sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Ateliê de Dramaturgia na UDESC – II – O Outro



Vivian Maier - San Francisco - 1978













Jean-Michel Basquiat - Sem título (Anjo caído) - 1981
Intersecções com a foto de Vivian Maier














Conforme abordei na postagem anterior, um dos principais objetivos do Ateliê de Dramaturgia é desviar o foco criativo do interior de cada participante para o mundo externo a fim de que a noção de talento ou de inspiração, por exemplo, possa ela também ser desviada para outras situações que não a da escrita. Mundo externo, no caso do Ateliê conduzido na UDESC, equivale a dizer artes visuais.

De que modo suscitar no escrevedor motivações estéticas que despertem ideias, lembranças, cenas, sensações, referências suficientes para, depois de selecionadas e organizadas, ressurgirem em forma de material textual?

Vivian Maier - San Francisco - 1971


Em minha segunda atuação na UDESC, em julho, planejei apresentar e refletir sobre alguns aspectos do trabalho de dois norte-americanos: a fotógrafa e videomaker Vivian Maier e o performer e artista plástico Jean-Michel Basquiat. O grupo foi orientado a assistir previamente ao documentário “A fotografia oculta de Vivian Maier”, de John Maloof e Charlie Siskel *, e a visitar o site dedicado à sua obra.**

Depois de uma breve conversa sobre o filme e as fotografias da artista, apresentei um estudo comparativo entre alguns de seus trabalhos e os de Basquiat, tendo como base a biografia dos dois nova-iorquinos e, como fio condutor, a dramaturgia e a cena contemporâneas em seus procedimentos e resultantes para além da forma dramática. Chamei em meu auxílio Roland Barthes e seu conceito de punctum, bem como textos de Jean-Pierre Sarrazac e Jean-Pierre Ryngaert, entre outros pesquisadores.***


Jean-Michel Basquiat - Notário - 1983
Justaposições, sobreposições, polifonia, materialidades diversas...












Vivian Maier - Nova York - 1971
Sobreposição, espelhamento, camadas de informação, presença-ausência...





















Ao analisarmos certas obras de Maier e Basquiat, pudemos identificar o trabalho em camadas, polifonia e rapsódia, a presença do autor, a performatividade, a posição do espectador e tantos outros elementos caros ao teatro atual.

A seguir foi apresentada uma fotografia que, depois de analisada coletivamente pelo grupo, motivou a escrita de uma narrativa em terceira pessoa. Se em nosso primeiro encontro nos concentramos no eu/autorretrato (gênero lírico), naquele momento exercitaríamos, tal qual Vivian Maier, o nosso olhar para O Outro, e trataríamos o texto de uma forma épica.


Foto: Vivian Maier
Imagem utilizada como referência para a escrita de narrativas

Os textos foram lidos e analisados por todos os escrevedores a fim de que se encaminhasse a reescrita.

Uma possível continuidade do exercício seria a escolha de uma série de retratos realizados pela fotógrafa. Distribuídos entre os participantes, cada um deles motivaria a imaginar a situação em que foram tirados. Tais situações gerariam cenas a serem fisicalizadas ou escritas, a fim de compor um grande painel da metrópole, com posterior pesquisa de sonoridades, coralidade, movimentação coreográfica, etc.

Em etapa mais avançada, os escrevedores, de celular em punho, flagrariam eles mesmos O Outro numa excursão pelo centro ou lugares de afluxo de pessoas. Materiais textuais seriam gestados a partir da análise das imagens, ou seja, o participante vivenciaria a criação em diferentes linguagens, integrando-as em sua ação.

Ficam as sugestões.

