quarta-feira, 18 de outubro de 2017

“A moratória” e “Caranguejo overdrive” – dramaturgia e memória social



Para Pedro Kosovski, 
pelo diálogo

“As regras para viver são outras. Regras que não compreendemos nem aceitamos. O mundo, as pessoas, tudo tudo agora é diferente, tudo mudou. Só nós é que não. Estamos apenas morrendo lentamente.” 
(Marcelo, em “A moratória”)

“Me desovaram no Rio de Janeiro, mas a cidade em que nasci era outra, resolvi ir atrás do mangue e dos caranguejos, mas a cidade nova (como chamavam agora) era um corpo doente, um formigueiro de operários zanzando de um lado ao outro, tudo disperso pelos ares como fumaça.” 
(Cosme, em “Caranguejo overdrive”)


Parte da turma do Ateliê - Segunda fase
(Foto: Adélia Nicolete)



Entre agosto de setembro desse ano, conduzi em duas fases um Ateliê de Dramaturgia e Memória no Sesc Santa Rita, em Recife. A fundamentação pedagógica deu-se a partir do eixo conhecer, fruir e criar e um dos principais recursos para estudo e fruição foi o estabelecimento de um dossiê de peças teatrais, todas relacionadas ao tema da memória. 

Tais obras foram utilizadas como exemplo durante os encontros da primeira etapa, mas não foram analisadas em profundidade, dado que não era esse o objetivo da proposta. Na segunda fase, porém, foram escolhidos dois textos para análise – “A moratória”, de Jorge Andrade e “Caranguejo overdrive”, de Pedro Kosovski – com a finalidade de estabelecer um paralelo entre eles que conduzisse à criação de um projeto coletivo de dramaturgia, cujo tema central conjugasse a memória e a disputa simbólica. 

Parte dessa análise poderá ser lida a seguir.


Procedimentos criativos

Para alguns pesquisadores, A moratória, primeiro texto profissional de Jorge Andrade, marca o início do moderno teatro brasileiro. Sua principal motivação foi a memória pessoal do autor – descendente de fazendeiros no interior paulista –, ampliada de modo a abarcar a memória social e dando início ao conjunto de dez textos a que Andrade chamou de Ciclo e que denominou Marta, a árvore e o relógio.

A moratória, encenada em 1955, contempla basicamente duas fases da família do patriarca Joaquim, divididas espacialmente de acordo com indicações do autor: à esquerda, uma ambientação de casa espaçosa de fazenda em 1929, período da crise da bolsa de Nova York e da queda vertiginosa do preço do café, que deixou endividados muitos fazendeiros no Brasil. À direita, três anos depois, a mesma família se encontra em uma casa modesta na cidade. Sabemos que a fazenda foi entregue a estranhos e vemos dissolver-se a esperança de uma moratória – o perdão das dívidas por parte do governo.

As personagens transitam entre um tempo-espaço e outro, levados pela memória ou por referências tais como práticas cotidianas que se mantêm quase inalteradas, por exemplo. É o leitor/espectador quem elabora a composição total do quadro, com base nas ações e nas informações que se dão a ler de modo intercalado e não cronológico.

Cenário criado por Gianni Ratto para
a primeira encenação de A moratória (1955)

Caranguejo overdrive, por sua vez, é dramaturgia criada em processo colaborativo e assinada por Pedro Kosovski em 2015. Faz parte, também ela, de um conjunto de três peças que têm a cidade do Rio de Janeiro e sua História como matéria de reflexão: Cara de cavalo, é a primeira delas, de 2012, e Guanabara canibal, a mais recente, de 2017.

O disparador criativo de Caranguejo overdrive, bem como parte de sua fundamentação, podem ser identificados na rubrica inicial da peça:

“Escrito nos 450 anos do Rio de Janeiro, em meio a disputa de territórios da cidade para realização das olimpíadas de 2016. Nessa peça, o território em disputa é o mangue, cuja extensão vai do Mangal de São Diogo (Rio de Janeiro, Cidade Nova, primeira metade do século 19) ao geógrafo Josué de Castro e o Manguebeat (Recife, décadas de 1960 e 1990).”


A resultante verbal e cênica de tais referências é marcada pela forte presença da polifonia e da polissemia. Cada figura em cena é portadora de um discurso que remonta a épocas, lugares e condições diversos. Se elas dividem o mesmo espaço-tempo cênico isso não significa que haja uma verdadeira interação. Antes, pode-se identificar uma simultaneidade de ações e o espectador (mais que o leitor, nesse caso) escolhe para onde dirigir sua atenção e formar,  não um todo coeso e comum a todos, mas uma composição particular, a depender de sua localização na plateia e mutável a cada vez que participar da experiência.


