quinta-feira, 21 de julho de 2016

O centésimo espetáculo ou O teatro contemporâneo à luz da ressonância mórfica


Cena do espetáculo "Das Guerras de um Velho Baixo Caos"
                  Episódio "Da cidade partida ao meio"
                             Trupé de Teatro - Sorocaba
(Foto: Adriano Sobral)


Para Débora Brenga,
que me fez voltar a Sorocaba


Fui convidada pela Trupé de Teatro, uma companhia sorocabana, a atuar como interlocutora junto a seu Núcleo de Dramaturgia, conduzido pela dramaturga Débora Brenga. Logo no bate-papo inicial improvisei uma fala que tem sido o norte de minha pesquisa e também de meu olhar sobre o teatro contemporâneo: é preciso fazer, com seriedade e profundidade, é preciso fazer. Deixar de lado a expectativa de sucesso e acreditar que o nosso papel em um teatro que está ainda em construção é apostar no risco. Admitir que em meio a tantas produções em cartaz, apenas algumas se destaquem como modelares. No entanto, para que isso aconteça, é necessária uma infinidade de encenações que se arriscaram, muitas delas praticamente no anonimato, para que fosse possível a renovação de fato.

Repeti o improviso no I Colóquio Trupé de Teatro e Pesquisa, de que participei em 24 de junho último – dessa vez com maior número de ouvintes e também com maior entusiasmo. Tanto que resolvi registrar a reflexão por aqui, a fim de que seja lida sempre que for preciso, sempre que a vontade de desistir ou voltar às velhas fórmulas se façam presentes.

I Colóquio Trupé de Teatro e Pesquisa - segunda noite
(Foto: Adriano Sobral)

O termo “centésimo espetáculo”, utilizado no título desse texto, e uma alusão ao “centésimo macaco”, conforme experiência realizada por cientistas. Fictícia ou não, a tal experiência presta-se muito bem a ilustrar a teoria dos campos mórficos proposta pelo biólogo inglês Rupert Sheldrake e, espero, também a minha teoria do teatro contemporâneo. É mais ou menos assim:


Enquanto pesquisavam uma população de macacos de determinadas ilhas, cientistas ofereciam batata-doce para atraí-los. Foram anos de acompanhamento até que um dos bichos resolveu lavar a batata no mar antes de comê-la. O resultado deve ter sido agradável, pois repetiu a experiência diversas vezes até que foi imitado por outro indivíduo de sua espécie. O número de macacos a comer batata-doce limpa e salgadinha aumentou progressivamente e, em pouco tempo, todos daquela ilha haviam adotado o novo hábito. Diz-se que quando o macaco de número 99 alterou o seu cardápio, um outro, da ilha vizinha e sem nenhum contato com os semelhantes, passou a lavar sua batata-doce antes de comê-la. Pela repetição, o comportamento havia se incorporado aos hábitos da própria espécie.

Carlos Doles, diretor e ator do espetáculo
(Foto: Aline Magalhães)

A teoria da ressonância ou dos campos mórficos não se presta tão somente aos animais. Cada sistema se constitui um campo mórfico específico: os cristais, por exemplo, os tecidos e órgãos, ou a própria sociedade. Segundo Sheldrake, existiria uma conexão intangível entre os sistemas individuais e é através dela que as informações seriam transmitidas, independente de tempo e espaço. O que determina a existência do “centésimo macaco” em cada um desses sistemas é a repetição, o fazer incansável, a persistência.

Esse indivíduo de número 100 é aquele espetáculo que marca a mudança de fase do teatro – “Vestido de noiva”, dirigido por Ziembinski -, ou aquele outro que se torna quase mítico – “O balcão”, dirigido por Vitor García. O número 100, muitas vezes é fruto do esforço quase insano de um Teatro da Vertigem, mas também de uma primeira aposta como “Por Elise”, do grupo espanca! - para ficarmos em apenas alguns exemplos dentre tantos possíveis. O centésimo é o que "vira", o que ganha destaque de público e de crítica por um sem número de fatores, ainda que ele não nos agrade, ainda que nele identifiquemos o nosso esforço não reconhecido até aquele momento!

Seja qual for o “centésimo espetáculo” ele não nasce do puro acaso. Sua ocorrência está ligada de modo incondicional a centenas de outras encenações que testaram os limites de cada um de seus componentes e do próprio teatro. Que pesquisaram novas formas de construção da cena, que buscaram dialogar com outras linguagens e criar novas formas de relação com o público. É preciso fazer teatro como quem faz a centésima encenação. Até porque, para quem a realiza, ela representa a "virada" de um estado a outro.

Cena do espetáculo "Das Guerras de um Velho Baixo Caos"
                             Trupé de Teatro - Sorocaba
(Foto: Adriano Sobral)


Ora, é isso que a Trupé de Teatro tem feito de modo sistemático na cidade de Sorocaba. Seu mais recente trabalho, “Das Guerras de Um Velho Baixo Caos”, é fruto de pesquisa da obra de Ítalo Calvino, bem como de investigação formal, espacial e procedimental. A própria realização de um Colóquio como forma de contrapartida reforça o papel do grupo na reflexão acerca do fazer teatral. Nesse sentido, sucesso ou fracasso são termos completamente insignificantes. 

