quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Ateliê de Dramaturgia - UDESC - Finalização



Aline prepara sua cena solo
(Foto: Adélia Nicolete)


Os dois últimos encontros do Ateliê de Dramaturgia da UDESC foram dedicados mais especificamente à experimentação cênica dos textos criados e/ou reescritos ao longo dos três encontros anteriores. Os participantes foram distribuídos em grupos e houve também quem preferisse trabalhar individualmente.


A cada uma das equipes coube um conjunto de escritos a ser selecionado, analisado e tratado conforme melhor conviesse, podendo-se lançar mão de recorte, colagem, justaposição, sobreposição, bem como da conjugação com a dramaturgia do espaço, do corpo, da voz e assim por diante.

Dentre os materiais distribuídos pouco havia que fosse convencional ou facilmente transposto para a cena. O desafio foi aceito e vencido e, se mais tempo houvesse, algumas das propostas poderiam vir a ser transformadas em espetáculos.

Marco e Beatriz e sua proposta multimídia
(Foto: Vicente Concílio)





















As relações virtuais contemporâneas foram tratadas por Beatriz e Marco por meio dos textos "Putaria", de Vicente e "Tutorial", de Lucas. A dupla utilizou projeções, bem como sua interação com os atores. A gravação de um tutorial de beleza garantiu a relação da personagem com a câmera e, a partir daí, com os possíveis espectadores desse tipo de vídeo - relações mediadas.


Cena de Renata, Fernanda e Stephan (ao centro)
(Foto: Vicente Concílio)



















Um espaço aparentemente doméstico foi criado por Renata, Fernanda e Stephan para a encenação dos materiais escritos por Gabrielli ("Cyberespaço"), Beatriz ("Autorretrato") e Ohanna ("Descarte") . O público foi convidado a presenciar o que poderia ser a relação entre membros de uma família, as crises e os impasses dessa convivência. Curioso que o grupo transformou a dificuldade com relação aos textos em um "problema" a ser resolvido pelo público - aquilo realmente aconteceu?, se ninguém viu, aconteceu? - utilizando-se de recortes e repetições, entre outros recursos.


Gabrielli, Aline, Schaitel e Vicente ensaiam
(Foto: Adélia Nicolete)




















O corredor foi o espaço escolhido por uma das equipes para tratar, entre outros temas, da solidão em meio ao coletivo. "Na espessura da memória", de Stephan e outros dois textos de autoria de Marco foram experimentados num local de passagem, com os bancos dispostos frente a frente e ao longo das paredes, o que intensificou a sensação de individualismo ainda que se estivesse sentado ao lado de alguém. 

A enunciação dos textos pelos atores - individualmente ou em coro - sem um destinatário definido, bem como uma narrativa gravada e acionada próximo do final da cena traduziram a frieza das relações, culminada com a sentença "não há ninguém perto de você" distribuída sob os assentos e repetida muitas vezes pelos atores.

Aline em sua apresentação solo
(Foto: Vicente Concílio)

Aline (acima) quis experimentar um trabalho solo. Nossa leitura de Sarah Kane foi uma de suas inspirações, além do "Autorretrato" e de um texto baseado em Vivian Maier, ambos de autoria de Marco, para desenvolver uma pesquisa em diálogo com a graduação. 

A participante operou com objetos descartados e adotou sonoridades diversas como fio dramatúrgico paralelo ao texto verbal: instrumento, garrafas, chaves, correntes, palmas, etc. Segundo ela, as paredes descascadas da sala dialogaram igualmente com a ideia de descarte proposta pela cena.

Lucas em um solo ao ar livre
(Foto: Vicente Concílio)


Os materiais textuais "Cápsulas e colapsos", de Marcos e "Descarga", de Schaitel, foram levados à cena por Lucas no pátio interno da unidade. Sua performance teve início com a descrição de sua ação, bem como com a ingestão de uma bebida que, ao descer pelo seu esôfago e cumprir a trajetória devida, foi estímulo para semelhante percurso do ator ao redor de um círculo. Digestão e percurso buscavam mimetizar a forma escolhida por Schaitel para o seu "descarga": um texto contínuo e circular, que parte da área mais ampla da folha de papel e gira até o centro - ralo. 



