terça-feira, 22 de março de 2016

A memória do sal


Janela presente na antiga Fábrica de sal em Ribeirão Pires
Foto: Adélia Nicolete

Muito se fala da memória dos elefantes, forte como eles. Da memória dos peixes também se fala: é curta. Das coisas, as paredes têm ouvidos, dizem, e talvez por isso guardem lembranças além dos rabiscos, marcas diversas, digitais. A tinta, nova ou desbotada, revela. A veia aberta – o trinco – de fora a fora, de cima a baixo, contam dos abalos. As paredes têm ouvidos e memória. Os tijolos.

Quando de barro, os tijolos guardam um pouco de quem os moldou. Assentados, guardam o capricho do mestre ou a distração do moço recém chegado, enamorado, saudoso, morto de cansado. O edifício guarda lembrança de quem o construiu e frequentou.

Bichos, barro, tijolos, parede, gente têm memória, pouca ou muita, do que foram, de quem são. E o sal? Qual a memória salina?

Mais do que penso, compreendo pelo sentir, que a memória do sal existe é fora dele. Na água do mar e depois na pele queimada. Na língua, nos olhos que ardem. Na fervura que cresce. Na hemorragia que estanca, na ferida que seca e já não é mais. A memória do sal está na ferrugem, na corrosão das paredes – num recado sutil, mas absolutamente claro, de que o tempo passa, de que tudo passa, até que nada do que hoje é seja lembrado.

Era uma vez um moinho de sal. 

Vista geral da antiga Fábrica (moinho) de sal
Foto: Adélia Nicolete

Em 22 de março de 2016, por iniciativa do Coletivo Sal da Terra, conduzi um Ateliê de Memórias no Complexo Cultural Ibrahin Alves Lima em Ribeirão Pires. Doze pessoas reuniram-se em mais uma das ações que visam a reconduzir o destino daquele espaço, atualmente ameaçado de demolição, para os trilhos da cultura.


Participantes do Ateliê de Memórias
Foto: Adélia Nicolete


A proposta do Ateliê foi a criação de textos memorialísticos nascidos do contato direto com a arquitetura do local, com ênfase na Fábrica, construída em 1898 e que já abrigou moinhos de farinha e sal, processamento de adubo e salitre, depósito de pólvora, fiação de seda e, no início deste século, uma escola de música.

Que memórias guardam aquelas paredes? As janelas, o que presenciaram? A chaminé, ainda hoje vista desde longe, o que nos conta sobre a cidade nesse mais de um século de prontidão? A neblina, a vida marcada no compasso do trem, do sino da igreja, do apito da fábrica, onde? A fumaça hoje qual é? Os cheiros. A moda, o penteado das moças, as canções?

Que tanto essa fábrica viu e ouviu, mas o sal da nossa pressa corroeu sem deixar sabor? Foi esse o estímulo para a escrita.

Detalhe da parede externa da Fábrica de sal
Foto: Adélia Nicolete

Ver e ouvir as paredes e os tijolos. Interpretar a ferrugem. Dialogar com o medo, com o abandono, disputar espaço com o lixo e as fezes. Compactuar com o verde que brota, teimoso e incauto, rumo à vida – como observou uma das participantes. Rumo à construção de novas memórias.


Trecho do Complexo Educacional visto a partir da ferrugem das janelas
Foto: Adélia Nicolete


Para além de registrar histórias reais de antigos moradores ou funcionários – ação pretendida para breve pelo Coletivo – o Ateliê de Memórias tem a vocação de fabular verdades possíveis porque humanas. Despertar a sensibilidade para o sabor do trabalho, dos conflitos e das paixões que temperaram o espaço fabril. Deixar que as narinas ardam com o vazio, que a saliva e os olhos traduzam em palavras as memórias do sal.

Daí brotaram onze textos nos mais diversos estilos e até uma música. Eles foram compartilhados no grupo, analisados e cada autor teve a oportunidade de ouvir comentários e sugestões que, se considerados, poderão levar a uma reescrita.

A vida que teima em brotar
Foto: Adélia Nicolete

Qual o sentido disso?! Numa cidade de quase 120 mil habitantes, apenas doze (comigo 13 apóstolos) se reunirem pra inventar memórias? Para que? Que diferença faz?!

Mais do que penso, compreendo pelo sentir, que a memória do sal está no que ele preserva. Naquela tarde de 22 de março, nós fomos o sal. E isso deve fazer algum sentido.

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Obrigada ao Coletivo Sal da Terra pelo Encontro, aos funcionários da Biblioteca Municipal pelo ambiente de escrita. Muito obrigada aos participantes pela partilha sensível.



Adélia Nicolete