segunda-feira, 17 de novembro de 2014

'Quem será contra nós...", peça teatral de Carlos Rosa - Apresentação do texto



Conheci Carlos Rosa no começo do século, como ator da Cia Teatro da Cidade de São José dos Campos. O espetáculo, Maria Peregrina, era a primeira parceria do grupo com o dramaturgo Luís Alberto de Abreu. Em seguida, escrevi eu mesma um texto em que o Carlos atuou, As serpentes que roubaram a noite, baseado no livro homônimo de Daniel Muduruku. Entre uma e outra tive o prazer de conviver com ele e compartilhar do seu talento para a comédia, mesmo fora da cena. Notar seu raciocínio rápido, seu modo de observar o mundo com um olhar e uma inteligência típicos dos atores e autores cômicos.

Bem, esse preâmbulo serve para três coisas. Primeiro para dizer que estou falando de alguém que conheço e de que gosto. Segundo, pra dizer que, sendo ator, Carlos Rosa conhece o outro lado do ofício e é sempre bom quando um intérprete busca saber mais sobre dramaturgia. Ganha a dramaturgia e ganha a cena. E, por último, porque sendo um ótimo ator de comédia, é curioso que ele tenha buscado em seu primeiro texto a “seriedade” do drama.

Confesso que logo que recebi o texto de Quem será contra nós... e atinei com o ditado popular que inspirou o título, já tive vontade de rir. Imaginei alguma situação hilariante entre os personagens e, pelos motivos que expus lá no primeiro parágrafo, tratei de imaginar o próprio autor fazendo um dos papéis. À medida que lia, vi que a situação não era propriamente engraçada, mas irônica, e pensei: ele deve estar preparando alguma, mais cedo ou mais tarde isso se complica e acaba virando comédia. Realmente, a situação complicou, mas acabou por revelar uma crítica demolidora, literalmente, que não lembra em nada a destruição/reconstrução cômica.

Carlos Rosa se debruçou sobre um tema atual, importante e urgente, sem meias palavras. Seus personagens argumentam, contra-argumentam e, à medida em que se intensifica a tempestade lá fora, percebemos que as quatro paredes entre as quais se encontram são sólidas apenas na aparência. Nesse embate as certezas se relativizam, as posições se invertem, máscaras são arrancadas e revelações acontecem - como pede o drama. E a crítica feita pelo autor a um certo estado das coisas acrescenta ao texto um incômodo que toda peça deveria ter, seja em que grau for.

É uma bela estreia. Mostra bem o trabalho de estruturação, de articulação das ideias e de investimento nos diálogos. Mas será que agora, dado seu primeiro passo na dramaturgia como autor sério, o meu amigo Carlos Rosa poderia presentear-nos com uma comédia?!



(O texto foi publicado no livro Dramaturgia em foco. Jacareí : Nova KMR, 2013)




domingo, 9 de novembro de 2014

Consultoria dramatúrgica - Parte II - Alguns atributos

Marcelo Castro, Alexandre de Sena e Gustavo Bones
"Congresso Internacional do Medo" - grupo espanca! - BH
Direção: Grace Passô - Consultoria dramatúrgica: Adélia Nicolete
(Foto: Guto Muniz)

Na postagem anterior, vimos o quanto pode ser complexo dissociar a dramaturgia do texto verbal dos demais textos a serem decodificados pelo espectador no teatro contemporâneo. É importante que se diga que na cena dita convencional outros textos existem, mas com função complementar, pois toma-se como ponto de partida uma peça já escrita e, em função dela, são desenvolvidos os demais elementos. Nesse caso, a presença de um fio condutor, de um eixo ou de um norteador tão forte, de um modo ou de outro condiciona as demais criações.

O teatro não mais dramático, ao abrir mão do eixo verbal, por exemplo, ou da fábula norteadora, condiciona outro processo: aquele em que as diversas camadas constituintes da cena são geradas em paralelo. O eixo, em muitos desses casos, é a equipe em si, seus desejos, suas pesquisas que permitem a experimentação ora de um espaço, ora de uma ambientação sonora, de uma enunciação verbal, de uma partitura corporal e de um sem número de experiências que partem umas das outras, bifurcam-se, sugerem novos caminhos, compõem aos poucos a estrutura, numa espécie de retroalimentação.

Nesse contexto, o trabalho de consultoria dramatúrgica pode ser considerado sob diferentes aspectos. O principal deles é o acompanhamento do trabalho  como um “olhar externo” ao processo, sem o mesmo envolvimento visceral da equipe. Um olhar crítico e comprometido não só com o resultante, mas fundamentalmente com os motivadores e objetivos do grupo, o que difere o consultor do espectador que porventura dê sua opinião nos ensaios abertos.

