Janela presente na antiga Fábrica de sal em Ribeirão Pires Foto: Adélia Nicolete |
Muito se fala da memória dos elefantes, forte como eles. Da
memória dos peixes também se fala: é curta. Das coisas, as paredes têm ouvidos,
dizem, e talvez por isso guardem lembranças além dos rabiscos, marcas diversas,
digitais. A tinta, nova ou desbotada, revela. A veia aberta – o trinco – de fora
a fora, de cima a baixo, contam dos abalos. As paredes têm ouvidos e memória. Os
tijolos.
Quando de barro, os tijolos guardam um pouco de quem os moldou.
Assentados, guardam o capricho do mestre ou a distração do moço recém chegado, enamorado,
saudoso, morto de cansado. O edifício guarda lembrança de quem o construiu e
frequentou.
Mais do que penso, compreendo pelo sentir, que a memória do
sal existe é fora dele. Na água do mar e depois na pele queimada. Na língua,
nos olhos que ardem. Na fervura que cresce. Na hemorragia que estanca, na ferida
que seca e já não é mais. A memória do sal está na ferrugem, na corrosão das
paredes – num recado sutil, mas absolutamente claro, de que o tempo passa, de
que tudo passa, até que nada do que hoje é seja lembrado.
Vista geral da antiga Fábrica (moinho) de sal Foto: Adélia Nicolete |
Em 22 de março de 2016, por iniciativa do Coletivo Sal da
Terra, conduzi um Ateliê de Memórias no Complexo Cultural Ibrahin Alves Lima em Ribeirão Pires. Doze pessoas reuniram-se em mais uma das ações que
visam a reconduzir o destino daquele espaço, atualmente ameaçado de demolição,
para os trilhos da cultura.
Participantes do Ateliê de Memórias Foto: Adélia Nicolete |
A proposta do Ateliê foi a criação de textos memorialísticos nascidos
do contato direto com a arquitetura do local, com ênfase na Fábrica, construída
em 1898 e que já abrigou moinhos de farinha e sal, processamento de adubo e
salitre, depósito de pólvora, fiação de seda e, no início deste século, uma
escola de música.
Que tanto essa fábrica viu e ouviu, mas o sal da nossa pressa
corroeu sem deixar sabor? Foi esse o estímulo para a escrita.
Detalhe da parede externa da Fábrica de sal Foto: Adélia Nicolete |
Ver e ouvir as paredes e os tijolos. Interpretar a ferrugem. Dialogar
com o medo, com o abandono, disputar espaço com o lixo e as fezes. Compactuar com
o verde que brota, teimoso e incauto, rumo à vida – como observou uma das
participantes. Rumo à construção de novas memórias.
Trecho do Complexo Educacional visto a partir da ferrugem das janelas Foto: Adélia Nicolete |
Para além de registrar histórias reais de antigos moradores
ou funcionários – ação pretendida para breve pelo Coletivo – o Ateliê de Memórias tem a
vocação de fabular verdades possíveis porque humanas. Despertar a sensibilidade
para o sabor do trabalho, dos conflitos e das paixões que temperaram o espaço
fabril. Deixar que as narinas ardam com o vazio, que a saliva e os olhos traduzam
em palavras as memórias do sal.
Daí brotaram onze textos nos mais diversos estilos e até uma música. Eles foram compartilhados no grupo, analisados e cada autor teve a oportunidade de ouvir comentários e sugestões que, se considerados, poderão levar a uma reescrita.
A vida que teima em brotar Foto: Adélia Nicolete |
Qual o sentido disso?! Numa cidade de quase 120 mil habitantes, apenas doze (comigo 13 apóstolos) se reunirem pra inventar memórias? Para que? Que diferença faz?!
Mais do que penso, compreendo pelo sentir, que a memória do sal está no que ele preserva. Naquela tarde de 22 de março, nós fomos o sal. E isso deve fazer algum sentido.
* * *
Obrigada ao Coletivo Sal da Terra pelo Encontro, aos
funcionários da Biblioteca Municipal pelo ambiente de escrita. Muito obrigada
aos participantes pela partilha sensível.
Adélia Nicolete