quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Um corpo que vaga - o personagem contemporâneo em SUPER NADA, filme de Rubens Rewald


Cartaz do filme

Na porção final de Esperando Godot, passados o tempo e as estações na expectativa de que algo verdadeiramente grande e significativo acontecesse, o personagem Vladimir verbaliza, ainda que sem consciência disso, a sua condição e também a do amigo Estragon:

“Eu estava dormindo enquanto os outros sofriam? Estarei dormindo agora? Amanhã, quando eu estiver pensando que acordei, que direi do dia de hoje? Que junto com Estragon, meu amigo, neste lugar, até o cair da noite, eu esperei por Godot? Que Pozzo passou com seu escravo e falou conosco? Sem dúvida. Mas o que haverá de verdade em tudo isso? (Vladimir contempla Estragon cochilando.) Ele não saberá de nada. Ele falará dos golpes que recebeu e eu lhe darei uma cenoura. (Pausa.) Com um pé na cova e um nascimento difícil. Do fundo do buraco, indolentemente, o Coveiro aplica seu fórceps. Temos tempo de envelhecer. O ar está cheio de nossos gritos. (Escuta.) Mas o hábito é uma grande surdina. (Olha Estragon.) Também para mim alguém está olhando, também sobre mim alguém estará dizendo: Ele está dormindo, ele não sabe nada, deixe-o dormir. (Pausa.) Não posso mais continuar. (Pausa) O que foi que eu disse?”

            Samuel Beckett criou os personagens sem nome completo, sem família, sem antepassados ilustres ou posições definidas na sociedade. São dois vagabundos. Dois palhaços, ou melhor, dois clowns. Vladimir é o chamado clown branco, aquele que, na dupla, representa o raciocínio, o intelecto. Já Estragon, mais ingênuo, emocional, eterno perdedor, sempre à mercê das circunstâncias, costuma ser definido como clown augusto.

* * *

            Augusto, o protagonista do filme Super Nada, com roteiro e direção de Rubens Rewald, assim como o clown composto por Beckett, vive à mercê dos acontecimentos enquanto espera o grande teste, a grande chance de mostrar o seu talento de ator cômico. Enquanto isso não acontece, sua vida é o próprio ensaio. Guto prepara-se o tempo todo para o dia decisivo, que ele não sabe bem qual será, por vezes simulando o grande encontro.

            Utilizando um recurso que lembra Beckett, Rewald cria um enredo que coloca em xeque realidade e fantasia – mereceria reflexão à parte o desvelamento das famosas “pegadinhas” que fazem tanto sucesso na televisão. Apesar de inserido em um contexto diferente daquele de Vladimir e Estragon, e apresentar uma outra estrutura interna, Guto não chega a formular um raciocínio como o do personagem beckettiano, citado logo acima. No entanto, vemos em sua expressão a perplexidade diante de certas experiências, o que acentua a possibilidade de muitas delas terem sido apenas imaginadas por ele. Quem cuida desse tipo de reflexão é o espectador, a todo momento convidado a mergulhar em alguma situação que, em pouco tempo, mostra-se “nada”, apenas um ensaio, apenas uma simulação, um intervalo de fantasia.

            Embora mais linear que Corpo, filme anterior de Rewald em parceria com Rossana Foglia, Super Nada subverte igualmente os limites entre o que vai dentro e fora da cabeça do personagem, do seu desejo e das suas neuroses. Os protagonistas se assemelham em alguns aspectos, mas creio que nesse segundo trabalho, o esfacelamento do personagem tenha sido o passo mais ousado do diretor. Guto pode ser definido como uma figura, algo mais próximo de uma pesquisa que se tem intensificado no teatro contemporâneo, não sem razão, tributária do teatro de Beckett.

