sábado, 29 de agosto de 2015

Raimundo Borges Falcão


Raimundo Borges Falcão com a fantasia "Tubarão Azul" - 2000
(Foto: Dimitri Ganzelevitch)


Na sequência de nossas ponderações acerca do descarte nas artes visuais e na dramaturgia, apresentamos hoje o baiano Raimundo Borges Falcão, com nascimento provável no final dos anos 1940 e praticamente desconhecido entre nós.

Analfabeto, até onde se sabe, Raimundo morava sozinho em um barraco de madeira sem janelas, na periferia de Salvador. As sucatas por ele coletadas lotavam sua moradia do chão ao teto e eram utilizadas com uma única finalidade: a confecção de fantasias para o carnaval. Apenas uma vez por ano, aquele homem aparentemente banal destacava-se por força de sua arte. Atravessava o centro histórico da cidade em seus patins artesanais, exibindo orgulhosamente uma fantasia em que, por exemplo,

 “bonecas de plástico tornam-se sereias brilhantes em um exótico chapéu: esculturas de peixes envolvidos em papel alumínio dividem espaço com um cavalo marinho dourado e um polvo cintilante; caranguejos cravejados de lantejoulas estendem suas garras; capa, saia rodada e pulseiras que se parecem com algo pego na rede de pesca de um mágico; e os cetros que lembram os de Orixás, cujas representações em vestes brilhantes seguram bastões e espelhos que simbolizam seus poderes.” *

Raimundo Borges Falcão - Sem título - 1999
Adereço de cabeça de uma fantasia composta de onze partes

À parte dos cordões, blocos e trios elétricos que invadem a cidade durante os festejos, Raimundo preferia realizar uma performance solo, movendo-se em um ritmo particular. Por um lado, a multidão. Por outro, o homem único – um excêntrico em descompasso com a maioria.


Embora suas fantasias tivessem um significado claro apenas para ele, ainda assim podia-se identificar nelas profundas raízes na cultura afro-brasileira. Para Beate Echols, colecionadora de sua obra e estudiosa de seus trabalhos, as criações de Raimundo Borges Falcão parecem um altar a Yemanjá, a “mãe das águas”, venerada no Brasil. São verdadeiras esculturas, onde os objetos de descarte são como oferendas: “seus trabalhos, como de outros tantos criadores da diáspora afro-atlântica, sugerem uma memória coletiva em montes de sucata, que em grande parte da África está nos túmulos ou portais para o reino dos antepassados.” *

Nunca tinha ouvido falar desse artista até uma visita à exposição When the curtain nevers comes down: performance art and the alter ego (Quando as cortinas nunca baixam: a arte da performance e o alter ego, no American Folk Art Museum, de Nova York. A referência brasileira de trabalho com descartes era Arthur Bispo do Rosário – também presente na mostra. Ali pude encontrar não só os dois compatriotas, como diversos outros criadores do mundo todo, que, desde o século 19, dedicaram-se ao reaproveitamento de resíduos em seu trabalho artístico e de reordenação do mundo.

Foram homens e mulheres diagnosticados com algum tipo de distúrbio psicológico, internos em manicômios ou simplesmente vivendo à margem, como foi o caso de Rock N Roll, citado na postagem anterior, ou o de Raimundo Borges Falcão, entre outros. O fato é que todos produziram obras de inegável valor estético e, se não bastasse, exibiam-nas em performances particulares ou públicas.


Raimundo Borges Falcão - Sem título - 1999
Colar de uma fantasia composta de onze partes


Há quem defina esse tipo de trabalho como uma tentativa de organização das próprias estruturas internas que, de outra forma, entrariam em colapso e impediriam a sobrevivência dessas criaturas. Em todo caso, vale indagar se o processo de criação de pessoas tidas como “normais” também não passaria por essa mesma tentativa.

Numa sociedade como a nossa, que prima pelo desejo/consumo em todos os seus níveis, o volume de descarte físico e simbólico é incomensurável. São poucos os que conseguem sair incólumes do bombardeio diário de estímulos, cobranças, pressões externos e internos de que somos alvo. A criação e a fruição artísticas, a meu ver, apresentam-se como uma espécie de bunker, um abrigo para que se mantenha a sanidade mínima em tempos de guerra como os nossos.

