Cena do espetáculo "Das Guerras de um Velho Baixo Caos"
Episódio "Da cidade partida ao meio"
Trupé de Teatro - Sorocaba
(Foto: Adriano Sobral) |
Para Débora
Brenga,
que me fez
voltar a Sorocaba
Fui convidada pela Trupé de Teatro, uma companhia sorocabana, a atuar como interlocutora junto a seu Núcleo de Dramaturgia, conduzido pela dramaturga Débora Brenga. Logo no bate-papo inicial improvisei uma fala que tem sido o norte de minha pesquisa e também de meu olhar sobre o teatro contemporâneo: é preciso fazer, com seriedade e profundidade, é preciso fazer. Deixar de lado a expectativa de sucesso e acreditar que o nosso papel em um teatro que está ainda em construção é apostar no risco. Admitir que em meio a tantas produções em cartaz, apenas algumas se destaquem como modelares. No entanto, para que isso aconteça, é necessária uma infinidade de encenações que se arriscaram, muitas delas praticamente no anonimato, para que fosse possível a renovação de fato.
Repeti o improviso no I Colóquio Trupé de Teatro e Pesquisa,
de que participei em 24 de junho último – dessa vez com maior número de
ouvintes e também com maior entusiasmo. Tanto que resolvi registrar a reflexão por aqui, a fim de que seja lida sempre que for preciso,
sempre que a vontade de desistir ou voltar às velhas fórmulas se façam presentes.
I Colóquio Trupé de Teatro e Pesquisa - segunda noite (Foto: Adriano Sobral) |
O termo “centésimo espetáculo”, utilizado no título desse texto, e uma alusão ao “centésimo macaco”, conforme experiência realizada por cientistas.
Fictícia ou não, a tal experiência presta-se muito bem a ilustrar a teoria dos
campos mórficos proposta pelo biólogo inglês Rupert Sheldrake e, espero, também
a minha teoria do teatro contemporâneo. É mais ou menos assim:
Enquanto pesquisavam uma população de macacos de
determinadas ilhas, cientistas ofereciam batata-doce para atraí-los. Foram anos
de acompanhamento até que um dos bichos resolveu lavar a batata no mar antes de
comê-la. O resultado deve ter sido agradável, pois repetiu a experiência diversas
vezes até que foi imitado por outro indivíduo de sua espécie. O número de macacos
a comer batata-doce limpa e salgadinha aumentou progressivamente e, em pouco
tempo, todos daquela ilha haviam adotado o novo hábito. Diz-se que quando o macaco de número
99 alterou o seu cardápio, um outro, da ilha vizinha e sem nenhum contato com
os semelhantes, passou a lavar sua batata-doce antes de comê-la. Pela repetição, o comportamento havia se incorporado
aos hábitos da própria espécie.
Carlos Doles, diretor e ator do espetáculo (Foto: Aline Magalhães) |
A teoria da ressonância ou dos campos mórficos não se presta tão somente aos
animais. Cada sistema se constitui um campo mórfico específico: os cristais, por
exemplo, os tecidos e órgãos, ou a própria sociedade. Segundo Sheldrake,
existiria uma conexão intangível entre os sistemas individuais e é através dela
que as informações seriam transmitidas, independente de tempo e espaço. O que
determina a existência do “centésimo macaco” em cada um desses sistemas é a repetição,
o fazer incansável, a persistência.
Esse indivíduo de número 100 é aquele espetáculo que marca
a mudança de fase do teatro – “Vestido de noiva”, dirigido por Ziembinski -, ou aquele outro que se torna quase mítico – “O balcão”, dirigido por
Vitor García. O número 100, muitas vezes é fruto do esforço quase insano de um
Teatro da Vertigem, mas também de uma primeira aposta como “Por Elise”,
do grupo espanca! - para ficarmos em apenas alguns exemplos dentre tantos possíveis. O centésimo é o que "vira", o que ganha destaque de público e de crítica por um sem número de fatores, ainda que ele não nos agrade, ainda que nele identifiquemos o nosso esforço não reconhecido até aquele momento!
Seja qual for o “centésimo espetáculo” ele não nasce do puro
acaso. Sua ocorrência está ligada de modo incondicional a centenas de outras
encenações que testaram os limites de cada um de seus componentes e do próprio teatro.
Que pesquisaram novas formas de construção da cena, que buscaram dialogar com
outras linguagens e criar novas formas de relação com o público. É preciso fazer teatro como quem faz a centésima encenação. Até porque, para quem a realiza, ela representa a "virada" de um estado a outro.
Cena do espetáculo "Das Guerras de um Velho Baixo Caos"
Trupé de Teatro - Sorocaba
(Foto: Adriano Sobral) |
Ora, é isso que a Trupé de Teatro tem feito de
modo sistemático na cidade de Sorocaba. Seu mais recente trabalho, “Das Guerras
de Um Velho Baixo Caos”, é fruto de pesquisa da obra de Ítalo Calvino, bem como
de investigação formal, espacial e procedimental. A própria realização de um
Colóquio como forma de contrapartida reforça o papel do grupo na reflexão
acerca do fazer teatral. Nesse sentido, sucesso ou fracasso são termos
completamente insignificantes.
A Trupé de Teatro, assim como inúmeros coletivos – e eu cito aqui o Grupo Teatral Pontos de Fiandeiras, de Santo André, outro exemplo fora do eixo das capitais – apostam no fazer com qualidade e clareza de propósitos. E é graças a eles que
o teatro (contemporâneo) se faz.