            Esperando Godot abre caminho para a desestruturação do personagem como indivíduo constituído histórica e psicologicamente, relacionando-se com outros seres igualmente definidos, com quem estabelecerá relações e diálogo interpessoal. Longe de  cumprir uma trajetória apreensível e compreensível, com pontos nodais e conflitos que levem a um desfecho coerente, o personagem contemporâneo carrega um espelho que reflete o homem e a sociedade atuais. É, não raro, um simples emissor de discursos, alguém incapaz de formular uma análise sobre o mundo, também ele múltiplo e inapreensível. O avanço dos estudos psicológicos contribuiu para que pudéssemos ver o homem e sua trajetória menos como fruto de uma vontade determinada que de seus impulsos, por exemplo, e uma sociedade que propõe determinadas condições e prega determinados valores condiciona a existência desses seres que vagam, sem uma significativa história pregressa, rumo a um futuro igualmente insignificante.

            Hamlet já acenava com essa desestruturação do homem moderno. Guto, muitas vezes, é apenas um corpo que vaga pela metrópole e seu funcionamento parece emperrado na equação “ser ou não ser”. Paradoxalmente, ao contrário do augusto,  que “não pensa”, o protagonista parece imobilizado pelo excesso de pensamento.

            Nas aulas de expressão corporal ele vaga, no chuveiro com a namorada ele não está totalmente presente. Nas festas está à deriva, nos testes e nos programas que faz apenas cumpre a tarefa e recebe o cachê, dividido-o com a mãe. O ambiente em que vive representa um pouco o que lhe vai por dentro: a precariedade. Falta água na torneira, a descarga não funciona, o sofá puído não tem um dos pés. Não há nada para se beber na geladeira e na parede da sala seu ídolo é um palhaço decadente.

            O seu círculo social não colabora muito. Os amigos estão em permanente ensaio, preparando-se em aulas sensoriais, com gestos que apenas simulam integração e descontração. As festas reproduzem um outro patamar desse grande nada. A mãe, talvez principal referência de Guto, também é dada ao lirismo e à teatralidade. A namorada, atriz à procura de seu grande papel, vaga à mercê de seus desejos e frustrações. Mas Guto tem uma filha e, quem sabe, ela possa fazer o fórceps, trazendo à luz o personagem que vive no corpo que vaga. Guto só não naufraga porque precisa sustentar a criança – outra imagem do clown augusto.

            Um protagonista como esse poderia vagar por qualquer geografia. Bastam a Vladimir e Estragon uma estrada e uma árvore. Guto percorre a cidade de São Paulo. É ela o seu abrigo, nela estão as ruas e o parque em que trabalha, o teatro em que apresenta seus esquetes, a escadaria em que coreografa suas amizades, o viaduto sob o qual empreende a caminhada solitária. Há uma pequena tomada de um conjunto habitacional que me levou direto para alguns filmes ambientados em Roma. Super nada me acendeu a esperança de que Rewald  possa um dia realizar um trabalho mais profundamente ligado à cidade.

            A referência a Beckett inclui ainda o que há de teatral no filme. À parte a presença de atores do teatro paulista, dos cartazes na sala de Guto, há uma forte teatralização nas situações. Certas cenas com a mãe, por exemplo, ou com a filha, deixam dúvidas se os personagens estão agindo ou fingindo. A certa altura tudo pode ser uma grande simulação, ou seja, pode não ser realmente nada.

            Tal reflexão encontra reforço quando da gravação do programa de humor, no final do filme. Tendo passado no teste para uma participação como “escada” em seu programa preferido, Guto encontra-se apavorado, não só pela tensão como ator, mas pelas mil e uma situações por que passou desde o teste até aquele momento – situações reais ou imaginárias, não se sabe ao certo. Quando o personagem Zeca, o cômico que apresenta o programa, chega perto do protagonista e o tranquiliza com o conhecimento de causa que só alguém decaído pode ter, saltamos de Esperando Godot para Macbeth, quando seu destino está selado:

“(...) A vida não é mais que uma sombra passageira 

Um pobre ator que gesticula e se excita sobre um palco 

E depois não é mais ouvido. 
A vida é uma história contada por um imbecil, 
Cheia de som e de fúria, 
Mas que nada significa.”



