Cartaz do filme |
Na porção final de Esperando Godot,
passados o tempo e as estações na expectativa de que algo verdadeiramente
grande e significativo acontecesse, o personagem Vladimir verbaliza, ainda que
sem consciência disso, a sua condição e também a do amigo Estragon:
“Eu estava dormindo enquanto os outros
sofriam? Estarei dormindo agora? Amanhã, quando eu estiver pensando que
acordei, que direi do dia de hoje? Que junto com Estragon, meu amigo, neste
lugar, até o cair da noite, eu esperei por Godot? Que Pozzo passou com seu
escravo e falou conosco? Sem dúvida. Mas o que haverá de verdade em tudo isso? (Vladimir
contempla Estragon cochilando.) Ele não saberá de nada. Ele falará dos
golpes que recebeu e eu lhe darei uma cenoura. (Pausa.) Com um pé na
cova e um nascimento difícil. Do fundo do buraco, indolentemente, o Coveiro
aplica seu fórceps. Temos tempo de envelhecer. O ar está cheio de nossos
gritos. (Escuta.) Mas o hábito é uma grande surdina. (Olha Estragon.)
Também para mim alguém está olhando, também sobre mim alguém estará dizendo:
Ele está dormindo, ele não sabe nada, deixe-o dormir. (Pausa.) Não posso
mais continuar. (Pausa) O que foi que eu disse?”
Samuel
Beckett criou os personagens sem nome completo, sem família, sem antepassados
ilustres ou posições definidas na sociedade. São dois vagabundos. Dois
palhaços, ou melhor, dois clowns. Vladimir é o chamado clown
branco, aquele que, na dupla, representa o raciocínio, o intelecto. Já
Estragon, mais ingênuo, emocional, eterno perdedor, sempre à mercê das
circunstâncias, costuma ser definido como clown augusto.
* * *
Augusto,
o protagonista do filme Super Nada, com roteiro e direção de Rubens
Rewald, assim como o clown composto por Beckett, vive à mercê dos
acontecimentos enquanto espera o grande teste, a grande chance de mostrar o seu
talento de ator cômico. Enquanto isso não acontece, sua vida é o próprio
ensaio. Guto prepara-se o tempo todo para o dia decisivo, que ele não sabe bem
qual será, por vezes simulando o grande encontro.
Utilizando
um recurso que lembra Beckett, Rewald cria um enredo que coloca em xeque
realidade e fantasia – mereceria reflexão à parte o desvelamento das famosas
“pegadinhas” que fazem tanto sucesso na televisão. Apesar de inserido em um
contexto diferente daquele de Vladimir e Estragon, e apresentar uma outra
estrutura interna, Guto não chega a formular um raciocínio como o do personagem
beckettiano, citado logo acima. No entanto, vemos em sua expressão a
perplexidade diante de certas experiências, o que acentua a possibilidade de
muitas delas terem sido apenas imaginadas por ele. Quem cuida desse tipo de
reflexão é o espectador, a todo momento convidado a mergulhar em alguma
situação que, em pouco tempo, mostra-se “nada”, apenas um ensaio, apenas uma
simulação, um intervalo de fantasia.
Embora
mais linear que Corpo, filme anterior de Rewald em parceria com Rossana
Foglia, Super Nada subverte igualmente os limites entre o que vai dentro
e fora da cabeça do personagem, do seu desejo e das suas neuroses. Os
protagonistas se assemelham em alguns aspectos, mas creio que nesse segundo
trabalho, o esfacelamento do personagem tenha sido o passo mais ousado do
diretor. Guto pode ser definido como uma figura, algo mais próximo de uma
pesquisa que se tem intensificado no teatro contemporâneo, não sem razão,
tributária do teatro de Beckett.
Esperando
Godot abre caminho para a desestruturação do personagem como indivíduo
constituído histórica e psicologicamente, relacionando-se com outros seres
igualmente definidos, com quem estabelecerá relações e diálogo interpessoal.
