Cenário do espetáculo "Rinocerantas" criadora: Denise Guilherme |
A
postagem a seguir é uma apreciação crítica do espetáculo Rinocerantas, da Cia Lona de Retalhos, escrita a convite da
organização do projeto “Teatro político no ABC: identidade e resistência”, promovido
pelo SESC Santo André de 14 de março a 15 de abril de 2018.
A
mais recente edição do Festival de Teatro de Curitiba registrou um episódio emblemático
do momento em que vivemos nesse país. Logo no início de um dos espetáculos da
mostra oficial, uma espectadora levantou-se e, indignada, vociferou “paguei
ingresso para ver teatro e não ouvir sobre política”. Sua voz é representativa de um grande número
de cidadãos que sofreu algumas das consequências mais nefastas do golpe
civil-militar de 1964, reforçadas pelo golpe televisionado de 2016: a
obsolescência programada da educação (lembremo-nos de Darcy Ribeiro ao
denunciar que a crise da educação no Brasil era um projeto), o desábito
paulatino do livre pensar e a despolitização generalizada, ainda que sob o
disfarce de grandes movimentos sociais, manipulados em sua maioria.
Para
ela e para tantos outros “cidadãos de bem”, teatro é lugar de entretenimento,
de preferência inócuo, uma extensão de certos conteúdos televisivos. A
convivialidade teatral – pressuposto de uma assembleia reunida em torno de um
debate comum a todos – passa-lhes despercebida. Em sua opinião, o que une os
espectadores e lhes dá a totalidade de um público, é o riso ou o choro atávicos,
desprovidos de maiores reflexões. Ao final do espetáculo, retorna cada um à sua
mônada e segue-se vivendo, à espera de novos surtos coletivos. Uma plateia de
rinocerontes a considerar os artistas meros bobos da corte, sem qualquer
“utilidade” ou função que não a de entreter a quem “pagou ingresso” para “se
divertir e se emocionar”.
A
eficiente metáfora animal quem sugere é o dramaturgo romeno Eugéne Ionesco
(1909-1994), consagrado autor de uma linhagem de textos enfeixados na estética
do Absurdo. Sua peça “O rinoceronte”, publicada em 1959, ganhou mundo e a ela
se recorre sempre que se quer falar do totalitarismo, da intolerância, do
desrespeito às diferenças. Nela, “Cidadãos de bem” de uma cidadezinha pacata
transformam-se pouco a pouco em feras capazes de grandes destruições. Ao final,
resta apenas Bérenger, triste por haver perdido seu amigo Jean, sua amada
Dayse, seus colegas de escritório, todos metamorfoseados. Bérenger, uma espécie
de Pierrô – melancólico, romântico, sensível, ponderado – estranho às normas
férreas, criticado justamente por não se enquadrar, é o único ser humano que
sobrevive, não sem antes se questionar sobre as vantagens que teria em ser como
todos os demais. Ainda que sozinho, não se renderá.
*
Dado
o nosso contexto, a Cia Lona de Retalhos foi buscar, sabiamente, na obra de
Ionesco, o material para seu espetáculo "Rinocerantas". Haveria de ser uma releitura
contemporânea suficientemente oportuna, não fosse sua adaptação dirigida ao
público infantil. A decisão por retomar “O rinoceronte” pela estética clownesca
radicalizou a metáfora, aprofundando-a, tornando-a ainda mais potente e
alcançando os pequenos na esperança de uma pedagogia da alteridade.
Em
sua busca pelo essencial, o grupo reduziu a trama à convivência, ora harmoniosa
ora não, de duas figuras que vivem sob o mesmo teto: Berinjela e Joanete. O
próprio espaço trata de caracterizá-los: uma casa estilizada, dividida em dois
ambientes contrastantes. O da esquerda é organizado, minimalista e quase
monocromático, o da direita revela uma certa desordem, a presença de cores e
paredes desenhadas. Um armário, um rádio e um cronograma de atividades decoram
o primeiro, o segundo é despojado. O comportamento dos personagens desdobra-se
na relação com o espaço: hábitos rígidos ou flexíveis; trajetos e trejeitos
retilíneos ou desformes; obediência ou descaso para com as regras; sisudez ou
airosidade; destreza ou inabilidade e assim por diante. Joanete, como aquela
protuberância dolorosa no pé, é sistemática, incomoda-se com os desvios de
Berinjela que, como o fruto sugere, é “macia”, curvilínea e presta-se a
múltiplas finalidades.