Publicado anteriormente em
papelferepedra.blogspot.com.br

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Franz Xaver Kroetz


  
    
TALBOT, Armelle.  Franz Xaver Kroetz (né em 1946). In: RYNGAERT, Jean-Pierre. (org) Nouveaux territoires du dialogue.  Arles : Actes Sud-Papiers, 2005.  p. 75-80. (tradução de Adélia Nicolete para utilização em sala de aula)


    Se, desde seus primeiros sintomas, a crise do diálogo é construída sobre a ideia de que as relações intersubjetivas e o uso plenamente eficaz da palavra já não bastam, Franz Xaver Kroetz tratou de articular esta problemática ao status social de suas personagens, marginais ou gente simples que ele denomina “sub-privilegiados”. Kroetz recusa igualmente o modelo político de um teatro em que a personagem popular demonstra um perfeito domínio do instrumental linguístico da elite, metafísico, de um teatro no qual a sujeição a essa linguagem constitui um dado humano em si. Influenciado por Marieluise Fleisser[1] e Ödön von Horvárt[2], a dramaturgia kroetziana liga diretamente a opressão social à alienação linguística. Toma lugar, então, na cena, aquele que o dramaturgo denomina “proletariado de pessoas privadas de palavra, resultado extremo do capitalismo da educação que, não contente em explorar suas vítimas, ainda reforça o 'silêncio' que se torna característico desses verdadeiros burros de carga.”[3]

         Uma das especificidades do diálogo kroetziano reside, assim, no lugar exacerbado que o silêncio ocupa. Ele não remete mais a uma reserva de sentido rica o suficiente para dar suporte à explicitação, delimita, isso sim, as fronteiras contra as quais a palavra não cessa de tropeçar. Contra a convenção dramática da 'loquacidade', Kroetz elabora, com efeito, diálogos precários e “esburacados” onde o laconismo parece não tomar outra forma senão o mutismo radical, ou, no caso de rubricas extensas, quando somente o corpo pode exprimir satisfatoriamente o mal-estar das personagens. Dessa valorização do silêncio participa a invasão das 'pausas', 'tempo', 'longo tempo' e 'grandes intervalos' os quais Kroetz designa frequentemente a duração escrupulosamente cronometrada em suas rubricas. Este processo de dilatação explica, por exemplo, que o diálogo de Trabalho em domicílio, equivale, segundo o autor, a uma peça de teatro 'normal' de meia hora, mas deve durar 'noventa bons minutos'. Localizados nas falas ou entre elas, esses silêncios sublinham a impotência da palavra, seus empecilhos, seus bloqueios ou  suas síncopes. Sendo assim, eles efetivamente travam a dinâmica dialógica, e os tradicionais 'interlocutores' dão lugar àqueles que Kroetz chama de 'surdos-mudos'.

         Contudo, seria incorreto reduzir o empreendimento kroetziano de desconstrução do diálogo à hipertrofia de um ponto de suspensão[4]. Como um efeito dramático, o silêncio não se faz ouvir tão somente na ausência literal da palavra, mas também nos vazios que se revelam quando elas são proferidas. A inflação de um discurso indireto que não se percebe mais como tal (provérbios, slogans, lugares-comuns) se encarrega então de destacar o fenômeno de espoliamento linguístico a que são submetidos os sub-privilegiados. A palavra, longe de manifestar aquilo que é próprio da personagem, longe de exteriorizar sua interioridade, assinala uma expropriação, a interiorização de influências exteriores que ditam seu discurso: “cada um constrói a própria felicidade”, “quem procura acha” (Train de ferme), “antes comer bem que sonhar mal” (Alta Áustria)... Remetendo à imagem falaciosa de uma realidade sem história e sem classes, essas máximas emprestadas do senso comum são outros tantos véus que impedem a personagem de analisar seu lugar no mundo e de encarar as condições de sua transformação. A presença de frases de efeito e de expressões chiques participa igualmente dessa expropriação e provoca, pelos efeitos de estranhamento que produz, o abismo que separa a fraseologia dominante de seus usuários ocasionais.

         (...)
         Cegos às causas políticas de seus problemas, as personagens (mais frequentemente um homem e uma mulher) reproduzem entre si as relações sociais de opressão, recusando-se a reconhecer esse fenômeno, resistentes à sua formulação. No entanto essa resistência está inscrita no coração da escritura, de modo que o fosso que separa os protagonistas não cessa de produzir deslizamentos secretos, e o diálogo, trespassado por brechas e obstáculos, permite que surjam argumentos quase imperceptíveis que caberá ao espectador elucidar.