Adélia Nicolete
Texto lindo Adélia, parabéns! Me deu uma vontade danada de ver o espetáculo! Um grande beijo!
ResponderExcluirObrigada pela sua visita, leitura e comentário, meu amigo. Quem sabe consigo levá-lo para assistir e, de quebra, conhecer o grupo? Vamos?
ExcluirA rede que é segura, e te segura, para o salto.
ResponderExcluirQue texto legal!
Obrigada, Adélia.
Agradeço pela visita e pela leitura, Vivi. Que bom que gostou do texto. É isso mesmo, a rede de tantos braços, de mangas arregaçadas como a de vocês do Pontos de Fiandeiras, incansáveis. Um beijo!
ExcluirAgradecida por rever você...nossos caminhos sempre se cruzam...pontos de um bordado...
ResponderExcluirAgradeço igualmente, Lisa. Dialogar com o Núcleo foi uma daquelas experiências intensas, completas. A viagem de retorno à cidade da minha adolescência; o trabalho com a Débora, a quem conheci no doutorado, a hospedagem afetuosa em sua casa; o contato com o trabalho tão elaborado de vocês! O coração fica mais forte, assim como a vontade de continuar nesse caminho, passo a passo, ponto a ponto, sim, como um bordado.
ExcluirAdorei te rever e ao Bid, foi bacana demais! rsrs
Adélia, querida... Você conseguiu, nesse texto, explicar todos os meus anseios, que agora posso nominar como o centésimo. E, isso me clareia as ideias e o coração. Sim, arriscar é a nossa sina... então, arrisquemos sempre. Obrigada.
ResponderExcluirDébora, sua dramaturgia para o Proac, por exemplo, foi para mim igualmente libertadora. Você e eu temos o privilégio de atuar junto a coletivos, de arriscar em solo fértil e em companhia de outrxs malucxs. Viva!
ExcluirQue delícia de texto Adélia! Amplia a experiência dos coletivos de teatro e suas práticas que envolvem tantos esforços e que muitas vezes não conseguimos ter dimensão do seu alcance, para além do trabalho, mas da rede que se forma e que constrói um certo sentido de pertença, de um coletivo ainda maior. Me senti conectada a trupe na vontade do encontro. Quando for com Toninho nos chame também ;) Evoé! Bóra fiar!
ResponderExcluirQuerida, obrigada pela leitura e pelo comentário generoso. Creio que nosso esforço em retomar o Fórum de Coletivos no ABC tem muito a ver com isso, não é? Os ensaios abertos compartilhados, as discussões, enfim, o sentido de que se faz "para além do próprio trabalho" como você bem disse.
ExcluirVamos tramar o contato ABC-Sorocaba!
Um beijo!
Adélia! como sempre as reflexões precisas e impertinentes (no sentido aqui de "cutucar" mesmo) corroboram a certeza de que boa parte do teatro atual vem caminhando por boas mãos. A teoria dos campos mórficos só reforça aquilo que nos idos anos 80, na constituição das nossas formações, era elegido como nossos verbos ativos: treinar, fazer, agir, atuar, refletir, repetir registrar, repetir... enfim, a ação precede e procede nas estruturas do caminhar e só caminhando o caminho se mostra para possíveis correções de rotas! Reli seus textos e mais que a visão de uma amiga dominando o processo do construir teatral é a percepção de uma profissional altamente conectada com o futuro pois atua no presente com a base do passado e usa todo conhecimento para um grande objetivo - no movimento, na pausa e no giro. A sua preocupação com o coletivo ultrapassa a preocupação apenas com o seu processo, a alteridade presente. Em minha visão o conceito de alteridade é a grande sacada ainda inconsciente da teoria da ressonância mórfica. Quando percebo a ação acima de cem espetáculos "tocados por ela" o mundo se transforma na melhoria do outro. Mas isso pode ser apenas uma grande viagem pessoal! Feliz pela conexão entre os temas!! beijares e abraçares, sucesso aos que estão ao redor, sempre!!
ResponderExcluirMinha leitura assídua e participante, obrigada! Imaginei que você também andasse às voltas com esses estudos. Estava ansiosa pela sua devolutiva e ela veio.
ExcluirPodemos conversar mais calmamente, incrementar com os conceitos da Física, com cinema, com Psicologia e, sim, com a questão da alteridade: com o futuro a determinar e orientar o presente/passado.
Te amo e deixo aqui o registro.
Que presente ler esse texto nessa manhã.
ResponderExcluirEu te agradeço imensamente a partilha.
Fortalece as buscas, os encontros e desencontros nessa jornada.
Pois bem!
Todo dia eu vou pensar assim:
" é preciso fazer, com seriedade e profundidade, é preciso fazer."
Um abraço
E para mim o presente é a visita e também o comentário de pessoas como você, Bruno. Obrigada.
ExcluirFazer teatro, manter um blog, fazer o bem, no fundo a gente quer é ser reconhecido, ser o centésimo macaco, né? Mas tem tanta gente fazendo teatro, blog e o bem (felizmente) que o mais inteligente é entrar na onda!
Fazer é um modo de "fazer parte"! E fazendo parte, somos um dedidnho do macaco número 100. (Na verdade, pelo que vejo de seu trabalho, ele é bem mais que um dedinho).
Abraço grande pra ti também, Bruno. Obrigada mais uma vez.
As vezes não olhamos com atenção oq ue nos constroi, ou oq ue constroi nossas influências, mesmo com o que acontece em ilhas diferentes.
ResponderExcluirTem razão. Amei o texto!
Obrigada pela visita e pelo comentário, Rodrigo. Que bom que gostou. Um abração!
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