Nesse sentido, o trabalho com o lixo contemporâneo é não só uma questão de criação estética, mas de sobrevivência pessoal e social, pois passa pela sua identificação, compreensão, articulação e “devolução” à sociedade como uma espécie de aviso ou de tradução (ainda que, por vezes, enigmática), como uma saída, ou como uma placa a indicar a direção do bunker mais próximo.

Adélia Nicolete


* ECHOLS, Beate. Raimundo Borges Falcão. In: AMERICAN FOLK ART MUSEUM. When the curtain never comes down : performance art and the alter ego.  New York: American Folk Art Museum, 2015.  p. 43 (Tradução de Bernardo Abreu)




domingo, 16 de agosto de 2015

Rock N Roll - um performer do descarte



                                       À turma do Ateliê de Dramaturgia da UDESC,
com quem primeiro dividi Rock N Roll



Dele não sabemos a identidade oficial, apenas que se autodenomina Rock N Roll e que nasceu nos Estados Unidos em 1942.

Assim como o renomado escultor John Chamberlain, de quem falamos nas postagens anteriores, Rock N Roll fez da cidade de Detroit sua morada desde, no mínimo, os anos 1960. É lá que apresenta performances em shows ao ar livre ou em eventos esportivos, com o figurino por ele mesmo confeccionado. Também como Chamberlain, faz da sucata matéria-prima para sua arte.


Rock N Roll - Calças - meados dos anos 1990 - técnica mista
(Coleção Lisa Spindler) 



Artista de rua, totalmente fora do circuito, tornou-se relativamente conhecido após ter sido “descoberto” pela fotógrafa Lisa Spindler: “Conheci Rock N Roll em uma esquina em Detroit em meados dos anos 1990. Ele estava parado, sozinho, reluzindo da cabeça aos pés com as colagens de objetos coloridos, que havia costurado em suas roupas imitando joias. Esse foi o começo de nossa amizade e da minha coleta de seu trabalho.” *


Rock N Roll desenvolveu uma rotina diária de criação no minúsculo apartamento em que mora. O material que recolhe – sucata, doações, descartes – sempre de pequenas dimensões, é cuidadosamente separado e guardado em sacos de papel, eles também de segunda mão. Cada objeto terá um destino específico e poderá ficar por longo tempo à espera, até que o artista encontre uma roupa adequada para recebê-lo. Essa adequação dependerá do show e de sua importância, por exemplo, mas também do tipo de efeito que se queira causar ou do que se desejará dizer com o figurino:

“Olhando suas obras, pode-se facilmente detectar referências a eventos passados e presentes, política, música, cultura pop, fatos memoráveis e históricos. Suas roupas se tornam uma colorida tapeçaria de mensagens em tecido, memórias e histórias – tudo cuidadosamente pensado e costurado com uma intenção.” *


Rock N Roll - Camisa (frente) - início anos 2000 - técnica mista
(Coleção Lisa Spindler) 

As performances de Rock N Roll provocam estímulos sensoriais: música no alto-falante, dança; cores, brilhos e ruídos do figurino. Há interação permanente com o público, à vontade para se aproximar e ver de perto seus trajes, o que estimula conversas sobre memória, música e arte com espectadores de todas as idades. 

À primeira vista, parece que suas composições atraem pelo excesso. De perto, no entanto, elas têm a capacidade de sugar o espectador para outra dimensão – aquela do artesanato, da seleção e da organização meticulosa dos materiais,  da composição quase ritualística não apenas de uma peça, mas de um sistema, com suas regras e seus códigos, e com finalidades determinadas, entre elas, a de provocar encantamento. Faz-me lembrar a relação que Walter Benjamin estabeleceu entre o narrador e o catador de lixo ou sucata, figura miserável que coleta os restos urbanos como forma de sobrevivência, mas também para não deixar que as coisas se percam, que deixem de cumprir o seu destino, reintegradas ao mundo.