Ohanna, Audrey e Marcos em cena
(Foto: Vicente Concílio)


A sexta e última apresentação contou com os materiais de Vicente ("Autorretrato"), Stephan ("Como nos outros dias") e de Renata ("Fluox"). O grupo compôs com mastros brancos um espaço exíguo, delimitado, mas perfeitamente devassável pelo olhar do público, que deveria cumprir um percurso até o local e escolher o ponto de vista que melhor lhe conviesse.

Ao chegar, o espectador já encontrava a cena em curso e, depois de uma série de repetições moduladas de forma diferente a cada vez, poderia escolher se retirar, tendo a impressão de que a ação continuaria ad infinitum.

Schaitel durante ensaio da cena
(Foto: Adélia Nicolete)


Chegamos ao último encontro com treze bravos participantes. Se digo bravos é porque se dispuseram a superar toda uma série de circunstâncias adversas, otimistas em encontrar algo que lhes fosse proveitoso em todo o processo.

Encontros mensais mostraram-se até certo ponto contraproducentes, ao menos nos moldes com que o Ateliê de Dramaturgia tem sido trabalhado. Encontros semanais asseguram uma apropriação mais efetiva dos meios criativos e das técnicas de escrita, além de promoverem uma interação mais efetiva do grupo – condutor incluído – o que determina tanto um aprofundamento do processo quanto uma radicalização paulatina das propostas. Encontrar espaço e disponibilidade para o Ateliê em meio ao semestre letivo também foi prova de resistência para todos.

Lucas, Vicente e Renata durante ensaio
(Foto: Adélia Nicolete)













Em todo caso, diversos escrevedores aplicaram em seu estágio ou em suas atividades artísticas alguns dos exercícios desenvolvidos no Ateliê de Dramaturgia ou neles inspirados. Sem dúvida, foram criados materiais textuais significativos, ainda que não tenhamos tido tempo para uma análise mais aprofundada com vistas à reescrita.


Mesmo discordando da condução ou dos rumos tomados pelo processo, todos se dispuseram à experimentação, o que atesta não só a generosidade, mas também a maturidade do grupo. A postura profissional pode ser identificada durante todos os encontros. Sucesso a todos!

Stephan durante ensaio da cena
(Foto: Adélia Nicolete)













Vicente e Marco



















Agradeço novamente aos escrevedores e louvo seu empenho. 
A Stephan e Vicente, queridos, agradeço pelo convite e pela acolhida. 

Recebam todos o meu abraço!

Adélia Nicolete




domingo, 15 de novembro de 2015

Ateliê de Dramaturgia na UDESC – III – Dramaturgia do descarte


Arthur Bispo do Rosário veste uma de suas criações
(Fonte: internet)

Ao dar continuidade às propostas de escrita a partir do contato com as artes plásticas, o terceiro encontro do Ateliê de Dramaturgia na UDESC foi direcionado à temática do descarte. Para tanto, nos valemos da apreciação de alguns artistas performers e também de peças teatrais cujos procedimentos de criação assemelham-se ao das linguagens visuais no sentido de operar com materialidades de origens diversas.

Uma das características mais marcantes da pós-modernidade é a exacerbação do consumo em todos os níveis. Decorre daí um grande volume de material descartado e, em nível filosófico e existencial, a tentativa de lidar com o provisório e o superficial, com o que é passageiro, frágil e de curta validade. O ser humano, em busca permanente de sentido para si e para o que está ao seu redor, debate-se na tentativa de lidar com a sucata, com o dejeto, o resíduo, a sobra, o resto.

Dessas tentativas resultam trabalhos como os do norte-americano RockNRoll, do brasileiro Raimundo Borges Falcão, do japonês Eijiró Miyama – todos já contemplados neste blog – e de Arthur Bispo do Rosário.

Eijiró Miyama vestido com uma de suas criações
(Fonte: internet)


Tais artistas, como tantos outros a lidar com o descarte, partem de um impulso interno de organização e criação, impulso esse que determina o tipo de material a ser colecionado, bem como seu direcionamento a certa resultante. O processo é semelhante na maioria dos casos apreciados e percorre busca, identificação e coleta, seguidas de seleção, composição e formalização.