A
estética do cartoon é boa aliada na
medida em que acentua o tom crítico da abordagem, de modo que a fábula consegue
a empatia do público não só com relação ao discurso verbal. Para isso
contribuem também o figurino, o teatro de objetos e a trilha sonora, permeada
de música erudita, a tecerem uma camada delicada em que situações por vezes
conflituosas se desenrolam. É delicioso presenciar a reação das crianças a
determinadas cenas e perceber o quanto é possível comunicar de forma lúdica
conteúdo tão marcadamente político.
Apresentadas
as personagens e as diferenças entre elas, fica-se sabendo da presença dos
rinocerontes alhures. Em pouco tempo, acompanhamos a transformação de Joanete e
vemos sua intolerância exacerbada. Em suas falas, o grupo evoca muito do que se
diz nas ruas e nas redes sociais – o preconceito, o moralismo, o modismo, a
segregação, a violência e tudo mais. A figura do animal cinza, gigantesco, com
seu chifre e sua rígida carapaça é perfeita para simbolizar certos grupos e seu
comportamento. Joanete chega até a se comover com o balé sugerido pela amiga,
mas a recordação não é suficientemente forte para retirá-la do transe e ela
retoma o peso e a gravidade da fera.
Assim,
em pouco tempo, “a peste” cerca Berinjela e transforma o médico, o locutor de
futebol e até a dupla sertaneja (aquela que recentemente não se comoveu com o
assassinato de uma vereadora carioca) em bestas. Parece restar apenas um
espécime ainda original, que se debate em vão na tentativa de se igualar aos
demais: Berinjela, que tenta ainda repetir palavras de ordem, mas conclui que
não precisa seguir a manada. Ao contrário, pode ser rinoceronte, gato,
cachorro, galinha, gente e o que mais quiser. Pode se vestir como quiser, viver
como quiser, enfim.
Em
menos de 60 minutos, Carina Prestupa e Thaís Póvoa revisitam o clássico de
Ionesco, conjugam-no a dois contos infantis e promovem um diálogo muito próximo
com o momento presente. O distanciamento e a leveza propostos pela metáfora
sugerem reflexões pra lá de políticas, maiores até que muitos espetáculos ditos
engajados.
Nesse
sentido, a Cia Lona de Retalhos assume o fazer teatral como espaço de
entretenimento sem abrir mão de seu propósito de reunir pessoas em torno de uma
ideia, sem abrir mão de seu potencial transformador para todos os envolvidos.
*
No
mesmo Festival de Curitiba, quatro artistas vilipendiados em 2017 uniram-se para um espetáculo que trata justamente do julgamento público a seus trabalhos
e/ou à sua atitude: dois performers, uma atriz e a mãe de uma criança que
interagiu em uma performance. Plateia lotada, o público acompanhou os
depoimentos e solidarizou-se aos artistas. Nenhum rinoceronte se manifestou,
sinal de que ainda há um grande espaço para a discussão coletiva de temas
urgentes, em sua maioria políticos.
Daí
a importância de projetos como esse “Teatro político no ABC: identidade e
resistência”, ora levado pela equipe do SESC Santo André. Catorze espetáculos
nas mais diversas abordagens temáticas e estéticas, não por acaso a retomar a
vocação teatral do ABC nos anos 1970. Que esta tenha sido apenas a primeira
edição e que possamos, juntos, interromper a proliferação de bestas-fera.
Espetáculo
assistido em 8 de abril de 2018.
Adélia Nicolete