domingo, 29 de junho de 2014

BR Trans e Hamletmachine - solos de teatro


Silvero Pereira em cena de BR Trans
Foto: divulgação

Em 1987 estreava em São Paulo o espetáculo Hamletmachine, de Heiner Müller. A encenação de Márcio Aurélio propunha uma interpretação solo, a cargo de Marilena Ansaldi. No pequeno Teatro Igreja (há tempos desativado, no bairro do Bixiga), personagens diversos, femininos e masculinos, eram trazidos à cena pela atriz, também bailarina, que dava a cada um uma voz, um corpo e tônus diferentes. Ela era a dona daquela História (a peça propõe uma visitação a fatos e personagens históricos mesclada à fábula shakespereana), não só pela enunciação/interpretação do texto como pela operação de luz e som, e pela proximidade com a plateia.

Passados tantos anos, ainda é vívida para mim a total entrega de Marilena. A princípio comedida e controlada, aos poucos ela era tomada pela loucura, que a impelia a uma movimentação cada vez mais veloz e furiosa - o suor empapando sua roupa e fazendo escorrer a maquiagem. Lembro claramente das inscrições que fazia pelo corpo com o batom vermelho: autosacrifício/martírio dos personagens e também da atriz, naquela entrega despudorada ao público.

Ao assistir recentemente a BR Trans, do Coletivo Artístico As Travestidas, de Fortaleza, foi imediata a remissão ao trabalho de Marilena Ansaldi e de Márcio Aurélio. Escrito a partir de pesquisa do universo transexual, o espetáculo interpretado pelo ator Silvero Pereira retoma e potencializa o famoso “ser ou não ser” hamletiano, além de expor uma máquina social que produz discriminação, medo e violência.

Tal como Marilena, Silvero é um performer e é dono da História: interpreta, dança, canta, encarrega-se da luz e do som gravado, das movimentações de cenário; pesquisou, escreveu e produziu a obra. No entanto, se em Hamletmachine uma das intenções ao monologar o texto talvez tenha sido a metaforização do homem contemporâneo e sua consciência cindida, em BR Trans o conteúdo precipita-se na forma adotada. O transexual, o transformista e a travesti representam, por si só, a pluralidade. Estão em constante movimento, assumem identidades diversas, diferentes papeis/máscaras em casa, na rua, no trabalho, de tal maneira que o fato de o intérprete se desdobrar em várias funções, propõe uma nova camada de leitura. Seu esforço ao cumprir tantas marcações e mudanças em busca de um bom resultado (um dos holofotes falhou na sessão a que assisti) é também a peleja dos personagens retratados e de tantos outros.

Tal como Marilena, Silvero usa a pele como suporte de inscrições: o rosto, maquiado e borrado em sucessivas transformações, o corpo, cartaz onde exibe o nome das personagens que ele dá a conhecer. Ambos se expõem, desnudam-se, entregam-se em queda livre, poeticamente.

Em Hamletmachine, a ironia afiada de Heiner Müller.  Em BR Trans, o poder do deboche. Sob a co-direção de Jesebel di Carli, Silvero alterna as histórias dramáticas com um show de variedades, com direito a aula de dublagem. A tragédia social revisitada (como no texto alemão) – assassinatos, desespero, loucura – é temperada com o humor próprio do tipo de personagem retratado. Debochar de uma situação é um modo de enfrentá-la, de torná-la aparentemente menos grave. E o público ri, quem sabe sem perceber os mecanismos de defesa (ou de ataque) implicados em algumas situações.

Silvero é o dono de sua História e de outras, fruto da pesquisa realizada no Ceará e no Rio Grande do Sul, graças a edital da Funarte. Grande parte do teatro realizado hoje no Brasil é fruto de projetos pessoais, de esforço coletivo. Difícil imaginar a dramaturgia textual de BR Trans como trabalho de um escritor, em gabinete. É uma dramaturgia que nasce necessariamente da cena, ou antes dela, no diálogo entre o pesquisador e as pessoas e ambientes com os quais entrou em contato. Trama de ações que não só das palavras, mas do gesto, da luz; dos cenários, figurinos e objetos; da música, do vídeo, bem como do suor de Silvero Pereira e de toda equipe. Do suor de Márcio Aurélio e Marilena Ansaldi, que mesmo desconhecidos pelo grupo, deixou rastos tão bem marcados em nosso teatro, que eles ressoam no espetáculo da companhia.