Longe de cumprir uma trajetória
apreensível e compreensível, com pontos nodais e conflitos que levem a um
desfecho coerente, o personagem contemporâneo carrega um espelho que reflete o
homem e a sociedade atuais. É, não raro, um simples emissor de discursos,
alguém incapaz de formular uma análise sobre o mundo, também ele múltiplo e
inapreensível. O avanço dos estudos psicológicos contribuiu para que pudéssemos
ver o homem e sua trajetória menos como fruto de uma vontade determinada que de
seus impulsos, por exemplo, e uma sociedade que propõe determinadas condições e
prega determinados valores condiciona a existência desses seres que vagam, sem uma
significativa história pregressa, rumo a um futuro igualmente insignificante.
Hamlet
já acenava com essa desestruturação do homem moderno. Guto, muitas vezes, é
apenas um corpo que vaga pela metrópole e seu funcionamento parece emperrado na
equação “ser ou não ser”. Paradoxalmente, ao contrário do augusto, que “não pensa”, o protagonista parece
imobilizado pelo excesso de pensamento.
Nas
aulas de expressão corporal ele vaga, no chuveiro com a namorada ele não está
totalmente presente. Nas festas está à deriva, nos testes e nos programas que
faz apenas cumpre a tarefa e recebe o cachê, dividido-o com a mãe. O ambiente
em que vive representa um pouco o que lhe vai por dentro: a precariedade. Falta
água na torneira, a descarga não funciona, o sofá puído não tem um dos pés. Não
há nada para se beber na geladeira e na parede da sala seu ídolo é um palhaço
decadente.
O
seu círculo social não colabora muito. Os amigos estão em permanente ensaio,
preparando-se em aulas sensoriais, com gestos que apenas simulam integração e
descontração. As festas reproduzem um outro patamar desse grande nada. A mãe,
talvez principal referência de Guto, também é dada ao lirismo e à teatralidade.
A namorada, atriz à procura de seu grande papel, vaga à mercê de seus desejos e
frustrações. Mas Guto tem uma filha e, quem sabe, ela possa fazer o fórceps,
trazendo à luz o personagem que vive no corpo que vaga. Guto só não naufraga
porque precisa sustentar a criança – outra imagem do clown augusto.
Um
protagonista como esse poderia vagar por qualquer geografia. Bastam a Vladimir
e Estragon uma estrada e uma árvore. Guto percorre a cidade de São Paulo. É ela
o seu abrigo, nela estão as ruas e o parque em que trabalha, o teatro em que
apresenta seus esquetes, a escadaria em que coreografa suas amizades, o viaduto
sob o qual empreende a caminhada solitária. Há uma pequena tomada de um
conjunto habitacional que me levou direto para alguns filmes ambientados em
Roma. Super nada me acendeu a esperança de que Rewald possa um dia realizar um trabalho mais
profundamente ligado à cidade.
A
referência a Beckett inclui ainda o que há de teatral no filme. À parte a
presença de atores do teatro paulista, dos cartazes na sala de Guto, há uma
forte teatralização nas situações. Certas cenas com a mãe, por exemplo, ou com
a filha, deixam dúvidas se os personagens estão agindo ou fingindo. A certa
altura tudo pode ser uma grande simulação, ou seja, pode não ser realmente
nada.
Tal
reflexão encontra reforço quando da gravação do programa de humor, no final do
filme. Tendo passado no teste para uma participação como “escada” em seu
programa preferido, Guto encontra-se apavorado, não só pela tensão como ator,
mas pelas mil e uma situações por que passou desde o teste até aquele momento –
situações reais ou imaginárias, não se sabe ao certo. Quando o personagem Zeca,
o cômico que apresenta o programa, chega perto do protagonista e o tranquiliza
com o conhecimento de causa que só alguém decaído pode ter, saltamos de Esperando
Godot para Macbeth, quando seu destino está selado:
“(...) A vida não é mais que uma sombra passageira
Um pobre ator que gesticula e se excita sobre um palco
E depois não é mais ouvido.
A vida é uma história contada por um imbecil,
Cheia de som e de fúria,
Mas que nada significa.”
Publicado anteriormente em
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