas antecessoras é a Consciência. Ela é, por vezes, fonte de muitas dores, mas é também a nossa salvação: podemos escolher. Podemos deixar o trabalho de lado algumas vezes, sem culpa. Podemos nos conectar em rede com outras mulheres, podemos contar com um pouco mais de apoio. Isso nos diferencia. Isso nos engrandece. Isso nos favorece. A casa continua necessitando de organização, precisamos ainda comer e nos vestir, precisamos de dinheiro para a educação e para saúde e assim por diante. Muitas demandas femininas continuam necessárias. O que podemos com pouco mais de folga – pelo menos em certas camadas da população – é contar com a ajuda dos parceiros ou parceiras e, quem sabe, educar filhos e filhas para a vida em comunidade e não para serem servidos e servidas. Se abrimos em nossa rotina um espaço, por menor que seja, para o exercício da ficção é muitas vezes em detrimento da limpeza da casa, dos cuidados domésticos e do ideal da dona de casa perfeita, da mãe perfeita – padrões que a sociedade ainda nos impõe e parece que com a ascensão da direita voltam com toda força. Mas sabemos que isso é apenas temporário. Existe uma força maior, um movimento maior que ninguém poderá impedir. Talvez seja este o nosso papel. Se nossos antepassados se sacrificaram para que pudéssemos exercer funções e atividades do pensamento, talvez a nossa missão com relação às futuras gerações seja de assegurar que esse pensamento seja livre e um direito inalienável. Que nossa Dramaturgia nos represente para além de nós.

Adélia Nicolete
Nascida no ABC, filha de migrantes do interior de São Paulo, estudante de escola pública. Participou do teatro estudantil e amador da região durante os anos 1980 e 1990. Moradora de Ribeirão Pires há 20 anos, é dramaturga, escritora e condutora de Ateliês de Escrita. Filha, esposa, mãe, avó, tia, amiga. Em rede.