         Certamente os procedimentos aqui anotados correspondem a um período circunscrito da obra de Kroetz. Depois de Concerto à la carte (1972), peça escrita na forma de rubrica e que marca o ponto alto de suas pesquisas em torno do silêncio, ele experimenta novas formas, como a da elaboração de uma dramaturgia que ele chama 'do primeiro passo', que se debruça  sobre o duplo caminhar dos personagens rumo à tomada de consciência e à apropriação da língua (O ninho, 1974). Experimenta também a exploração de uma verborragia convulsiva e transbordante (Terras mortas, 1984). No entanto, são suas primeiras peças que encontraram mais eco no teatro contemporâneo na medida em que reformulam a questão complexa da representação dramática da palavra popular, e expõem um diálogo subordinado aos ditames ideológicos e às condições sociais que acabam por destitui-la de seus últimos poderes.




Publicado anteriormente em
http://papelferepedra.blogspot.com.br/



[1]    Dramaturga e roteirista alemã (1901- 1974). (N.T.)
[2]    Escritor e dramaturgo austro-húngaro (1901-1938) (N.T.)
[3]    Como no original: “bêtes de somme”/burros de carga. Talvez no sentido de levar o capitalismo nas costas, mantê-lo por meio de seu trabalho, de seus sub-empregos.
[4]    Suspensão entendida aqui como interrupção, adiamento, retardamento. (N.T.)

terça-feira, 12 de agosto de 2014

“O amor nos tempos do capitalismo”, de Eva Illouz ou Subsídios para dramaturgos e escritores acerca das relações dramáticas na contemporaneidade




            Ao definirmos como contemporâneo o teatro que, depois da Segunda Guerra, tem buscado afastar-se com maior ou menor intensidade da forma dramática convencional – e o Teatro do Absurdo pode ser considerado um ponto inaugural da nova fase –,  abarcamos um número incontável de manifestações as mais diversas, convivendo pacificamente ou não com espetáculos que conservam alguns dos princípios fundamentais do drama.

            O citado afastamento da forma dramática pode se dar por meio da fragmentação, por exemplo, da descontinuidade cronológica e consequentes diluição ou embaralhamento do fluxo causal, bem como da indeterminação de tempo e lugar, entre tantas outras possibilidades de subversão. Embora os personagens também tenham se reconfigurado nesse período, parece ser no terreno das relações que o teatro contemporâneo tem se mantido mais próximo do drama. Passados tantos séculos desde Aristóteles, a premissa de que a cena é espaço de ações humanas continua válida. Tanto que Jean-Pierre Sarrazac, um dos maiores pensadores da contemporaneidade teatral, pondera que nem todos os componentes dramáticos precisam ser negados, mas transformados de acordo com a própria evolução dos tempos.

            É possível observar em grande parte dos textos mais recentes – à exceção de Heiner Müller e Sarah Kane, para ficarmos em dois autores mais conhecidos – que as relações entre personagens continua “levando a ação para a frente”, ou seja, se mantém como motor da situação figurada ou transfigurada na cena. A peça transgride a forma dramática (às vezes bem pouco) em sua estrutura, mas se mantém absolutamente fiel às relações interpessoais e aos conflitos, tão caros ao drama. Assim, é comum vermos crises amorosas, turbulências entre pais e filhos e amizades em cheque, por exemplo, ilustradas com projeção de filmes e legendas ou editadas como cinema, encenadas em lugares nada convencionais, “performatizadas” com música e dança e assim por diante.

            No entanto, quem são esses “personagens contemporâneos” em suas crises interpessoais? Em que fontes podem dramaturgos, encenadores e atores buscar referências para a criação desses seres? Uma obra estimulante nesse sentido é “O amor nos tempos do capitalismo”, da socióloga Eva Illouz. O volume, publicado pela editora Zahar, reúne três conferências que abordam o tema do afeto e as transformações no modo de encará-lo e lidar com ele, no contexto do capitalismo.