A técnica compositiva vale-se de seriação, sobreposição e repetição, podendo ocorrer também a justaposição e a fragmentação dos materiais selecionados. Costura, bordado e colagem são procedimentos comuns aos artistas escolhidos para o encontro e, não bastasse a criação dos objetos, eles assumem-se também como performers de sua obra.


Casaco criado pelo artista RockNRoll
(Coleção Lisa Spindler)


No que tange à dramaturgia teatral, analisamos trechos de peças de padrões não mais dramáticos, compostas via intertextualidade, fragmentação, justaposição de imagens, listagem – num paralelo com as obras de arte apreciadas. 

Um dos textos escolhidos para leitura e análise foi “X-WRITE”, de Ana Luísa Santos, dramaturga e performer mineira. O trecho inicial dá uma ideia das estratégias compositivas da autora, que segue na mesma proposta até o final da peça:

EU SOU DE AÇÚCAR
EU QUERIA FAZER UM DIÁLOGO ATÉ DERRETER
MAMÃE PASSOU STÉVIA EM MIM
PAPAI NÃO FALA SOBRE ISSO
VOCÊ SÓ DUBLA
IGUALZINHO COM A GENTE
ACHEI MASSA DO PERFIL_
A CASA DELE É TODA TOSCA_
NÃO TEM NADA DE FEMININO_
ATÉ DÁ MAIS CAMADAS_
É UMA COISA ESTEREOTIPADA MESMO
CRISE SOCIAL_
CRISE SEXUAL_
CÉU SOBRE OS OMBROS_
OLHAR PELA FECHADURA
UMA TRAVESTI QUE ESCREVE_
FAZ PROGRAMA E FAZ MESTRADO
COMO A GENTE É PRECONCEITUOSO
É PORQUE EU NÃO ASSISTO
VIAGEM SOLITÁRIA_
LUTA CONTRA O CORPO
CONFLITOS NORMAIS DO SER HUMANO
-


Ana Luísa Santos vale-se da colagem como técnica principal. Segundo ela, depois de criados e/ou coletados os fragmentos, foram testadas diversas disposições. Chegou-se a utilizar literalmente do recorte em papel de cada um dos itens da lista a fim de experimentar as localizações em nível rítmico, gráfico e temático, por exemplo, o que sugere novas possibilidades de arranjo. Em outras palavras, trata-se de um texto-jogo de infinitas possibilidades.

De certo modo, tais possibilidades ganham quase uma progressão geométrica, na medida em o público participe da elocução e/ou da leitura do texto, o que ocorreu em duas apresentações propostas pela dramaturga-performer. Na primeira, o texto foi distribuído a leitores específicos, que tinham os pés mergulhados em bacias com água, e páginas igualmente distribuídas aos espectadores, que puderam não só acompanhar a enunciação feita por outrem, como também ler em voz alta quando lhes aprouvesse. Tal estratégia foi utilizada quando de nossa leitura no Ateliê de Dramaturgia na UDESC, o que propiciou protagonismos e momentos corais, a propiciar sentidos diversos aos materiais propostos por Ana Luísa.


A segunda encenação feita pela dramaturga contou com um telão onde o texto foi projetado de modo espelhado e outro em que se podia ver o rosto da atriz em tempo real. O público acompanhava a peça pelo telão, enquanto a performer, ao microfone, lia em um teleprompter, mais uma vez com os pés submersos. Comandado por um parceiro “de jogo”, o teleprompter exibia o texto ora num ritmo normal, ora acelerado, ora pausado, obrigando a intérprete a alterar voz, corpo e estados internos.

Ana Luísa Santos em apresentação no evento "Janela de Dramaturgia" - BH
(Foto: Ethel Braga)



Ana Luísa Santos em apresentação no evento "Janela de Dramaturgia" - BH
(Foto: Ethel Braga)


Ana Luísa Santos em apresentação no evento "Janela de Dramaturgia" - BH
(Foto: Ethel Braga)

Sob certo ponto de vista, “X-WRITE” pode ser considerado um texto polifônico na medida em que congrega vozes perceptivelmente diferenciadas. Encontra-se ali a fala das ruas e da sala de estar; a conversa de comadres e o discurso publicitário; a fofoca, a manchete, postagens e comentários das redes sociais; o verso poético e contemplativo, o grito, a angústia. Podem-se ouvir os manifestos das ruas, o noticiário, as reflexões filosóficas e sociológicas, de um sem número de fontes.