Publicado no Caderno Ilustrada
Folha de S. Paulo - sem data registrada - 1987


Mais informações sobre o espetáculo e o projeto acessar:
http://www.projetobrtrans.com

terça-feira, 24 de junho de 2014

As dinâmicas coletivas de criação em teatro e os novos sentidos da dramaturgia

Para visualização em pdf, acessar:
http://pt.slideshare.net/adelianicolete/dinamicas-coletivas-de-criao-e-novos-sentidos-da-dramaturgia


Analisadas a criação coletiva e o processo colaborativo, dinâmicas coletivas de criação em teatro,  verifica-se que, dentre as características das encenações resultantes,  encontram-se configurações formais que escapam à estrutura dramática. Pretende-se, com este artigo, refletir sobre alguns sentidos abarcados pelo termo dramaturgia no teatro contemporâneo a fim de fundamentar a busca pelas novas formas do texto verbal e da cena.

As dinâmicas coletivas em arte têm se mostrado, a partir dos anos 1950, um potente meio de criação. Muitas delas emergiram no caudal da contracultura e de seus pressupostos de desierarquização de funções, de autonomia em relação aos mecanismos consagrados de produção, de subversão à cultura dominante e seu culto à figura de um autor único que, muitas vezes, sobrepunha-se à obra.

Há quem considere redundância falar em dinâmicas coletivas quando se trata de teatro – arte grupal por natureza, a construção da cena já implicaria em colaboração mútua. Ocorre, porém, que os esquemas convencionais de produção operam com atribuição específica de funções, que não se inter-relacionam e costumam obedecer a uma hierarquia. No topo da pirâmide está o diretor liderando atores, iluminadores, cenógrafos, figurinistas, músicos, cenotécnicos, divulgadores, que respondem às suas concepções de modo paralelo. É comum que apenas o encenador tenha uma visão geral do trabalho até bem próximo da estreia, quando todas as áreas são agregadas, constituindo o todo da encenação. Esse modelo difere substancialmente  de práticas como a criação coletiva ou o processo colaborativo.
A criação coletiva foi um dos primeiros movimentos rumo à equivalência criativa e à divisão de responsabilidades que confluem para a construção do espetáculo. No Brasil, ela desenvolveu-se e alcançou proporções significativas a partir de meados dos anos 1960, mantendo-se por quase duas décadas como importante procedimento de pesquisa estética e de militância, bem como de formação e fortalecimento do teatro de grupo (FERNANDES, 2000; GARCIA, 1990). Na década de 1990, ganharam força no país os coletivos de artes visuais, música e cinema, apresentando uma saída para a viabilização, divulgação e comercialização de trabalhos fora da tirania do mercado. Nesse contexto, despontou o processo colaborativo que, desde então, tem sido utilizado por um número cada vez maior de grupos teatrais.
Herdeira de alguns princípios da criação coletiva, a dinâmica colaborativa pressupõe que as hierarquias sejam substituídas pelas responsabilidades criativas, não havendo predomínio do autor, do diretor ou dos intérpretes. Há proposições a serem feitas por todos os envolvidos e funções a serem desempenhadas, sempre com interferência mútua entre os criadores, mas com decisões e assinatura final de cada área, sob a coordenação geral da direção (ABREU, 2003). A dramaturgia desenvolve-se no decorrer do processo, com base nas pesquisas, na improvisação dos atores, no ir e vir das proposições, experimentações e avaliações de cenas (SILVA, 2011). O grupo pode abrir os ensaios ao público e ter também sua colaboração, na forma de análises, críticas e sugestões. Novas etapas de criação sucedem-se até que chegue o momento das finalizações de cada área e da busca de uma identidade geral do trabalho. Dificilmente um espetáculo nesses moldes pode se considerar finalizado, pois é permanentemente revisto em função da relação com o espectador, da rotatividade dos intérpretes ou dos diferentes espaços de exibição (NICOLETE, 2005).