A Trupé de Teatro, assim como inúmeros coletivos – e eu cito aqui o Grupo Teatral Pontos de Fiandeiras, de Santo André, outro exemplo fora do eixo das capitais – apostam no fazer com qualidade e clareza de propósitos. E é graças a eles que o teatro (contemporâneo) se faz.

Adélia Nicolete





sábado, 2 de julho de 2016

Ateliê de Memórias da Casa e do Feminino


Participantes em ação
(Foto: Adélia Nicolete)


Concluímos na última quinta-feira mais um Ateliê de Memórias, dessa vez dedicado à Casa e ao Feminino. Foram sete os encontros, cada um deles dedicado a um aspecto do tema, dentre a infinidade de abordagens possíveis. Em termos formais, nosso foco foi a estruturação.

Na primeira sessão refletimos sobre os opostos complementares, dentre eles, o masculino e o feminino, a casa e a rua. A árvore foi nossa imagem geradora e o desenho, a escrita inicial, pré-verbal. A partir daí, iniciamos nossos estudos sobre a estrutura do texto e as articulações entre passado, presente e futuro.

O segundo encontro foi dedicado às miudezas do trabalho feminino, bem como às conversas que embalam as manualidades – a roda de labor manual e relato oral. Como prática trabalhamos com linha e agulha na elaboração de fuxicos que nos levaram a outro tipo de estruturação escrita, "de fora para dentro" - tanto no sentido espacial quanto temporal.

(Foto: Elaine Bombicini)


Um percurso pela casa ancestral foi o desafio da terceira sessão, momento que tomamos pela mão o leitor e o guiamos pelas nossas lembranças. O autor/narrador definiria ou não seu possível interlocutor num estrutura que parte do presente e da rua a fim de embrenhar-se pela casa e suas memórias.

Na dinâmica dos Atelies de Escrita, em cada um dos encontros os textos são lidos e, na medida do tempo, analisados pelo grupo. Vez ou outra faz-se necessária uma parada especificamente dirigida às análises, o que ocorreu no quarto dia. Como os Ateliês seguem o princípio do “fazer para aprender”, são justamente os comentários sobre os exercícios – tanto do ponto de vista de quem escreveu quanto de quem ouviu – que suscitam as reflexões teóricas e sua explanação por parte do condutor ou de um colega: a desierarquização de funções é outra prerrogativa da proposta.

(Foto: Elaine Bombicini)


O quinto encontro foi dedicado às experiências estéticas femininas no lar, desde o exercício diário de estender a roupa de modo ordenado, passando pela composição de um prato e pela mesa bem posta para as refeições, por exemplo, até a criação de artesanias. Após o levantamento de testemunhos e exemplos, cada participante foi estimulado a expor algum tipo de peça artesanal de sua predileção e afeto. Na sequência, deveria escrever um texto que tramasse a obra à sua criadora e às experiências estéticas por ela efetivadas.

A fotógrafa norte-americana Vivian Maier foi a inspiradora de nosso sexto encontro. Após assistir ao filme “Procurando Vivian Maier” e observar algumas de suas produções, além de se debruçar sobre um texto histórico, o grupo discutiu sobre a relação da mulher com a rua. A ideia era falar sobre mulheres que transgrediram padrões e, a partir do levantamento de dados, estruturar um retrato.



Finalmente, a sexta pauta teve como motivação os depoimentos de Estamira, uma ex-catadora de lixo no Rio de Janeiro cuja “filosofia” em muitos aspectos se assemelha à de Riobaldo, personagem de “Grande serão: veredas”, de Guimarães Rosa, e à de tantos outros cuja sabedoria advém da experiência cotidiana. Assistimos ao documentário dedicado a ela, discutimos e, a seguir, refletimos todos sobre o que denominamos nossa “casa impalpável” porque construída de valores, hábitos, exemplos, máximas ouvidas em famílias de sangue ou de coração - a "filosofia" que construímos a partir de nossas relações mais próximas. O depoimento resultante deveria falar sobre isso.

Deu-nos suporte uma série de filmes, contos, poemas e textos teóricos, aos quais nos reportamos, utilizamos como farol ou aprofundamos nossa experiência literária. Assim, contamos com os estudos de Gaston Bachelard, José de Souza Martins, Maria Lúcia Mott e Roberto DaMatta e também com a fruição de Garcia Marquez, Julio Cortázar, Lygia Fagundes Telles, Dalila Teles Veras, Tarso de Melo, Sérgio Faraco, Adélia Prado, Ana Miranda e vários outros.

Cada uma das sessões foi, portanto, um Encontro com a própria escrita e com as escritas alheias, um Encontro com o Outro e também conosco mesmos, com a nossa história pessoal e coletiva. Momentos confessionais, por vezes emocionados, quase sempre engraçados e, sobretudo, de intensa cumplicidade.

(Foto: Marilei Barçalobre)

Agradeço à direção da FAINC (Santo André) por mais essa Extensão Universitária aberta aos Ateliês de Memórias. Agradeço a cada um/a do/as participantes pela confiança de embarcar nessa nau que viaja ao sabor do grupo e suas demandas. Espero nos encontrarmos em breve em outros e ainda melhores roteiros.



Adélia Nicolete