Ana Luísa Santos é observadora atenta. Coleciona o que seus olhos e seus ouvidos consideram legenda do mundo contemporâneo e, a partir do material coletado – verdadeiros descartes – cria dramaturgia e cena, na maioria das vezes, com a colaboração do público. 

***

Logo após a análise de alguns trechos de dramaturgia, os participantes do Ateliê foram convidados a relacionar "materiais" descartáveis, ideias e conceitos fora de uso, termos já sucateados ou esvaziados de seu sentido e, a partir da seleção de alguns deles, criar um material textual com base nas estratégias compositivas estudadas anteriormente.



Adélia Nicolete


* Sobre esses artistas e a dramaturgia do descarte, consultar as postagens sobre

Raimundo Borges Falcão

Rock'N'Roll

Eijiró Miyama







sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Ateliê de Dramaturgia na UDESC – II – O Outro



Vivian Maier - San Francisco - 1978













Jean-Michel Basquiat - Sem título (Anjo caído) - 1981
Intersecções com a foto de Vivian Maier














Conforme abordei na postagem anterior, um dos principais objetivos do Ateliê de Dramaturgia é desviar o foco criativo do interior de cada participante para o mundo externo a fim de que a noção de talento ou de inspiração, por exemplo, possa ela também ser desviada para outras situações que não a da escrita. Mundo externo, no caso do Ateliê conduzido na UDESC, equivale a dizer artes visuais.

De que modo suscitar no escrevedor motivações estéticas que despertem ideias, lembranças, cenas, sensações, referências suficientes para, depois de selecionadas e organizadas, ressurgirem em forma de material textual?

Vivian Maier - San Francisco - 1971


Em minha segunda atuação na UDESC, em julho, planejei apresentar e refletir sobre alguns aspectos do trabalho de dois norte-americanos: a fotógrafa e videomaker Vivian Maier e o performer e artista plástico Jean-Michel Basquiat. O grupo foi orientado a assistir previamente ao documentário “A fotografia oculta de Vivian Maier”, de John Maloof e Charlie Siskel *, e a visitar o site dedicado à sua obra.**

Depois de uma breve conversa sobre o filme e as fotografias da artista, apresentei um estudo comparativo entre alguns de seus trabalhos e os de Basquiat, tendo como base a biografia dos dois nova-iorquinos e, como fio condutor, a dramaturgia e a cena contemporâneas em seus procedimentos e resultantes para além da forma dramática. Chamei em meu auxílio Roland Barthes e seu conceito de punctum, bem como textos de Jean-Pierre Sarrazac e Jean-Pierre Ryngaert, entre outros pesquisadores.***


Jean-Michel Basquiat - Notário - 1983
Justaposições, sobreposições, polifonia, materialidades diversas...












Vivian Maier - Nova York - 1971
Sobreposição, espelhamento, camadas de informação, presença-ausência...





















Ao analisarmos certas obras de Maier e Basquiat, pudemos identificar o trabalho em camadas, polifonia e rapsódia, a presença do autor, a performatividade, a posição do espectador e tantos outros elementos caros ao teatro atual.

A seguir foi apresentada uma fotografia que, depois de analisada coletivamente pelo grupo, motivou a escrita de uma narrativa em terceira pessoa. Se em nosso primeiro encontro nos concentramos no eu/autorretrato (gênero lírico), naquele momento exercitaríamos, tal qual Vivian Maier, o nosso olhar para O Outro, e trataríamos o texto de uma forma épica.


Foto: Vivian Maier
Imagem utilizada como referência para a escrita de narrativas

Os textos foram lidos e analisados por todos os escrevedores a fim de que se encaminhasse a reescrita.

Uma possível continuidade do exercício seria a escolha de uma série de retratos realizados pela fotógrafa. Distribuídos entre os participantes, cada um deles motivaria a imaginar a situação em que foram tirados. Tais situações gerariam cenas a serem fisicalizadas ou escritas, a fim de compor um grande painel da metrópole, com posterior pesquisa de sonoridades, coralidade, movimentação coreográfica, etc.

