quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Memória feita à mão: artes-manuais e suas narrativas


Fachada da Biblioteca Infantil de Sorocaba
(Foto: Zaqueu Proença)

Sabe aquele trabalho de artes-manuais que guardamos pelo seu grande valor afetivo? Uma peça bordada, uma colcha de retalhos, um tricô, um crochê. Aquela boneca de pano, aquele bicho de feltro, a tapeçaria, o vagonite, a toalha em tecido xadrez. Se conservamos cada uma delas não é só por sua utilidade, mas pelas histórias que trazem consigo: quem as fez ou as ofertou, a técnica já esquecida, uma ocasião especial em que foi usada - a memória de um tempo vivido. 

Na tarde ensolarada de 6 de fevereiro, a Biblioteca Infantil de Sorocaba acolheu um grupo especialmente dedicado a conversar e a tecer histórias de peças afetivas.

As irmãs Amábilis e Lúcia (de costas) divertem
e emocionam com suas histórias
(Foto: José Roberto Costa)

Cerca de vinte pessoas deixaram sua casa, seu trabalho e sua rotina e tomaram o rumo do Encontro. Desligamos celulares, plantamos os pés no chão, respiramos em conjunto. Durante quatro horas vivemos o momento presente e, a partir dele, voltamos a outros tempos. Como bem observou José Rubens Incao, diretor da Biblioteca, ao final sentiamo-nos todos irmanados por um passado comum - aquele em que as artes-manuais ocupavam um espaço significativo no dia-a-dia e no bem-querer.

Uma cozinha caipira e um circo ocupam os fundos
da Biblioteca. São espaços de acolhimento para
diversas atividades.
(Foto: Adélia Nicolete)















Cada participante levou uma peça feita à mão: modelagem, costura, tear, crochê, tricô, bordado, patchwork, colagem, joalheria, encordoamento. Os trabalhos criados por familiares ou amigos, comprados em uma viagem, elaborados em um curso foram expostos livremente no espaço - o lugar escolhido também diria algo sobre o objeto.

Tirá-lo de seu ambiente e fazê-lo habitar um outro espaço, longe de descaracterizá-lo, ressaltou muitos de seus aspectos e fez com que o relacionássemos com o mundo, ampliando sua importância para além da subjetividade.

Vênus trazida por Débora
(Foto: Adélia Nicolete)
Marinês escuta a narrativa de Débora
(Foto: Adélia Nicolete)


Anália ouve a história da
toalha de batizado do século 19
trazida por Donizetti
(Foto: Adélia Nicolete)
Quadrinhos bordados na infância
por Lilian
(Foto: Adélia Nicolete)


Toalha crochetada pela mãs de Benedita
(Foto: Adélia Nicolete)
"Pano de amostra" feito no curso
de corte e costura por Eliana
(Foto: Adélia Nicolete)


As artes-manuais estão inscritas numa lógica outra que não a da pressa e do consumo. Inscritas num tempo outro - o tempo do desejar, do planejar e do compor. O tempo do criar e do finalizar. O tempo do processo, enfim, que figura o processo interno de quem faz. 

Num contexto como o nosso em que predomina o descartável e o provisório, o tempo que poderia ser dedicado ao exercício criativo nos é roubado em nome de outras "prioridades". Sob o argumento da praticidade, nos tornamos consumidores de produtos, em sua maioria industrializados, cuja narrativa, quando revelada, denuncia a precarização do trabalho.


Saia costurada por Ketlyn
(Foto: José Roberto Costa)
Pano de copa bordado pela avó de Tarsila
(Foto: José Roberto Costa)












Blusa tricotada pela tia de Angeles
(Foto: José Roberto Costa)



Jogo americano em tear manual, comprado
por Carlos em viagem e crochetado pela tia
do companheiro
(Foto: José Roberto Costa)













Muitas das participantes integram o grupo de bordadeiras que se reúne todas as quartas na Biblioteca, o que tornou ainda mais potentes as reflexões acerca do tema. Elas foram estimuladas a conversar com colegas de outras áreas a fim de compartilhar também as experiências do grupo.

A vivência plena do momento presente nos permitiu ouvir e sermos ouvidos em nossas narrativas. Permitiu identificações, indagações, estabeleceu redes que ultrapassarão o encontro. Pode-se dizer que as artes-manuais foram a urdidura em que tecemos nossas relações.


Caderno de culinária feito por
Lisa à época da escola
(Foto: José Roberto Costa)




Pano de amostras de costura
feito pela mãe de Marinês
(Foto: José Roberto Costa)

Cachepô de corda feito pela tia
de Rodrigo
(Foto: José Roberto Costa)
Pano de copa bordado pela mãe de Mazé
(Foto: Adélia Nicolete)

O passo seguinte foi a elaboração do que se ouviu e sua transformação em texto escrito ou narrativa oral - "ao gosto do freguês". Bordamos a história do Outro junto à nossa, cerzimos as lacunas com a imaginação ou com a pesquisa, arrematamos ou deixamos em aberto os fios tramados.

As narrativas ouvidas foram tramadas ao lugar onde as peças foram expostas, o que resultou em poesia. As referências de cada ouvinte, por sua vez, acrescentou matizes às histórias originais. 


Cada um/a escolheu o lugar preferido para escrever
(Foto: Adélia Nicolete)

No último terço do encontro, compartilhamos os textos escritos e também as narrações improvisadas. Quem já escreve, quem acha que não escreve, quem nunca foi à escola - ninguém se colocou de fora.*

Marta lê o que escreveu
(Foto: José Roberto Costa)


Costumo dizer que a narrativa memorialística é feito crochê: a cada investida da agulha no plano conhecido, puxa-se um novo fio, faz-se nova laçada e um novo ponto é criado. Tenho a impressão de que tecemos uma bela colcha a quarenta e tantas mãos.

Ao diretor José Rubens Incao agradeço pela gentil acolhida, ao Beto sou grata pela simpatia e pelos registros. Obrigada Débora Brenga pela intermediação, a Victor Motta pela divulgação. 

Agradeço a todes que se dispuseram à partilha do presente, ao re-conhecimento do passado e à perspectiva de um outro Tempo em que haja mais tempo para as artes-manuais, para si e para o Outro. Que bela tarde!



Adélia Nicolete

* Exercício semelhante, desenvolvido na Pós-Graduação em Artes-Manuais para a Educação (A Casa Tombada / FACOM), originou a publicação de:

VEIGA, A. L. V. S da, NICOLETE, A. (Org.).  Artes-manuais: narrativas e memórias afetivas.  São Paulo: A Casa Tombada, 2017.



4 comentários:

  1. Belo registro, Adélia. E somos nós todos gratos pela sua presença sensível mas, ao mesmo tempo, provocativa.

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    1. Sua visita muito me honra, Dé! Que nos reencontremos muito em breve numa tarde linda como aquela! Beijo

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  2. Gratidão Adélia pela sua generosidade de compartilhar conosco estes belos momentos. Tarde maravilhosa. Abraços.

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    1. Eu é que agradeço pela presença e pela entrega ao processo. Foi realmente uma tarde memorável. Um abraço.

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