Constata-se que, assim como na criação coletiva, a dramaturgia baseada em múltiplas proposições, tende a uma conformação igualmente polifônica. Diferente de um autor individual, no controle do texto desde as primeiras ideias até a conformação final, o dramaturgo em processo avança no mesmo passo da cena, administrando criativamente as sugestões. Seu objetivo não é uniformizar as colaborações, nem reduzi-las a um denominador comum, ao contrário, é compor um trabalho com os diferentes materiais – situações improvisadas, textos sugeridos, ações, gestos, vozes, etc. –, conservando, muitas vezes, sua discrepância. Todos os demais criadores, porém, ao sugerir materiais com vistas à composição dramatúrgica e cênica, desempenham de alguma forma a função dramaturgia.

Decorre daí a dificuldade de se pretender uma dramaturgia textual e, consequentemente, uma encenação, semelhantes ao “organismo” perfeitamente estruturado da forma dramática convencional. É praticamente impossível encaixar na conformação canônica as contribuições de origens, aspectos e  funções tão variados. Nesses casos, é necessário que o dramaturgo resista à tentação de operar com os estímulos da cena do mesmo modo com que opera uma dramaturgia particular. Trancar e bloquear as leituras que se fazem de uma proposta nova utilizando velhas lentes. Daí a importância de se discutir um pouco mais alguns sentidos abarcados pelo termo dramaturgia no teatro contemporâneo e verificar se contribuem para um alargamento de referências capaz de facilitar o trabalho dramatúrgico e sua leitura, seja por parte dos criadores, seja dos espectadores. É a isso que nos propomos com esse artigo.

Dois sentidos básicos

Comecemos pela ampliação do conceito de dramaturgia. Da função de um autor único da peça teatral, que era o centro da encenação, ela passou a abarcar também o pensamento responsável pela passagem desse texto à cena, assim como a própria construção da cena por parte de toda a equipe, na ausência de um texto verbal preexistente. Daí que o professor Joseph Danan (2010) atribui dois sentidos básicos ao termo, entendendo que eles se ramificam e interagem permanentemente: o primeiro deles refere-se à função do autor dramático – é a noção mais convencional e, sob alguns aspectos, a mais limitada do termo –, desempenhada pelo dramaturgo. O segundo sentido refere-se à função do dramaturgista: aquele que não é o autor do texto dramático, mas, desempenha uma série de ações que envolvem a dramaturgia. É uma função atribuída a todos os responsáveis pela encenação.     

Entendemos por dramaturgismo todo o trabalho de pesquisa, a fundamentação teórica da encenação,  o acompanhamento dos ensaios, a escrita de textos críticos e de divulgação do espetáculo, bem como a eventual elaboração do texto verbal. Como se vê, ela comporta algumas atividades bastante comuns no processo colaborativo, daí a grande diferença entre as dramaturgias no sentido 1 e no sentido 2, lembrando que não são as personas do autor dramático e do dramaturgista que interessam, “mas a função nomeada dramaturgia que elas encarnam, assim como a carga teórica e prática desta noção” (DANAN, 2010, p. 6). Decorre daí uma noção de dramaturgia que se amplia da criação individual de uma peça de teatro (sentido 1) para o trabalho junto da cena assumido por todos (sentido 2). Segundo Danan, a equipe assume a função dramaturgia, tanto quanto o autor dramático.

Compreende-se hoje que o pensamento que norteia a construção de um espetáculo e que se constitui por seu intermédio é também dramaturgia. Os conceitos envolvidos, as ideias e a busca pela melhor forma de efetivá-los na cena e relacionarem-se com o público pertencem a essa esfera imaterial. Tal reflexão encontra algumas de suas raízes nas proposições de Bernard Dort. Para ele, a dramaturgia, concebida como uma atividade que se distingue simultaneamente da escrita e da encenação é um estado de espírito, uma prática transversal (DORT, 1988).