Em etapa mais avançada, os escrevedores, de celular em punho, flagrariam eles mesmos O Outro numa excursão pelo centro ou lugares de afluxo de pessoas. Materiais textuais seriam gestados a partir da análise das imagens, ou seja, o participante vivenciaria a criação em diferentes linguagens, integrando-as em sua ação.

Ficam as sugestões.

Adélia Nicolete


* O filme legendado pode ser assistido no endereço abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=zATFOwuBtjY

** http://www.vivianmaier.com

*** BARTHES, Roland. A câmara clara. São Paulo: Saraiva
RYNGAERT, Jena-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes
______. Ler o teatro contemporâneo.  São Paulo: Martins Fontes
SARRAZAC. Jean-Pierre. O futuro do drama. Portugal: Campo das Letras




sábado, 10 de outubro de 2015

Ateliê de Dramaturgia na UDESC – I – Intensivo



Entre junho e setembro de 2015 conduzi encontros mensais no Centro de Artes da Universidade Estadual de Santa Catarina, a convite do professor Stephan Baumgärtel. Os participantes vieram da graduação e da pós graduação, vários deles atuantes no programa de estágio do curso de Artes Cênicas - o PIBID.

Afeita a um padrão de encontros semanais, onde o processo se desenvolve ao longo de dois ou três meses, imaginei para o grupo de Florianópolis o trabalho em unidades, dada a distância entre um encontro e outro. Postarei um registro de cada mês nas próximas edições do blog.



* _ * _ *


A primeira das sessões foi intensiva. Durante as 8 horas, divididas entre a sexta à noite e o sábado pela manhã, os escrevedores vivenciaram o estímulo inicial, a escrita, a análise dos textos, o exercício cênico e sua avaliação. Para tanto, julguei conveniente um trabalho em torno do eu e do personagem.

O disparador inicial foi o levantamento de verbos e substantivos ligados a cada região do corpo. O objetivo foi distribuir os motivadores e as ações do personagem em lugares que não só o pensamento e a emoção. Ao deslocar a motivação da ação pudemos abordar as diversas conformações do personagem no teatro dito contemporâneo - figura, sujeito, enunciador, voz, etc. (1)


A seguir foi proposto o exercício da silhueta, baseado numa das etapas da oficina de dramaturgia Sarah Kane no Royal Court de Londres.


Silhueta - Vicente Concilio
(Foto: Vicente Concilio)

Delineado o corpo de cada participante, foram buscadas e selecionadas imagens em revistas que melhor se relacionassem com cada região do corpo. Sarah Kane desafiava os alunos a escreverem sobre si mesmos no espaço interno da silhueta. Aqui, o desafio foi a criação de um autorretrato feito com a técnica de recorte e colagem. (2)

Espera-se que o processo de criação pictórica atue como uma referência quando da criação escrita, dadas as semelhanças entre os dois tipos de composição. O escritor, tal qual o artista plástico, opera com identificação e seleção de imagens, ideias e palavras, por exemplo. Do mesmo modo, organiza esses materiais de acordo com certos critérios, valendo-se de simetria ou assimetria, ritmo, textura, oposição, contraste e um grande número de outros recursos.

Autorretrato pictórico de Vicente Concilio
(Foto: Vicente Concilio)

Ainda na sexta-feira, após a apreciação coletiva das resultantes, todos foram convidados a elaborar um autorretrato escrito a partir da composição pictórica. Haveria liberdade com relação ao gênero escolhido, mas limitação de tamanho - deveria ser um texto curto.


O exercício da escritura a partir de motivadores externos, tais como a elaboração e a apreciação de obras de artes visuais, tem como principal função o deslocamento do estímulo criativo de dentro para fora do escrevedor. Questionam-se conceitos como os de inspiração e talento e traz-se à tona a ideia de um disparador criativo, de um levantamento de materiais a serem conjugados a fim de se chegar a uma composição escrita.



Momento de escrita do texto
(Foto: Vicente Concilio)

A título de exemplo, um dos autorretratos nascidos no encontro, de autoria de Felipe Schaitel:


Schaitel e seu Duplo

Não gosto de cães. Dizem que sou frio por isso, mas não me importo. Dizem que o cão é o melhor amigo do homem, mas gatos não atacam quando veem alguém caminhando na rua. É por isso que gosto de gatos. Sou leonino e arrogante pra quem não conhece, mas de palavra. Sei honrar um acordo. Honrar o valor do tempo, da família e dos outros. Funcionam como terças e quintas na formação de um acorde, de um acordo. Sou um músico metido que carrega uma bússola no braço, para os outros.