            No primeiro capítulo, a autora aborda o advento da psicanálise e investiga o modo como as ideias freudianas invadiram aos poucos os mundos corporativo e social, transformando as relações. Afirma ainda que o feminismo, fortalecendo-se com os postulados da psicologia, foi igualmente responsável pelas transformações que vieram a ocorrer tanto na esfera privada quanto na pública.

            O tema é aprofundado no capítulo dois, em que Illouz dirige o olhar para o indivíduo e seu convívio amoroso e familiar, analisa as estratégias de autorrealização e manutenção dos laços, mantidas, muitas vezes, graças a interesses materiais e ideais de certos grupos (profissionais, clínicas, indústria farmacêutica, programas de TV, etc).

            Finalmente, no último trecho, intitulado sugestivamente de “Redes românticas”, o foco é o campo do envolvimento virtual entre as pessoas, da mercantilização e da textualização do afeto (sua transformação em linguagem pura), capazes de anular o corpo, pressuposto fundamental para o sentimento amoroso.

            A citação abaixo dá uma ideia do quanto os estudos de Eva Illouz podem alimentar a criação de personagens e relações interpessoais:

            ...”a cultura do consumo e a indústria da moda desempenharam um papel importante, ao acentuarem o manejo deliberado do eu e a criação de impressões programadas para agradar e seduzir outras pessoas. Isso marcou uma mudança significativa em relação ao eu do século XIX, que era menos fragmentado e menos dado a manipulações dependentes do contexto, porque era moldado por uma ideia holística do caráter”. p. 115

            Para a autora, no chamado “capitalismo afetivo”, afeto e economia interferem mutuamente, moldando-se um ao outro, a ponto da vida afetiva seguir “a lógica das relações econômicas e da troca”. E quando a linguagem da psicologia se entrelaça aos repertórios do mercado, “os dois oferecem novas técnicas e sentido para cunhar novas formas de sociabilidade” – farto material de pesquisa para o teatro contemporâneo.


publicado anteriormente em
http://papelferepedra.blogspot.com.br



           

           




quinta-feira, 7 de agosto de 2014

As formas não convencionais e o público de teatro



            Um guia de entretenimento de São Paulo em março de 2012 registra mais de 50 espetáculos teatrais na cidade.[1] Se nos detivermos no perfil de cada um, veremos que a maioria transgride, mais ou menos radicalmente, a estrutura dramática consagrada. Assim, notamos a utilização de recursos tais como ausência de uma história facilmente reproduzível; simultaneidade ou fragmentação de cenas/situações; paralelismo e assincronia das falas, emissão de texto que foge à troca dialógica, ou um diálogo que  parece conversa; trânsito por diferentes tempos e lugares; interlocução com a dança, a música, o cinema, as tecnologias; indefinição, indeterminação ou inexistência de personagens; participação mais concreta do espectador, motivada pela disposição da plateia, pela movimentação no espaço ou pela interação com a cena; o caráter de experiência, de evento ou comunhão, de “presentificação” mais que de representação, e tantos outros. Isso tudo desenvolvido, em grande parte, por coletivos de criação – fator determinante para a liberdade de pesquisa, pelo não atrelamento às exigências de um  mercado que supõe o que vai atrair ou não público e prestígio.

            O que temos notado, porém, é que mesmo com o aumento de trabalhos que fogem a uma estrutura dramática conhecida - e reforçada pelas novelas e pelo (melo)drama cinematográfico – permanece certa resistência a tais iniciativas. Reações semelhantes às que encontramos em certas exposições de artes visuais são hoje recorrentes no teatro, mesmo por parte de colegas: “isso não é arte”, “isso não quer dizer nada”, “faz-se qualquer bobagem e vira arte contemporânea”. Digamos que “teatro contemporâneo” é, para grande parte do público, a definição de um tipo de espetáculo complicado, que não somos capazes de “decifrar” e que, em geral, não diverte. Isso não deixa de ter um fundo de verdade: o “contemporâneo” oferece mesmo alguns obstáculos e cabe a nós, artistas e pesquisadores, oferecer condições para que eles sejam ultrapassados pelo público.