Para que essa prática fosse efetivada, foi necessário que o texto deixasse de ocupar o centro gravitacional da encenação. Com o advento do encenador e a consequente compreensão da cena como lugar próprio de significação, não como tradução ou consecução de uma peça escrita, foi possível uma emancipação da representação em relação ao texto verbal preexistente. “Constata-se hoje uma emancipação progressiva dos elementos da representação e podemos verificar uma mudança em sua estrutura: a renúncia a uma unidade orgânica prescrita a priori e o reconhecimento do fato teatral como polifonia significante, aberta ao espectador”. (DORT, 1998, p. 178).

Com isso, a representação não postula mais uma fusão ou uma união das artes –   como pretendiam Richard Wagner ou E. Gordon Craig. Ocorre uma relativa independência dos elementos, a partir de sua equivalência: não só o texto é produtor de sentido, mas também o espaço e o cenário, a luz, os objetos e o figurino utilizados, a interpretação e tudo o mais. Há um discurso que percorre cada um deles, paralelamente, e que produz, segundo Dort, um combate pelo sentido, em que o espectador é, no final das contas, juiz.

No que se refere à emancipação da representação e, em consequência, do encenador, a professora Sílvia Fernandes afirma que
           
O que distingue o encenador, novo artista da cena, de seus antecessores - o próprio dramaturgo, o ensaiador ou o primeiro ator da companhia  - é o fato de que sua obra não pretende ser a simples disposição cênica de um conjunto, a marcação de entradas e saídas de elenco, a orientação de uma entonação de voz ou mesmo a rememoração e atualização de truques e convenções que persistem, através da história, como elementos de enformação do teatro. O encenador organiza o sentido do que se apresenta no palco, na medida em que não se limita mais a ordenar elementos, mas sistematiza concepções que dão um caráter ao projeto de encenação. Ele se transforma em “autor do espetáculo”. (FERNANDES, 1996, p. 271).


Retomando a proposta de Danan em relação aos dois sentidos básicos da dramaturgia, verificamos que o sentido 1 estaria do lado do texto, enquanto o segundo, mais amplo, refere-se à passagem do texto à cena. No teatro contemporâneo, isso não implica mais numa ordem cronológica, pois a cena pode vir antes do texto verbal ou de um roteiro de ações. Não implica também numa função específica do dramaturgo ou do diretor, mas de todos, imbuídos de um “estado de espírito dramatúrgico” capaz de operar sobre as “virtualidades” (DORT, 1986, p. 8). O estado de espírito dramatúrgico vem substituir o “estado de espírito semiológico”. Este, em vez de estruturar a representação como o confronto dos signos, procura  considerá-la  como    um   sistema  de  signos  milimetricamente  codificados,  que direcionam a leitura a fim de controlar a construção do sentido por parte do espectador (DANAN, 2010, p. 35). A “reflexão sobre as virtualidades”, ao contrário, permite que os signos se multipliquem, pois cada criador contribui de maneira singular para a narrativa geral do espetáculo – imbuído de um estado de espírito dramatúrgico.

Temos, com isso, que o trabalho dramatúrgico realizado em sala de ensaio no processo colaborativo  é de responsabilidade de todos. Cada participante imagina, pesquisa e busca empreender suas ações a partir de um conjunto de signos específicos de sua área tendo em mente a comunicação com o público. Cada uma dessas áreas propõe um “texto” a ser decodificado pelo espectador, de modo específico ou integrado ao texto maior da encenação. Daí o entendimento de uma dramaturgia da luz, outra do cenário ou do ator e assim por diante. Ao ampliar a noção do termo, de modo a abarcar todas as esferas envolvidas na criação, pretende-se que cada criador assuma a responsabilidade comunicativa de suas proposições, sem delegar esse ônus tão somente ao dramaturgo e ao texto verbal.

