terça-feira, 31 de julho de 2018

Prefácio do livro "A encomenda", de Heloísa Cardoso


Arte: Gabriela Ribeiro

A dramaturga Heloísa Cardoso teve seu projeto Odisseia por elas aprovado na edição 2017 do PROAC Dramaturgia. Durante o processo, ela compartilhou em vídeo algumas das fases da pesquisa e da criação que resultaram na peça A encomenda, inspirada nas figuras femininas da Odisseia de Homero. O próximo passo é a publicação do livro. Convidada a escrever o prefácio, reuni algumas amigas e, feito Penélope, tecemos uma rede para saudar o texto e a jovem autora. Que nada a desmanche.

Livro publicado pela editora Patuá
Capa: Andréa Tolaini



PREFÁCIO POR ELAS


"sou uma mulher do século XIX
disfarçada em século XX"
Ana Cristina Cesar


Desde a mais remota ideia de nosso nascimento, gerações incontáveis atrás, uma caixa está à nossa espera. Dentro dela estão depositados uma infinidade de conteúdos, semelhantes aos de milhões de outras caixas ou específicos de um tempo, de um lugar, de uma certa condição dada ao nosso berço. Mal saímos à luz, é esperado que nos conformemos ao pacote e a todas as expectativas ali contidas. Ele nos acompanhará desde o primeiro vagido até os estertores finais e a cada vez que nos levantarmos, ou mesmo em sonho, lá estará ele, incólume, a nos desafiar.

Creio que saibam do que se trata: do amontoado de conceitos, ideias, valores, leis e normas a que se submeter; do feixe de narrativas, de exemplos e modelos a seguir. Pautam nosso pensamento e nosso comportamento, nos doutrinam, subjugam nosso corpo, determinam nossas relações familiares, afetivas e sociais; conferem-nos papéis e roteiros, convencionam que a uns caberá a caça e o provimento e a outras, a procriação da espécie e a domesticidade. Louvam a força, o heroísmo e a aventura de um gênero, preceituam a castidade, a docilidade e a abnegação do outro. Estampam, desse modo, as figuras de protetores e protegidas, justificam subordinações e dependências que se estendem do nível econômico ao emocional. A romancista inglesa Virginia Woolf chamou tais figuras de “Anjo do lar” e afirmou tê-la assassinado a fim de se tornar uma verdadeira escritora. Nossa trajetória, vista à distância, é a relação diuturna com essas imagens, com essa caixa e penso ser a respeito disso que Heloísa Cardoso trata em sua peça A encomenda, que tenho a ventura de prefaciar. 


(...) Imaginei que voltarias como prometeste 
Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome. 
(Acho que te criei no interior de minha mente

Deveria, em teu lugar, ter amado um falcão  
Pelo menos, com a primavera, retornam com estrondo 
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro:   
(Acho que te criei no interior de minha mente.)” 
Sylvia Plath


Inspirada pelas figuras femininas presentes na Odisseia de Homero, Heloísa propõe um jogo relacional que, numa primeira leitura, nos parece a estilização do vínculo entre Ulisses e as diversas mulheres que conheceu em sua perambulação. No caso, o herói seria a própria encomenda, figurada em uma pesada caixa de papelão, deixada por engano diante de Circe, Caribdes, Cila, Calípso, Euricleia e as escravas e, finalmente, Penélope, aquela que há tanto tempo resiste à fúria dos pretendentes e mantém-se à espera de seu homem.

Ao examinarmos detidamente, porém, não é difícil perceber o quanto a relação com a caixa diz sobre as próprias mulheres que a recebem. O quanto se diz sobre algo que supera a ideia de um homem/herói/amante e alcança conteúdos mais amplos – mesmo porque a figura responsável pelo transporte da encomenda é ninguém menos que Atena, a deusa nascida da cabeça de Zeus, já adulta, paramentada com elmo e escudo, armada com uma poderosa lança. Sendo assim, a autora nos questiona sobre a maneira de lidar com os pacotes e conteúdos que nos são propostos. Temos receio, nos colocamos na defensiva? Questionamos, confrontamos? Arriscamo-nos e à nossa própria integridade em nome da violação? Ou será que aceitamos e até nos tornamos dependentes dela? A cena final chega a colocar em questão a própria ideia que se faz da caixa.

Nesse sentido, a peça de Heloísa Cardoso opera com uma simbologia que fala de perto às atuais circunstâncias. Vivemos em um tempo de violação dos princípios democráticos, num país campeão de feminicídios e de crimes por homofobia, em que as populações indígenas são historicamente dizimadas, ecologistas e defensores da ocupação justa do território, exterminados, e a juventude negra e pobre perece sob porrete, coronha e bala. A cada eleição, velhas caixas diante de nós. De que modo lidar com elas?