            O filósofo italiano Giorgio Agamben sugere algumas imagens para se referir ao termo “contemporâneo” que podem ajudar nossa reflexão. Fala primeiramente da intempestividade, retomando Nietzsche, que em 1874 publicou Considerações intempestivas, cujo objetivo era “acertar as contas com o seu tempo, tomar posição em relação ao presente.”[2]  “Intempestivo” traz um sentido de inadequação, de algo que não é próprio ou característico do tempo em que ocorre. Portanto, para Nietzsche – e para Agamben – é verdadeiramente contemporâneo aquele que é extemporâneo, que não está perfeitamente ajustado com o tempo presente e, por isso mesmo, é capaz de percebê-lo e apreendê-lo mais do que qualquer outro.[3] É como se o fato de se estar completamente mergulhado no presente e em tudo o que isso implica – permanente atualização - nos tirasse a capacidade de nos posicionarmos frente a ele. Só o conhecemos verdadeiramente quanto dele nos afastamos e sobre ele formulamos nosso pensamento.

            Agamben utiliza também a imagem das trevas do presente. Sugere que se olhe o escuro do próprio tempo e não suas luzes para se identificar o contemporâneo, afinal  “todos os tempos são, para quem deles experimenta a contemporaneidade, obscuros”. É contemporâneo quem é capaz de mergulhar nessas trevas e criar daí a sua obra.[4]  É isso: afastarmo-nos do presente a fim de buscarmos o que há de escuro nele, porque as luzes são o aparente, o óbvio e, por isso, o que é mais fácil de identificar. Portanto, mais do que preconceito ou ignorância, aqueles comentários acerca do teatro contemporâneo revelam que estamos, muitas vezes, identificando a luz, o aparente da obra. E que talvez, para uma melhor fruição, precisemos aprender a identificar o que a obra não revela. Isso se faz, a nosso ver, colocando-nos diante dela sem as lanternas que trazemos sempre conosco: nossas referências e preferências, verdades, certezas, nosso modo de ver, nossos critérios e julgamentos. Mergulhar os olhos nas trevas que a obra nos propõe, aceitando a vertigem, o desconforto, o desequilíbrio, a insegurança e, aos poucos, deixar que ela mesma nos mostre o que traz oculto.

            Sabemos o quanto há de relativo nessa proposição. O sucesso maior ou menor desse mergulho vai depender da predisposição do espectador e de sua formação, da mediação com a obra, do exercício e sua frequência etc. Trata-se, porém, de uma prática necessária em relação à arte contemporânea.

            A nosso ver existem três caminhos principais e coligados para que o contato com o teatro não convencional se torne uma prática menos dolorosa e mais efetiva. Um deles é a abertura do processo criativo ao espectador e a desmistificação do fazer artístico. Grande parte das vezes obra e processo são indissociáveis. Pensamos que uma formação de público só se efetiva com o compartilhamento da criação, pois quando se conhecem as bases, as inquietações e propostas que movem o trabalho, as referências práticas e teóricas do grupo, por exemplo, pode-se chegar a uma compreensão maior do resultado.[5] Paralelamente, os Festivais e Mostras tem papel fundamental na oferta de uma diversidade de produções, cursos e seminários com vistas à ampliação de referências e à reflexão, tanto por parte dos artistas quanto do público em geral. E aliamos a essas duas vias a constante reflexão teórica e sua divulgação em publicações especializadas e meios acessíveis ao espectador em geral – a internet tem sido grande aliada nesse sentido.

            Quem sabe, numa ação conjunta entre artistas, organizadores de eventos e pesquisadores possamos conquistar cada vez mais espectadores que fruam, destemida e apropriadamente, de um teatro não convencional.


publicado originalmente em
papelferepedra.blogspot.com.br 





[1]     Divirta-se. O Estado de S. Paulo. 23/3 a 29/3/2012, p. 67 a 82
[2]     AGAMBEN, Giorgio.  O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. de Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó : Argos, 2009. p. 57
[3]     Idem, p. 58.
[4]     Idem, p. 63.
[5]    Com relação ao tema recomendamos a leitura de Patrice Pavis.  A análise dos espetáculos. São Paulo : Perspectiva, 2003.