domingo, 18 de dezembro de 2016

"Narradores de Javé" - Histórias de Minas




O premiado “Narradores de Javé”, dirigido por Eliane Caffé e roteirizado em parceria com Luís Alberto de Abreu, estreou em 2003. 

Em linhas gerais, narra-se no filme o esforço de uma comunidade que, ao receber a notícia de que Javé será inundada para a construção de uma hidrelétrica, decide registrar em livro a grande importância de sua história e, com isso, evitar a inundação. Para tanto, convocam o carteiro Pedro Biá e o orientam a entrevistar possíveis descendentes dos fundadores e estes, um a um, dão a sua versão dos fatos – todas diferentes. Embora as narrativas não evitem o desaparecimento da cidade, acabam por fortalecer no grupo o sentimento comum de pertença, de modo que partem para a criação, eles mesmos, de uma nova História.

Dentre as tantas pesquisas para sua realização, foi feita em 1998 uma viagem pelo interior de Minas Gerais da qual tive a oportunidade de participar. Uma equipe em busca de narradores. Na época cursava uma disciplina na pós-graduação em Artes Cênicas, na ECA-USP, sob orientação da professora Maria Lúcia Pupo, de modo que aliei a viagem à escrita de minha monografia: “Histórias de Minas - relatos de viagem”.

Passados quase vinte anos, localizei o material, já sem as respectivas fotografias, infelizmente. Considerei que seria útil compartilhá-lo, por isso digitalizei e agora disponibilizo para possíveis interessados nas fontes inspiradoras do filme, bem como acerca de narrativas orais. Um mestrado, um doutorado e muitos escritos depois, estranho a espontaneidade do texto, mas talvez resida aí um de seus valores. 


O filme:
Narradores de Javé

A monografia:
Histórias de Minas - relatos de viagem



Adélia Nicolete

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Manual de Sobrevivência para Dramaturgos Otimistas - 2. Aliciamento


Paulo Ricardo Berton - Dramaturgo e Professor da UFSC
Idealizador e curador do SBEDR
(Foto: Galeria do I SBEDR)


A imagem do dramaturgo como alguém do sexo masculino, isolado em seu escritório diante de um teclado e rodeado por livros, senhor da criação de um texto por ele imaginado e organizado do princípio ao fim é praticamente puro exercício de ficção.

Cada vez mais as mulheres ocupam-se da escrita dramática e a ideia de isolamento completo, embora não totalmente abolida, cede lugar à permeabilidade das relações reais e virtuais, à interferência da tecnologia e seus acessos, do vai-vem cena-texto-cena. Dramaturgo e dramaturga vêm-se, desde o início do processo, em constante estado de negociação com intérpretes, com a direção, com demais criadores e criadoras e até com o público. Todo esse contingente, por sua vez, coloca-se em “estado de dramaturgia”, como sugere Bernard Dort, ou seja, exerce por um período a “função dramaturgia” na medida em que elabora ações que visem ao estabelecimento de um diálogo, de uma comunicação. *

Aquele quadro sofreu uma significativa transformação: autoras e autores não se encontram mais no vértice da criação. No vórtice é que se posicionam agora. No equilíbrio precário das dinâmicas compartilhadas, na polifonia criativa, numa horizontalidade que, observada ao microscópio, é gráfico de eletrocardiograma.

Camila Bauer - Diretora, Pesquisadora e Professora da UFRGS
Curadora do SBEDR
(Foto: Galeria do I SBEDR)
















Todo esse introito para justificar, mais uma vez, a importância de eventos como o Seminário Brasileiro de Escrita Dramática – Reflexão e Prática, em sua segunda edição esse ano. Durante cinco dias nós, dramaturgas e dramaturgos, pesquisadoras e pesquisadores, professores e professoras, estudantes de escrita dramática, editores, pudemos conhecer nossos pares e dialogar com eles nas diversas mesas e discussões, conviver, comungar, enfim, o ofício.

Manoel Candeias - Dramaturgo, Pesquisador e
Professor da Faculdade Célia Helena

Curador do SBEDR
(Foto: Galeria do I SBEDR)























Ainda somos poucos. Pouco se sabe de nós. 

Quem sabe o que é dramaturgia e para quê “ela serve”? Mesmo dentre os que fazem teatro, há uma ideia clara do que é dramaturgia, de quais as funções de um dramaturgo?  Num país como o nosso, com um grande número de analfabetos funcionais, ter acesso a vocábulos como esse (e a seus significados) é de um requinte extremo.