Dramaturgia como tecido de ações

Quando se fala em um texto particular de cada esfera criativa da encenação, a ser decodificado pelo espectador  numa leitura própria, retomamos o sentido original da palavra texto: tecendo junto. Consequentemente, essa ideia de tecer junto implica na impossibilidade de uma representação cênica destituída de um texto. Temos, portanto, uma compreensão de dramaturgia como a arte de tramar os fios das ações no trabalho da encenação:

Numa representação, são ações (isto é, tudo que tem a ver com dramaturgia) não somente aquilo que é dito e feito, mas também os sons, as luzes e as mudanças no espaço. Num nível mais elevado de organização, as ações são os episódios da história ou as diferentes facetas de uma situação, os espaços de tempo entre dois clímax do espetáculo, entre duas mudanças no espaço (…). Os objetos usados na representação também são ações. Eles são transformados, adquirem diferentes significados e colorações emotivas distintas. Todas as relações, todas as interações entre as personagens e as luzes, os sons e o espaço, são ações. Tudo o que trabalha diretamente com a atenção do espectador em sua compreensão, suas emoções, sua cinestesia, é uma ação. (BARBA, 1995, p.69).


Na mesma página, Barba conclui que “as ações só são operantes quando estão entrelaçadas, quando se tornam textura, 'texto'”. A dramaturgia tem, então, o seu sentido ampliado para além da autoria individual, sem que o dramaturgo perca a sua função. No nosso entender, por mais que o iluminador, o cenógrafo, o compositor tramem os fios de suas áreas, o dramaturgo pode ultrapassar a fronteira do texto escrito e assumir uma dramaturgia da cena. Ao observar sua escrita na conjunção com a luz, por exemplo, ou com a interpretação, com a trilha sonora, ele pode notar que determinado gesto ou marcação “dizem” mais sobre a situação do que algumas palavras e decidir por eliminá-las. Ou, ao contrário, pode avaliar que a transição entre uma cena e outra pede um texto a ser dito pelo ator (NICOLETE, 2005, p. 59). Há que se considerar, porém, as encenações destituídas de texto verbal. Nesses casos, cabe ao dramaturgo analisar as ações dos atores/personagens de acordo com um roteiro original ou, na ausência deste, de acordo com o que vai sendo elaborado ao longo das experimentações. Ele representa, de um certo modo, o espectador, na medida em que é capaz de identificar o que pode ou não ser compreendido por esse, o que está claro ou não, o que pode ser intensificado, problematizado e assim por diante.

Para Eugênio Barba, quando o artista considera o potencial comunicativo da obra, ele tem a possibilidade de planejar e encaminhar a relação com o espectador, orquestrar seus ritmos, induzir tensões sem pretender impor uma interpretação (BARBA, 1995, p. 70), pois há um fio que pertence ao nosso interlocutor externo e que pode ser trançado pelo dramaturgo no grande texto do espetáculo.

Tecer conjuntamente os fios de todas as instâncias criativas do espetáculo, levando em conta aquele que cabe ao espectador trançar, remete-nos ao princípio da polifonia (multiplicidade de sons), proposto por Mikhail Bakhtin (1997). Referindo-se aos romances de Dostoievski, Bakhtin constatou a coexistência de diferentes vozes, em detrimento da voz única do autor, mais comum na literatura da época: cada personagem assume uma trajetória e um tipo de conduta próprios e condizentes com o seu caráter. É como se tivessem existência independente do romancista, cuja função aparente seria registrar de modo organizado as diferentes trajetórias, trançá-las. Um autor-tecelão, que dispõe do enredo, da trama, dos fios-personagens, bem como do contexto  na criação de sua arte. É possível se ter uma ideia da obra como um todo, do mesmo modo que se pode ver em cada personagens um fio único, independente da trama geral.