“El teatro hace patente un amor por la muerte, un culto por lo efímero, como una especie de impulso de aniquilación, la sensación de que algo muere. (...) Algo que está ocurriendo sobre la cuerda floja y en cualquier momento se puede caer la trapecista (y todo el mundo empieza a aplaudir). El actor se puede equivocar, puede incluso abandonar la escena. Eso no existe en la literatura, ni en el cine, por ejemplo. Tal vez es esa especie de tanatofilia lo que hace que siga existiendo público para el teatro. Y eso debemos tenerlo muy en cuenta también los autores, quiero decir, responder a la expectativa de riesgo con la que el público se enfrenta al escenario, volver a poner la escena sobre esa cuerda floja,                                     sobre la caída y muerte del trapecista.”
Angelica Liddell


A encomenda é a sétima peça teatral de Heloísa Cardoso e pode-se considerá-la, quem sabe, a terceira parte de uma trilogia precedida por Manual doispontos Insaciável barra Mórbida (2012) e Lolita (2016). Uma porção de fios une as três dramaturgias. O de maior destaque talvez seja a relação homem-mulher, o desejo e sua objetificação, os embates entre expectativa e realidade, o amor e as frustrações dele decorrentes. Há, no entanto, uma linha subjacente a estruturar os enredos todos e colaborar no estabelecimento da unidade. Falo da tensão psicológica. As personagens de Heloísa equilibram-se num fio retesado ao máximo, quase a ponto de se romper, as situações aproximam-se do limite e se alguma leveza existe, é a dos balões de gás prestes a escapar dos dedos e se perderem para sempre. Numa escrita onde tudo é pulsão e intensidade, imaginamos que direção e interpretação invistam, elas também, num jogo arriscado com o espectador, como recomenda e realiza Angelica Liddell.

Em seu novo trabalho, a dramaturga verticaliza e, consequentemente aprofunda algumas opções. A tensão psicológica é acentuada pela atmosfera onírica - pode-se dizer que A encomenda é noturna, bem como os seres que transitam por ela. A festa dos pretendentes que se prolonga até a exaustão e a morte, os bastidores da boate de strip tease gerenciada por Cila e Caribdes, a gruta de Calipso, embalada por uma música dark e sensual, bem como as provações prenhes de elementos do inconsciente a perturbar Penélope são apenas alguns exemplos. Nada ali é o que parece, pois a dramaturgia dispõe de filtros que embaçam a leitura imediata. Se quisermos nos aventurar, será preciso deixar as bolsas e os casacos no guarda-volumes, fechar a porta atrás de nós e, sem medo da escuridão ou do pesadelo, testemunhar o percurso da caixa e o modo como é recebida em cada estação. Asseguro que vale a pena.

Este é, sem dúvida, o texto mais denso e maduro da dramaturga. Tomou como base uma obra consagrada, mas conseguiu apropriar-se dela e criar uma narrativa autônoma em que Penélope assume o protagonismo da trajetória. Arrisco-me a dizer que a peça sinaliza um novo ciclo temático e mesmo de vida para sua autora. Livre de fantasmas, ela poderá chegar “à maior de todas as liberações, que é a liberdade de pensar nas coisas em si”, conforme nos ensina mais uma vez Virginia Woolf. Todavia, quer A encomenda sinalize o começo de outra fase ou não, o importante é prosseguir na escrita, pois esse é o caminho de Heloísa Cardoso.

“Digo ainda como se algum dia pudesse deixar de dizer. Não vou saber até o fim. Aqui deve ser o começo. É reconfortante saber que há muitas coisas sem solução. Tem gente que diz: no fim você resolve. E vem uma angústia, um torniquete apertando desde o começo. Não estou livre. Para chegar ao fim devo continuar ainda que não exista solução.”
Hilda Hilst


***

Peço licença para algumas linhas adicionais, pois gostaria de comentar sobre a importância das leis de fomento a viabilizar não só a criação, mas a publicação dramatúrgica. Este livro e, portanto, este prefácio se devem à verba obtida com uma parcela dos impostos recolhidos em nível estadual e destinada à Cultura. Parte da tiragem será enviada gratuitamente às bibliotecas públicas e outra parte chegará aos demais leitores, de modo a fomentar, por sua vez, a criação de novos textos por onde passar.

É preciso, pois, assegurar a continuidade dos programas de incentivo à Cultura se quisermos viabilizar uma Arte de qualidade e em aperfeiçoamento contínuo. Graças a um deles pude tramar essa rede com Ana, Sylvia, Virginia, Angelica e Hilda a fim de saudar e acolher a jovem Heloísa.


                                                                                                                Adélia Nicolete

4 comentários:

  1. Ponho-me na pele de Helô, com esse prefácio que a coloca nos braços e úteros fraternos de tantas mulheres que você escolhe para acolher A Encomenda. A partir de seu olhar, a vontade de conhecer essa dramaturgia de Heloísa Cardos só aumenta. A alegria também cresce feito fermento, afinal, é muito intenso saber que estamos quebrando os velhos paradigmas de mundo feito de bigodes e falos.

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    1. Débora, querida, sinta-se parte da rede desde sempre. Sei do afeto que tem por Helô, muito antes de eu entrar nessa história. Ao ler a peça, sei que também quebrará os paradigmas da encenação convencional e a imaginará no magma do inconsciente, no útero, lá onde brotam todas as coisas. Carinho imenso por ti. Obrigada pela leitura e pelo comentário.

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  2. Olá Adélia e demais mulheres aqui representadas! Que bacana essa abertura, sincronicidades e espaços para a alma, o fazer e a conexão. Torcendo por poder ler o material da autora. Sucesso e que mais leis de incentivo a cultura surjam! Abraço, carinho, beijo!

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    1. Elaine, cara, que bom ter se sentido curiosa pela peça. Na tarde de 01 de setembro, Heloísa Cardoso promoverá uma leitura de "A encomenda" na Biblioteca Municipal de Santo André. Sinta-se convidada. Beijão pra ti também! Obrigada pela visita.

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