Ao contrário de John Chamberlain, que trabalha com sucatas de grandes peso e dimensões, Rock N Roll é o catador de bugigangas, as que pode armazenar em seu quarto/ateliê de subúrbio. Ambos compõem narrativas de grande poder comunicativo,  mas um deles veste suas criações e com o corpo e a voz oferece ainda mais textos à leitura do público.


Rock N Roll - Camisa (frente) - início anos 2000 - técnica mista
(Coleção Lisa Spindler)

Cada uma das peças de Rock N Roll é capaz de me fazer pensar sobre a dramaturgia, sobre o verdadeiro trabalho artesanal que é compor a partir de materiais previamente pesquisados, coletados, selecionados e organizados criteriosamente. O dramaturgo, assim como o artista plástico, opera com materialidades - imagens, dimensões, espacialidade, perspectiva, profundidade. Opera com simetria e assimetria, equilíbrio ou desequilíbrio, luz e sombra, claro ou escuro. Utiliza recorte e colagem, justaposição, sobreposição, repetição; alinhava, enreda, costura, borda, aplica, arremata. Considera tempo e espaço, duração, ritmo, pausas, intensidades, e assim por diante.

Heiner Müller, em "Descrição de imagem", por exemplo, compõe um bloco de escrita - um único parágrafo de seis páginas, verdadeiro suporte em que agrega elementos/imagens os mais diversos. O todo nos causa uma impressão caótica, excessiva. É na aproximação que somos capazes de reconhecer o trabalho meticuloso do dramaturgo, de identificar (ou pelo menos supor) as referências, as simbologias presentes no caudal de palavras/imagens. O trecho inicial dá-nos uma pequena amostra da composição, desafiadora de uma transposição para a cena:

"Uma paisagem entre estepe a savana, o céu de um azul prussiano, duas nuvens imensas flutuando lá dentro, como que unidas por esqueletos de arame, em todo caso de estrutura desconhecida, a maior, da esquerda, poderia ser um animal de borracha de um parque de diversões que se desgarrou de seu guia, ou um pedaço da Antártida em seu voo de regresso, no horizonte uma serra plana, à direita na paisagem uma árvore, num olhar mais preciso são três árvores altas distintas em forma de cogumelo, tronco com tronco, talvez de uma raiz, a casa no primeiro plano mais produto industrial que manual, provavelmente concreto (...)" **


Como bom "dramaturgo", Rock N Roll também escolhe cada elemento em função de seu objetivo, há intencionalidade em suas decisões. O bordado e a costura de cada objeto compõem não só um figurino rapsódico, mas uma narrativa igualmente fragmentada e determinada por texturas, materiais, tamanhos, origens, localização e efeitos diferentes.


Para além dessas reflexões formais, vale abrir um outro campo, a ser explorado oportunamente: quantos e quais têm sido os descartes à disposição do dramaturgo nos dias de hoje, como eles podem ser articulados e com vistas a quais objetivos? Creio que valha a pena uma investigação melhor direcionada a esse tema que, valendo-se de estratégias de composição ligadas a outras linguagens, precipite-se em formas além do drama e nos leve a narrativas reintegradoras.

Adélia Nicolete



*  SPINDLER, Lisa. Rock’n’Roll. In: AMERICAN FOLK ART MUSEUM. When the curtain never comes down : performance art and the alter ego.  New York: American Folk Art Museum, 2015.  p. 104 (Tradução de Bernardo Abreu)

** MÜLLER, Heiner. Descrição de imagem. In: MÜLLER, Heiner.  Medeamaterial e outros textos. Trad. de C. Roehrig e M. Renaux.  São Paulo: Paz e Terra, 1993. p. 153-159

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A dramaturgia do descarte - Dia: Beacon - John Chamberlain - II




John Chamberlain - "Pigmeat's E   Bluesong" - 1981
(Foto: Adélia Nicolete)


Para Assis Benevenuto,
pelas discussões afins


Em um de seus poemas, Manoel de Barros constata: “O que é bom para o lixo é bom  para poesia”. Quando tomamos contato ao vivo com as esculturas de John Chamberlain expostas no museu Dia: Beacon, percebemos os olhos, o espírito e as mãos de poeta que moldaram cada uma delas a partir da sucata. Olhos capazes de identificar em um desmanche de carros ou em um depósito de ferro velho peças com potencial estético; espírito capaz de imaginar tanto uma composição desses materiais em bruto, quanto de vislumbrar alterações ou intervenções, e mãos, dele ou de seus auxiliares, sensíveis o bastante para concretizar as ideias. 