A polifonia é também uma marca da escrita teatral contemporânea, onde convivem as mais diversas “vozes”, sugerindo diferentes significados, mas tecendo em conjunto o espetáculo, cuja totalidade supera a soma das partes, conforme visto anteriormente. Nesse contexto, o processo colaborativo é uma das dinâmicas que mais têm promovido uma tessitura polifônica da cena. Embora caiba ao diretor a busca de uma arregimentação das contribuições do grupo, é notável o quanto cada um dos fios pode apresentar cores, texturas, calibres, resistências, extensões diferentes. O tecido final do espetáculo, longe de propor uma unidade/uniformidade de aparência monológica, caracteriza-se justamente por sua dimensão heterogênea, pela sua polifonia/policromia ou pelo seu polimorfismo que se estendem à contribuição do espectador. Daí a imagem de colcha de retalhos associada a algumas encenações resultantes – algo próximo ao figurino do Arlequim, da commedia dell'arte, uma junção de vários tecidos –, ou seja, uma rapsódia.

Dramaturgia como rapsódia

Em sua obra O futuro do drama (2002), Jean-Pierre Sarrazac toma o vocábulo rapsódia – que em grego significa  literalmente  costurar –  para  representar o tipo de construção dramatúrgica feita da união de fragmentos de origens diversas. Em seguida, refere-se ao antigo rapsodo grego, autor e recitador de narrativas diversas, e propõe que o dramaturgo contemporâneo atue do mesmo modo que ele: unindo, costurando formas teatrais e extrateatrais numa composição única e tendo como aglutinador um pensamento que narra, mas também questiona – o ambiente, as circunstâncias, o estado das coisas. Da conjunção dessas duas ideias, Sarrazac define um modo de criação teatral ligado ao domínio épico, pois relacionado aos cantos e à narração homéricos, como também vinculado a procedimentos de escrita tais como a montagem, a hibridização, a colagem, a coralidade, característicos da cena contemporânea.

O ensaísta francês adota a rapsódia como o oposto de uma peça teatral de proporções equilibradas e estrutura definida – um organismo dotado de unidade em perfeito funcionamento. Sendo assim, o dramaturgo e todos aqueles que exercem a função dramaturgia em processos colaborativos, operam com a vivisseção, a desmontagem e o despedaçamento das formas antigas, buscando, no entanto, criar formas capazes de comunicar-se com o espectador de modo tão eficiente quanto o drama. Daí que esse retalhamento não se dá gratuitamente, apenas com a finalidade de descaracterizar a unidade peculiar à forma dramática. Trata-se de um transbordamento da própria forma e não o seu banimento:

Fazer fugir o sistema dramático (e não exauri-lo), é nisto que consiste o devir rapsódico do teatro. Neste jogo, ao qual se dedicam atualmente os diferentes modos poéticos, mesmo nos autores  mais inventivos, é ainda o dramático, mesmo que muito limitado, que oferece esta dimensão de confrontação inter-humana que sempre esperamos do teatro, mesmo quando pressentimos o seu caráter decepcionante, incompleto, meio cego. (2002, p. 232).

Por isso a rapsódia, ainda que fundamentalmente épica em sua estrutura fragmentada,  acolhe o lírico e o narrativo, mas também o dramático, aproveitando-se dos recursos que favoreçam tanto os objetivos internos da composição quanto a relação com o espectador, que na opinião de Sarrazac pode ser ainda mais intensificada.

Um segmento do teatro atual, e nele estão incluídas as dinâmicas coletivas, parece empreender uma busca por recuperar o sentido de proximidade com o espectador, a proximidade conquistada pelos rapsodos gregos, que costuravam narrativas (gênero épico) e interpretação de personagens (gêneros lírico e dramático) em uma mesma apresentação, comunicando diretamente os diversos gêneros discursivos com a comunidade de ouvintes.

É importante reiterar o quanto a dramaturgia feita junto da cena solicita um autêntico trabalho rapsódico, de tecedura de ações. A sala de ensaio é um ateliê/oficina em que se processam as pesquisas áudio-vídeo-bibliográfica e empírica, os depoimentos e improvisos, as sugestões de cena e de texto verbal, assim como experimentos de luz, cenário, sonoridades e tantos outros elementos, constituindo todos eles dramaturgias próprias.