A sexta-feira foi concluída com a leitura de todas as composições e a perspectiva de, na manhã seguinte, levá-las à cena.

Se os autorretratos basearam-se, em linhas gerais, na composição referente ao “eu” de cada escrevedor, a formação de duplas com vistas à cena teve como estímulo a elaboração do retrato de “nós”, a partir dos dois textos e de outros materiais eventualmente trazidos pelos participantes: poemas, canções e trechos literários que lhes fossem significativos.


Cena de Aline e Vicente


Cena de Marcos e Luan
(Foto: Vicente Concilio)


Cada equipe escolheu um espaço cênico que dialogasse com a proposta e, com isso, fornecesse mais um fio à dramaturgia. Um fio a tramar com o material textual escrito por eles, as citações, o corpo, a voz, as silhuetas, os verbos e substantivos, a relação com o público e tudo o mais que pudesse configurar a experiência dramatúrgica como uma tessitura de ações que não só o texto enunciado. (3)


Cena de Lara e Mônica
(Foto: Vicente Concilio)

















Cena de Camila e Stephan
(Foto: Vicente Concilio)

Cena de Gisele e Fernanda
(Foto: Vicente Concilio)


















De modo semelhante ao da criação pictórica e escrita individual, para o processo criativo da cena os participantes lançaram mão de identificação e seleção, recorte e colagem, organização, justaposição, descarte, decomposição e recomposição, edição, etc. Em outras palavras, cada dupla tratou de compor a cena com os mesmos pressupostos das criações anteriores. (4)


Cena de Mariana (foto) e Beatriz
(Foto: Vicente Concilio)


















Cena de Mariana e Beatriz (foto)
(Foto: Vicente Concilio)


















As duplas tiveram 90 minutos para conhecer o material, identificar ou arranjar 
um espaço cênico sugestivo, elaborar o trabalho, ensaiar e apresentar o trabalho ao público constituído pelos colegas de Ateliê.

Cena de Marco e Inês
(Foto: Vicente Concilio)

Cena de Erik e Ohanna
(Foto: Vicente Concilio)


Cena de Renata e Schaitel
(Foto: Vicente Concilio)



















Gostaria de agradecer ao professor Stephan pelo convite e pela interlocução, ao professor Vicente Concilio pela recepção, pela intermediação e pelos registros, e também aos corajosos participantes dessa viagem aparentemente sem rumo que é a prática de um Ateliê. Foram apresentados textos de ótima qualidade já no primeiro encontro, escritos em 20 minutos. As cenas também, sem exceção, já mostraram se não uma configuração pronta – o que seria de se espantar em tão curto prazo de realização – promessas de belos trabalhos a serem desenvolvidos.

Trata-se de uma dinâmica perfeitamente aplicável em sala de aula, tanto que alguns bolsistas apropriaram-se de procedimentos e adaptaram-nos em seu estágio com boas resultantes.

Os muitos méritos, que sejam reputados aos bravos maratonistas. As falhas, que certamente ocorreram, foram minhas e que eu possa desenvolver ainda mais os Ateliês de Dramaturgia tomando-as como baliza.


Adélia Nicolete


(1) Sobre o assunto consultar:
RYNGAERT, Jean-Pierre.  Ler o teatro contemporâneo. Trad. de Andréa S. M. da Silva.  São Paulo: Martins Fontes, 1998.
______, SERMON, Julie.  Le personnage théâtral contemporain: décomposition, recomposicion.  Montreuil-sous-Bois: Éditions Théâtrales, 2006.

(2) Dois exemplos de autorretratos exibidos na ocasião foram dos artistas 
Jean-Michel Basquiat e Leonilson.

(3) Sobre o tema consultar:
BARBA, Eugenio. Dramaturgia. In: BARBA, Eugenio, SAVARESE, Nicola.  A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. Tradução de L. O. Burnier et al.  São Paulo-Campinas: Hucitec – Unicamp, 1995

(4)Sobre esse tema consultar:
SARRAZAC, Jean-Pierre. (Org.) Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. de André Telles.  São Paulo : Cosac e Naify, 2012.