Adélia Nicolete


* O filme legendado pode ser assistido no endereço abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=zATFOwuBtjY

** http://www.vivianmaier.com

*** BARTHES, Roland. A câmara clara. São Paulo: Saraiva
RYNGAERT, Jena-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes
______. Ler o teatro contemporâneo.  São Paulo: Martins Fontes
SARRAZAC. Jean-Pierre. O futuro do drama. Portugal: Campo das Letras




sábado, 10 de outubro de 2015

Ateliê de Dramaturgia na UDESC – I – Intensivo



Entre junho e setembro de 2015 conduzi encontros mensais no Centro de Artes da Universidade Estadual de Santa Catarina, a convite do professor Stephan Baumgärtel. Os participantes vieram da graduação e da pós graduação, vários deles atuantes no programa de estágio do curso de Artes Cênicas - o PIBID.

Afeita a um padrão de encontros semanais, onde o processo se desenvolve ao longo de dois ou três meses, imaginei para o grupo de Florianópolis o trabalho em unidades, dada a distância entre um encontro e outro. Postarei um registro de cada mês nas próximas edições do blog.



* _ * _ *


A primeira das sessões foi intensiva. Durante as 8 horas, divididas entre a sexta à noite e o sábado pela manhã, os escrevedores vivenciaram o estímulo inicial, a escrita, a análise dos textos, o exercício cênico e sua avaliação. Para tanto, julguei conveniente um trabalho em torno do eu e do personagem.

O disparador inicial foi o levantamento de verbos e substantivos ligados a cada região do corpo. O objetivo foi distribuir os motivadores e as ações do personagem em lugares que não só o pensamento e a emoção. Ao deslocar a motivação da ação pudemos abordar as diversas conformações do personagem no teatro dito contemporâneo - figura, sujeito, enunciador, voz, etc. (1)


A seguir foi proposto o exercício da silhueta, baseado numa das etapas da oficina de dramaturgia Sarah Kane no Royal Court de Londres.


Silhueta - Vicente Concilio
(Foto: Vicente Concilio)

Delineado o corpo de cada participante, foram buscadas e selecionadas imagens em revistas que melhor se relacionassem com cada região do corpo. Sarah Kane desafiava os alunos a escreverem sobre si mesmos no espaço interno da silhueta. Aqui, o desafio foi a criação de um autorretrato feito com a técnica de recorte e colagem. (2)

Espera-se que o processo de criação pictórica atue como uma referência quando da criação escrita, dadas as semelhanças entre os dois tipos de composição. O escritor, tal qual o artista plástico, opera com identificação e seleção de imagens, ideias e palavras, por exemplo. Do mesmo modo, organiza esses materiais de acordo com certos critérios, valendo-se de simetria ou assimetria, ritmo, textura, oposição, contraste e um grande número de outros recursos.

Autorretrato pictórico de Vicente Concilio
(Foto: Vicente Concilio)

Ainda na sexta-feira, após a apreciação coletiva das resultantes, todos foram convidados a elaborar um autorretrato escrito a partir da composição pictórica. Haveria liberdade com relação ao gênero escolhido, mas limitação de tamanho - deveria ser um texto curto.


O exercício da escritura a partir de motivadores externos, tais como a elaboração e a apreciação de obras de artes visuais, tem como principal função o deslocamento do estímulo criativo de dentro para fora do escrevedor. Questionam-se conceitos como os de inspiração e talento e traz-se à tona a ideia de um disparador criativo, de um levantamento de materiais a serem conjugados a fim de se chegar a uma composição escrita.



Momento de escrita do texto
(Foto: Vicente Concilio)

A título de exemplo, um dos autorretratos nascidos no encontro, de autoria de Felipe Schaitel:


Schaitel e seu Duplo

Não gosto de cães. Dizem que sou frio por isso, mas não me importo. Dizem que o cão é o melhor amigo do homem, mas gatos não atacam quando veem alguém caminhando na rua. É por isso que gosto de gatos. Sou leonino e arrogante pra quem não conhece, mas de palavra. Sei honrar um acordo. Honrar o valor do tempo, da família e dos outros. Funcionam como terças e quintas na formação de um acorde, de um acordo. Sou um músico metido que carrega uma bússola no braço, para os outros.


A sexta-feira foi concluída com a leitura de todas as composições e a perspectiva de, na manhã seguinte, levá-las à cena.