Como articular materiais tão diferentes, vindos de tantas fontes, com o objetivo de estabelecer uma dramaturgia da própria encenação? O importante é não perder de vista que cada um dos criadores responde pela função dramaturgia, por tecer as ações de sua competência, conferindo ao dramaturgo responsável a organização e a assinatura do todo. Mais do que selecionar uma porção de elementos e “costurá-los”, cabe a ele, à luz dos objetivos pretendidos pelo grupo, buscar uma composição que seja mais que uma simples colagem das partes. Está aí um dos trabalhos mais difíceis e que requer uma experimentação contínua, pois conjuga até mesmo fatores subjetivos. Nesse tipo de dinâmica, desenvolve-se uma costura não só de materiais, como também de desejos, de expectativas e de frustrações, inclusive do espectador. Este último, só aos poucos e com a frequência constante a espetáculos não-convencionais, vai se descondicionando das velhas formas e resistindo cada vez menos às novas propostas da cena contemporânea.

Adélia Nicolete


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Luís Alberto de. Processo colaborativo : relato e reflexões sobre uma experiência de criação. Cadernos da ELT, Santo André, v.1, n.0, p. 33-41, mar. 2003.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 2. ed. Tradução de Paulo Bezerra.  Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1997.

BARBA, Eugenio. Dramaturgia. In: BARBA, Eugenio, SAVARESE, Nicola.  A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. Tradução de L. O. Burnier et al.  São Paulo-Campinas: Hucitec – Unicamp, 1995. p. 68-73.

DANAN, Joseph. Qu'est-ce que la dramaturgie? Arles: Actes Sud-Papiers, 2010.

DORT, Bernard.  La représentation émancipée : essais.  Arles: Actes-sud, 1988.

FERNANDES, Sílvia. Memória e invenção : Gerald Thomas em cena.  São Paulo: Perspectiva : FAPESP, 1996. P. 271.
______. Grupos teatrais : anos 70.  Campinas: Unicamp, 2000.

GARCIA, Silvana. Teatro da militância.  São Paulo: Perspectiva, 1990.

NICOLETE, Adélia. Ateliês de dramaturgia: práticas de escrita a partir da integração artes visuais-texto-cena. 2013. Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo.

______. Da cena ao texto : dramaturgia em processo colaborativo. 2005. Dissertação (Mestrado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27139/tde-28092009-092332/pt-br.php

SARRAZAC, Jean-Pierre.  O futuro do drama. Tradução de de A. M. Da Silva. Porto, Portugal: Campo das Letras, 2002.

SILVA, Antônio Carlos de Araújo. A gênese da vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. São Paulo: Perspectiva, 2011.





quinta-feira, 19 de junho de 2014

Dramaturgia em colaboração: por um aprimoramento


Há alguns anos vemos aumentar significativamente o número de espetáculos realizados em processo colaborativo. Dentre as críticas que recebem é comum apontarem falhas na configuração dramatúrgica, como se o fato de muitas e diferentes vozes atuarem na composição da obra tornasse a dramaturgia quase sempre “poluída”, desarticulada, mal urdida. A que se deve isso? Após um breve panorama, apontaremos aqui algumas possíveis causas desses problemas e, quem sabe, uma ou outra possível solução.

Desde os anos 1990 o número de coletivos de criação tem crescido tanto no Brasil quanto no exterior. Espetáculos teatrais, músicas, artes plásticas, áudio-visuais tem sido criados e exibidos a partir da ação conjunta dos integrantes e, grande parte das vezes, no chamado processo colaborativo. O método é semelhante, embora os objetivos possam ser diversos. O Ateliê Fidalga, por exemplo, idealizado pelos artistas plásticos Sandra Cinto e Albano Afonso, em São Paulo, reúne artistas que trabalham com diferentes técnicas e um procedimento básico: levam suas ideias ou esboços às reuniões semanais para serem analisados pelo coletivo, e receber críticas e sugestões antes de serem executados ou finalizados. É o coletivo que responde também pela organização das exposições e divulgação dos trabalhos. Esse tipo de conduta tem ganhado cada vez mais seguidores a partir dos anos 1990 e garante uma série de vantagens que os métodos tradicionais de produção já não garantem mais: autonomia de criação, equivalência de funções, mútua interferência nas instâncias criativas, maior independência em relação a produtor/curador/gravadora e ao mercado, gestão própria de recursos, entre tantos outros.