Diante disso, é praticamente impossível não pensar em dramaturgia.


John Chamberlain - Flufft - 1977
(Foto: Adélia Nicolete)


Para o observador incauto, cada trabalho de Chamberlain resume-se a um amontoado de peças de origens diversas. Pode sentir-se atraído pelas cores, pela identificação de uma marca ou modelo de carro aqui e ali, mas é só isso. Na maioria das vezes não passa de um olhar superficial, como aquele que pousamos sobre quase tudo em nosso dia-a-dia graças à necessidade de cumprir, de “ticar” automaticamente a superoferta de imagens e textos a que estamos submetidos.



John Chamberlain - "Two dark ladies" - 1977
(Foto: Adélia Nicolete)



John Chamberlain - "Two dark ladies" (outro ângulo) - 1977
(Foto: Adélia Nicolete)

John Chamberlain - "Swift Wi T" - 1979
(Foto: Adélia Nicolete)

No entanto, um visitante que estiver disposto a demorar-se um pouco mais no entorno da peça, disposto a moldar seu corpo para observá-la melhor e descobrir-lhe os segredos, a esse será servido um poema.



John Chamberlain - "Royal Vector" - 1967
(Foto: Adélia Nicolete)


John Chamberlain - "Royal Vector" (outro ângulo)  - 1967
(Foto: Adélia Nicolete)

As esculturas-poema de John Chamberlain expõem a produção e o consumo excessivos e a permanência incômoda do resto – mesmo que disfarçado de arte. Falam da monumentalidade efêmera, da delicadeza do aço e de sua vontade de transcender em renda, filigrana, ave. Como em um Franskenstein, força-se a dureza do material até que adquira bons modos, movimentos arredondados, até que alcance o sublime e ganhe, assim, a nossa aceitação. 

A maioria dos trabalhos expostos despertou-me a compaixão – pelo material em si e seu esforço de aceitação; sua entrega, ainda que resistente, ao fogo, à prensa, à lâmina. Compaixão pelo artista, por uma carreira dedicada a dar sentido ao desprezível, a compensar perante a natureza o monturo de toda uma civilização.




John Chamberlain - "Coup d'soup" - 1980
(Foto: Adélia Nicolete)



Quantos descartes temos disponíveis para o ofício da dramaturgia? Os da ética e da filosofia. Os da História e da humanidade. Quantos e quais são os resíduos de uma sociedade da pressa, do hedonismo, da competição e da individualidade? Os descartes do texto verbal, o vazio e o provisório das trocas dialógicas contemporâneas. A descartabilidade da linguagem – o que é durável em uma arte que prima pelo momento presente do espetáculo? O que perdura no corpo/memória do espectador? O que ele pode compor com outras materialidades ou imaterialidades a fim de realizar a si próprio como obra, mesmo que provisória?

O quanto há de escultórico no trabalho do dramaturgo? Com que elementos opera? Permanecemos presos a estruturas já fixadas, que capturam de imediato a cumplicidade habitual do público ou arriscamo-nos a explorar os desmanches e depósitos de ferro-velho à cata de materiais à espera de transcendência poética, como conclama Manoel de Barros?

“As coisas que os líquenes comem
- sapatos, adjetivos -
tem muita importância para os pulmões 

da poesia

“Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia

(...)

“As coisas jogadas fora
têm grande importância 
- como um homem jogado fora"


Esse assunto não é novidade, mas por aqui é. O descarte e a tridimensionalidade da dramaturgia têm me (i)mobilizado, agora não só como pesquisadora/teórica. Ânsia por transcender.


(Mais obras de Chamberlain e maiores informações sobre o museu Dia: Beacon, consultar as duas postagens anteriores.)


Adélia Nicolete