De modo semelhante, a variedade de linguagens utilizadas possibilita o estabelecimento de um complexo campo de sentidos. Nele estão presentes a música, a performance, a iluminação e seus efeitos, o texto enunciado e escrito, a voz amplificada, a improvisação. Em muitos casos, a proximidade com o público, a penumbra e a execução musical ao vivo criam um ambiente de “promiscuidade” e de “ebulição” típicas do mangue, constituindo, assim, uma outra via de sentido que passa pelo corpo do espectador e não só por sua capacidade de observação olho-cena.


Imagem que mostra o paralelismo de ações presente
no espetáculo Caranguejo overdrive



As duas peças, portanto, contemplam diferentes tempos e espaços e, para isso, valem-se de recursos épicos. Os sessenta anos que distanciam uma obra da outra cuidaram de tornar tais recursos mais complexos, bem como de marcar uma alteração significativa nos modos de fruição de grande parte do público de teatro. 


Características formais

Em A moratória, Jorge Andrade opera os recursos épicos predominantemente de duas maneiras: na manipulação não-cronológica da narrativa que leva, por consequência, à alternância espacial. 

A troca dialógica entre os personagens permanece fiel aos preceitos dramáticos e “leva a ação para a frente” com intensidade e eficiência, ainda que vá e volte no tempo. É possível identificar, ao final, uma linha clara de ação, bem como compreender o contexto a partir da manifestação de personagens definidos em sua personalidade, seus objetivos e sua visão de mundo.

Pedro Kosovski, por sua vez, tenta registrar na dramaturgia verbal de Caranguejo overdrive a simultaneidade de ações (também presente em alguns momentos bastante poéticos de A moratória), mas existe algo que escapa ao registro impresso e que dificulta essa identificação, pois é da ordem da cena. Em outras palavras, a epicização presente na peça carioca não é mais fruto da chamada “carpintaria” do dramaturgo tão somente, mas da criação compartilhada e em processo. Não bastasse, a temática geradora aponta para muitas direções e o grupo decidiu explorar várias delas, o que impossibilita, por exemplo, o fechamento de uma ideia precisa.

Em Caranguejo overdrive o diálogo interpessoal como condutor da ação é substituído pelo jogo de perguntas e respostas entre dominador e dominado – um arremedo de troca dialógica em algumas cenas. Mais que personagens, os emissores representam categorias – o soldado, a prostituta, o cientista, o policia e até o caranguejo –, em narrativas isoladas, verbais ou não, que se alternam em busca de destinatários. Algumas dessas falas não recebem sequer identificação de emissor.

Tais características, somadas às anteriormente expostas, condicionam a leitura de A moratória como próxima a uma ideia de encenação. Jorge Andrade determina espaços, cenários, movimentação e intenções dos personagens detalhadamente, de modo que ouvimos e "vemos"conforme sua orquestração, o que já não ocorre em Caranguejo overdrive. Nesse caso, o texto impresso é tributário da cena, o que dificulta, se não impede, duas encenações semelhantes, tal é o peso performativo da proposta.



Três faixas de leitura - três discursos - nesse detalhe
de Caranguejo overdrive

Em ambas as peças, temos diante de nós as angústias decorrentes da disputa simbólica e o preço social e psicológico pago pelos envolvidos. Na primeira, “a dolorosa passagem do Brasil dos fazendeiros para o Brasil urbano”, como aponta Décio de Almeida Prado, que também assinala:

"A moratória evoca o fim, frequentemente melancólico, desse processo social: divisão e perda das fazendas, com a ascenção de novas classes, facilitada por dois violentos choques: a crise do café e a revolução de trinta (...). Não compreenderá nada do alcance da peça quem nao pressentir, por detrás dos indivíduos e dos episódios particulares que ela narra, a agonia de uma sociedade em vias de transição (...). *

A disputa simbólica em Caranguejo overdrive é predominantemente aquela da mentalidade moderna e "progressista", usada como justificativa para a especulação, para as transformações urbanas em detrimento de questões sociais e ecológicas. Desloca-se a população, aterra-se o mangue, seu sustento; mantém-se uma obra por décadas a fio, a drenar os cofres públicos. 

Por outro lado, uma disputa outra se trava: a do próprio mangue e dos seres que lhe constituem. Eles fervilham sob o concreto e o asfalto, brotam  em forma de música, avisam que quando menos se espera retomarão o lugar que lhes foi tomado.



***

Esses foram apenas alguns dos aspectos analisados na segunda fase do Ateliê de Dramaturgia e Memória. Tais apontamentos nortearam os exercícios criativos, cujo tema foi o Mercado de São José, território de disputa simbólica na cidade do Recife. A esse respeito falaremos na próxima postagem.


Adélia Nicolete


O texto de A moratória pode ser acessado nesse link.

Vídeo do espetáculo Caranguejo overdrive:




PRADO, Décio de Almeida. A moratória". In: ANDRADE, Jorge. Marta, a árvore, o relógio. São Paulo, Perspectiva, 1986.