Mas o que dizer do poder público? Fartos e “diplomados”, quantos de nossos representantes, se colocados diante de um dramaturgo saberão o que ele faz? Tanto que as pastas municipais na área da cultura, quando existem, servem como moeda de troca dos acordos eleitorais, geridas por profissionais de outros setores. As verbas para educação e cultura, em todos os âmbitos, são as primeiras a serem racionadas – vejamos a Proposta de Emenda Constitucional nº 55, recém aprovada, cujo apelido de “PEC do Fim do Mundo” dá bem o tom trevoso que nos aguarda. E para coroar tivemos a extinção do próprio Ministério da Cultura em 2016, reintegrado tão somente por força de protestos e ocupações.

Ocupação da Funarte em São Paulo
(Foto: Mauricio Pisane / FramePhoto / Estadão Conteúdo)



No estado de São Paulo diversas Oficinas Culturais fora do centro fecharam as portas, programas artísticos de longa data e efetiva atuação foram sucateados, agentes de cultura, demitidos. Ações que levaram tanto tempo para se integrar às comunidades e constituir acessos qualificados, dissolvidas. 

Em meio a uma forte sensação de terra arrasada, como sobreviver e manter aceso o otimismo? Parece-me que um segundo tópico do nosso Manual é o Aliciamento, em diversas de suas definições. Quanto mais pessoas souberem do que trata a dramaturgia e de como ela está presente não só no teatro, na TV e no cinema, mas também na publicidade, no noticiário e nos cultos religiosos, por exemplo, mais a nossa função ganhará notoriedade e mais amplo sentido.

Portanto, como “ato ou efeito de atrair, seduzir”, o aliciamento para a dramaturgia passa pela divulgação dos mecanismos dramatúrgicos/fabulares presentes no dia-a-dia. Pela revelação dos dispositivos geradores de empatia e de consequente consumo, seja de bens seja de ideologias e comportamentos. Tal “revelação” é bom que esteja a cargo de dramaturgos e dramaturgas, assim denominados, assim reconhecidos, capazes de trazer a "dramaturgia" para o vocabulário comum do cidadão.

Como “angariação de elementos para formação de um grupo”, o aliciamento para a dramaturgia passa pela ampliação do número de interessados pela atividade. Isso pode se dar em cursos e oficinas específicos, mas também nas escolas formais em todos os níveis com a leitura e análise de peças; com a inclusão da literatura dramática em feiras e mostras literárias, não só para a venda de livros, mas para o diálogo com dramaturgas e dramaturgos. Trabalhamos sim com a escrita, mas não somos escritores genéricos, temos uma especificidade: a escrita verbal ou não para a cena e é preciso que isso fique claro se queremos que nossa profissão sobreviva como tal.

O dicionário Houaiss define ainda aliciamento como “alistamento de adeptos para determinada causa” o que, a meu ver, pode significar a arregimentação de pesquisadores da área. Quantas são as publicações nacionais sobre dramaturgia? Durante muito tempo a pioneira Renata Pallottini, poeta, dramaturga e professora, foi a única nas estantes com seus dois títulos: “Introdução à dramaturgia” e “Construção do personagem”. Muito lentamente temos cavado espaço para o tema, em especial nas publicações periódicas ou em edições restritas, financiadas por coletivos teatrais. Ainda assim é pouco e as pesquisas acadêmicas só recentemente se debruçam sobre os processos criativos em dramaturgia, já tão distantes do quadro inicial dessa postagem, bem como da forma dramática convencional.



Renata Pallottini
(Foto: internet)

Tais ações podem nos levar a uma última definição positiva de aliciamento, aquela que implica no “ato ou efeito de instigar; incitamento”. A apropriação dos meios expressivos da escrita dramática e do teatro, quando devidamente orientada, tem o condão de despertar a crítica e, consequentemente, gerar no indivíduo o desejo de mudança do estado das coisas. Para tanto, a Socialização do conhecimento, próximo tópico do nosso Manual, torna-se necessária.

Instigar e incitar para a dramaturgia e para o teatro é, sem dúvida, aliciar para a transformação de si mesmo e do mundo, daí o sucateamento das ações culturais por parte do poder público. Afinal, como anunciou Darcy Ribeiro em 1977: "a crise da educação do Brasil não é uma crise, é um projeto". Um projeto de sufocamento e de embotamento das vontades, que só com muito otimismo é possível combater.