Se presente em etapas iniciais, o consultor de dramaturgia perguntará para quê e para quem o trabalho está sendo feito, bem como o que se pretende com ele.  Se a equipe não tiver isso claro, o consultor ajudará na busca dessa clareza, na busca de um norte a seguir. A partir dessa identificação e do esclarecimento de propósitos, poderá ser estabelecido um “plano de vôo”, uma “rota de navegação” para que se chegue o mais próximo possível do lugar/resultante almejado – ainda que se possa mudá-lo no decorrer da trajetória.

Em estágios mais adiantados, ciente do arcabouço do projeto e dos objetivos do grupo, o consultor poderá estabelecer um diálogo mais estreito com toda a equipe ou tão somente com o dramaturgo ou diretor, no intuito de auxiliar a condução da obra em construção até o mais próximo possível das metas. Discussões, estudos do texto dramático, análises de ensaios, interferências criativas são algumas das ações possíveis ao consultor. Ele atua, de certa forma, como um espectador privilegiado: aquele que detém informações preciosas, desconhecidas pelos demais. E, na medida em que seu olhar repousa sobre algo ainda em gestação, é necessário que se mantenha sempre alinhado ao porvir. Dito de outro modo, é preciso que cada proposta seja analisada não como algo concluído, mas como um vir a ser, em conjunto, inclusive, com o público pretendido. 

Em nenhum dos casos o consultor deve atuar como autoridade. Embora seja um profissional contratado para uma função específica e pontual, não é desejável que ele imponha a sua vontade, o seu ponto de vista ou as suas preferências estéticas sobre um processo que, inicialmente, não é seu. A neutralidade total é impossível, visto que, em geral, o consultor é convidado justamente pelo seu projeto estético, pela sua linha de atuação, a fim de estabelecer uma parceria mais produtiva. É importante, porém, que ela esteja o tempo todo no horizonte.

Há processos em que o consultor é chamado para um olhar mais específico sobre o texto verbal e sua conjunção com os demais. Mas quando texto dramático e cênico nascem simultaneamente, é bastante comum que as análises sejam feitas também em conjunto, isto é, que o papel impresso dê lugar à enunciação e à encenação, ainda que precárias. Seja como for, a maior eficácia do trabalho de um consultor dramatúrgico dependerá da frequência com que acompanha o processo, da permeabilidade do diálogo com os criadores, bem como da clareza de propósitos da equipe.



segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Consultoria dramatúrgica - Parte I - Contexto


Paulo Azevedo, Samira Ávila e Martielo Toledo
parte da equipe de criação de "Heróis - uma pausa para David"
Produção: SUA Companhia - BH-SP
Consultoria dramatúrgica: Adélia Nicolete



Até bem pouco tempo, a autoria individual de um texto dramático garantia, de certo modo, o “controle” de todo o processo de escrita – ao menos até o momento em que a peça era “montada”, com vistas à cena. Ao dramaturgo cabia criar um organismo em que as partes tivessem correspondência, em que as funções fossem plenamente justificáveis, que funcionasse, enfim, de maneira autônoma (como literatura dramática) e exequível por outrem. Daí o suposto “controle”, por parte do escritor, de todos os aspectos envolvidos, desde a idéia original até o ponto final. Controle de temas, premissas, personagens, ações e assim por diante, em busca da referida organicidade.

Atualmente, esse autor divide espaço com outros tipos de criadores e pode, ele mesmo, desenvolver textos autorais e em colaboração. No caso desse último tipo de processo, o termo “montagem de uma peça” passa a ser inadequado, pois a dramaturgia do texto verbal é criada pari passu às demais. O teatro contemporâneo – aquele que desvia com maior ou menor intensidade da forma dramática convencional – considera a dramaturgia de maneira mais ampla que a criação do texto a ser enunciado pelos atores. Assim, há textos da luz, do cenário ou da trilha sonora, por exemplo, a serem lidos e decodificados pelo público, a dialogar também com os demais textos envolvidos na criação do espetáculo.


Dito de outro modo, o “controle” do escritor que, no mais das vezes, colocava o texto no centro do processo teatral, tem de ser dividido com toda a equipe. Em decorrência disso, o organismo perfeito do drama cede lugar a uma criatura feita de elementos de origens e formas diversas que pode, sim, ser lida/interpretada como um todo, mas sem que se perca de vista sua composição a partir da junção de fragmentos. Em suma, a dramaturgia, antes relacionada ao texto verbal, no teatro contemporâneo passa a referir-se também à totalidade da cena, pois assumida como tessitura de ações as mais diversas, inclusive as que se referem ao espectador . É justamente nesse contexto que surge a figura do consultor de dramaturgia, da qual trataremos na próxima postagem.