Se os autorretratos basearam-se, em linhas gerais, na composição referente ao “eu” de cada escrevedor, a formação de duplas com vistas à cena teve como estímulo a elaboração do retrato de “nós”, a partir dos dois textos e de outros materiais eventualmente trazidos pelos participantes: poemas, canções e trechos literários que lhes fossem significativos.


Cena de Aline e Vicente


Cena de Marcos e Luan
(Foto: Vicente Concilio)


Cada equipe escolheu um espaço cênico que dialogasse com a proposta e, com isso, fornecesse mais um fio à dramaturgia. Um fio a tramar com o material textual escrito por eles, as citações, o corpo, a voz, as silhuetas, os verbos e substantivos, a relação com o público e tudo o mais que pudesse configurar a experiência dramatúrgica como uma tessitura de ações que não só o texto enunciado. (3)


Cena de Lara e Mônica
(Foto: Vicente Concilio)

















Cena de Camila e Stephan
(Foto: Vicente Concilio)

Cena de Gisele e Fernanda
(Foto: Vicente Concilio)


















De modo semelhante ao da criação pictórica e escrita individual, para o processo criativo da cena os participantes lançaram mão de identificação e seleção, recorte e colagem, organização, justaposição, descarte, decomposição e recomposição, edição, etc. Em outras palavras, cada dupla tratou de compor a cena com os mesmos pressupostos das criações anteriores. (4)


Cena de Mariana (foto) e Beatriz
(Foto: Vicente Concilio)


















Cena de Mariana e Beatriz (foto)
(Foto: Vicente Concilio)


















As duplas tiveram 90 minutos para conhecer o material, identificar ou arranjar 
um espaço cênico sugestivo, elaborar o trabalho, ensaiar e apresentar o trabalho ao público constituído pelos colegas de Ateliê.

Cena de Marco e Inês
(Foto: Vicente Concilio)

Cena de Erik e Ohanna
(Foto: Vicente Concilio)


Cena de Renata e Schaitel
(Foto: Vicente Concilio)



















Gostaria de agradecer ao professor Stephan pelo convite e pela interlocução, ao professor Vicente Concilio pela recepção, pela intermediação e pelos registros, e também aos corajosos participantes dessa viagem aparentemente sem rumo que é a prática de um Ateliê. Foram apresentados textos de ótima qualidade já no primeiro encontro, escritos em 20 minutos. As cenas também, sem exceção, já mostraram se não uma configuração pronta – o que seria de se espantar em tão curto prazo de realização – promessas de belos trabalhos a serem desenvolvidos.

Trata-se de uma dinâmica perfeitamente aplicável em sala de aula, tanto que alguns bolsistas apropriaram-se de procedimentos e adaptaram-nos em seu estágio com boas resultantes.

Os muitos méritos, que sejam reputados aos bravos maratonistas. As falhas, que certamente ocorreram, foram minhas e que eu possa desenvolver ainda mais os Ateliês de Dramaturgia tomando-as como baliza.


Adélia Nicolete


(1) Sobre o assunto consultar:
RYNGAERT, Jean-Pierre.  Ler o teatro contemporâneo. Trad. de Andréa S. M. da Silva.  São Paulo: Martins Fontes, 1998.
______, SERMON, Julie.  Le personnage théâtral contemporain: décomposition, recomposicion.  Montreuil-sous-Bois: Éditions Théâtrales, 2006.

(2) Dois exemplos de autorretratos exibidos na ocasião foram dos artistas 
Jean-Michel Basquiat e Leonilson.

(3) Sobre o tema consultar:
BARBA, Eugenio. Dramaturgia. In: BARBA, Eugenio, SAVARESE, Nicola.  A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. Tradução de L. O. Burnier et al.  São Paulo-Campinas: Hucitec – Unicamp, 1995

(4)Sobre esse tema consultar:
SARRAZAC, Jean-Pierre. (Org.) Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. de André Telles.  São Paulo : Cosac e Naify, 2012.