Adélia Nicolete



* Sobre o "estado de espírito dramatúrgico" e a "função dramaturgia" ver a seguinte postagem.








segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Manual de Sobrevivência para Dramaturgos Otimistas - 1. Paixão




O Seminário Brasileiro de Escrita Dramática – Reflexão e Prática é um encontro anual idealizado e realizado pelo professor Paulo Ricardo Berton na Universidade Federal de Santa Catarina.  A curadoria é dividida com os professores Camila Bauer (UFRGS) e  Manoel Candeias (Faculdade Célia Helena) e a infraestrutura conta com o trabalho de estagiários e bolsistas. Durante cinco dias as mesas temáticas de reflexão e debate, as comunicações de pesquisa, as leituras dramáticas e oficinas, os lançamentos e vendas de livros visam a colocar em foco a escrita dramática nos diversos veículos.

Quando recebi o convite, em maio desse ano, o tema proposto para a mesa a ser dividida com o diretor e dramaturgo Diogo Liberano eram os coletivos de dramaturgia. Comecei a planejar minha fala a partir de um apanhado histórico e da experiência pessoal para, em seguida, fechar com os coletivos gerados em cursos e oficinas e o quanto isso representa para a nossa área de atuação. Passados alguns meses, porém, o contexto brasileiro (e mundial), que já não era dos melhores, tornou-se tão problemático e com perspectivas tão alarmantes que o próprio título da mesa foi alterado e nossa reflexão ganhou diferentes contornos: Manual de Sobrevivência para Dramaturgos Otimistas: Pequenos Coletivos.


Logo pensei em Ítalo Calvino e suas propostas para a Literatura no espetaculoso século XXI *. Inspirada nele (e sabendo-me  incapaz de conseguir sequer uma aproximação), alinhavei uma rapsódia com as minhas "propostas" para o Manual e convidei alguns autores/cúmplices para que, juntos, formássemos um pequeno coletivo em torno do tema.

Ítalo Calvino - para todos os tipos de Manuais
(Foto: internet)



Como o texto ficaria muito grande, cada uma das ideias - Paixão, Aliciamento, Socialização, Diversificação, Formação e Resiliência - será apresentada em postagem própria.

Agradeço desde já eventuais leituras e uma boa dose de indulgência.


***


1. Paixão

Penso que o primeiro elemento a constar de um Manual de Sobrevivência, não só do Dramaturgo como também de toda e qualquer categoria, seja a Paixão. Exatamente. Não o Amor. A Paixão, em seus mais variados aspectos, o de sofrimento intenso entre eles.

*

«li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega"


(Herberto Helder - 1930-2015)


Herberto Helder - paixão recente
(Foto: internet)

*


Qual é a nossa paixão? Eis a pergunta fulcral. Inspirados pelo poeta português Herberto Helder, busquemos a resposta.

O que nos mantém vivos, fazendo teatro? Mesmo quando nos deixa cansados, nos faz sofrer, nos dá prejuízo financeiro. O convívio com os pares, loucos e apaixonados como nós, capazes de refazer um trecho ou um texto mil vezes - obcecados por uma vírgula não percebida, um “caco” não autorizado? Ou o convívio com o grupo e suas dinâmicas especializadas em tirar-nos de nós mesmos? O espírito gregário – é ele que nos move?

Ou será o jogo da linguagem e seus desafios permanentes? O que/como (não) expressar? Como/onde (não) tocar (n)o Outro? A ideia de impossível tradução, a palavra inexistente, os mergulhos abissais no dicionário? A rima, o ritmo, o rito diário diante da tela/página em branco - é essa a nossa tara?

O que nos mobiliza, nos tira do eixo? Qual a nossa cólera - a que transparece nos olhos? O que ansiamos ver revelado? O que em nós mesmos e lá fora anseia pelo desbordo? 

É a resposta a isso o que dá sentido à nossa arte. O que nos define perante nós mesmos e perante o coletivo de que participamos, seja ele de dramaturgos ou de criadores da cena. Perante o público. Porque a paixão vetoriza, nutre e contagia. 

Portanto, quem sabe no nosso Manual não caiba uma norma de aliciamento/contaminação - nosso próximo item? Trazer mais e mais gente para o nosso lado da trincheira e assegurar que o teatro continue a existir e justifique, inclusive, a função do dramaturgo! Pois só quem faz teatro sabe o quanto ele é vital. Que o público, em algum momento, seja seduzido para a cena/vida, convencido de que talento e inspiração são importantes (ah! os mitos!), mas nada significam se não houver Paixão



Adélia Nicolete






* Trata-se do livro "Seis propostas para o próximo milênio" (Companhia das Letras). Calvino concluiu, na verdade, cinco conferências a serem proferidas na Universidade de Harvard. Em cada uma delas, abordou uma virtude que, segundo ele, só "a Literatura com seus meios específicos pode dar": Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade. A sexta, Consistência, foi apenas planejada, pois o autor veio a falecer.