            No teatro o processo colaborativo ganhou contornos mais definidos e uma pesquisa formal e acadêmica a partir dos trabalhos do Teatro da Vertigem, de São Paulo, nos anos 1990. Trata-se, a nosso ver, de um processo que tem como antecedentes imediatos a prática da criação coletiva e a experiência do dramaturgismo (NICOLETE, 2005). Desta, herdou a pesquisa e a presença de alguém responsável pela dramaturgia na sala de ensaio. O dramaturgista atua muitas vezes como “braço-escritor” do diretor, aliando a criação dos intérpretes, os elementos pesquisados, a visão do diretor e a sua própria na escrita do texto a ser enunciado em cena. Da criação coletiva o processo colaborativo parece ter herdado, em muitos casos, a concretização de um desejo grupal, que leva à pesquisa conjunta e à execução de múltiplas funções com interferências mútuas, de modo às linhas autorais esmaecerem em nome da assinatura coletiva.


            À parte as vantagens todas do coletivo criador, talvez decorra dessa segunda ascendência – a da criação coletiva - o fato de muitos dos espetáculos frutos de processo colaborativo receberem críticas desabonadoras em relação à dramaturgia. Melhor dizendo: ao assumir a influência direta da criação coletiva talvez devêssemos aprimorar seus “métodos” - e aqui vão comentários estritamente referentes à elaboração do texto a ser enunciado.
           

Cartaz do espetáculo "Geração 80", criado em processo colaborativo
Dramaturgia: Adélia Nicolete
2000

    Ao levarmos em conta o contexto em que a criação coletiva se deu mais intensamente  no Brasil – final dos anos 1960 até princípio dos 1980 – poderemos notar que o procedimento (processo) trazia um peso de transgressão, inovação e vitalidade tão grande e necessário que, compreensivelmente, se sobrepunha, muitas vezes, à questão estética. Dado o contexto, o teatro da militância, o teatro feito com operários e os grupos amadores em geral estavam menos preocupados com a forma final de seu trabalho que com o processo de pesquisa, atuação comunitária, democratização do fazer artístico, expressão de pensamento e tantas outras necessidades e motivações. Consequentemente, público e crítica do período, movidos  pelos mesmos impulsos, praticamente desconsideravam os possíveis e frequentes “defeitos”, porque a comunicação se estabelecia menos por canais estéticos que ideológicos ou empáticos. Dessa forma, um aspecto meio “sujinho” ou “descosido”, que poderia ser visto como um problema dramatúrgico, ganha status de “charme”, de “it”, de resíduo do processo – este o protagonista.

            Mudado o contexto, acessadas novas formas e procedimentos artísticos, faz-se necessário investigar o por que da permanência de certas falhas.

            Em primeiro lugar é preciso levar em consideração que, assim como havia diferenças de abordagem da criação coletiva pelos grupos, o processo colaborativo pode variar também de acordo com uma série de fatores. Podemos elencar o nível de experiência dos participantes, o tempo disponível, as condições econômicas e físicas de trabalho, entre outros (NICOLETE, 2005). Sendo assim, a presença de um dramaturgo experiente, por exemplo, pode fazer toda a diferença na condução e no acabamento dramatúrgico de um espetáculo. Assim como um prazo mais flexível para pesquisa intelectual e cênica. Ou seja, torna-se difícil fazer um diagnóstico geral a respeito do assunto.

            Outro aspecto a se considerar é a formação do dramaturgo. Se entre os anos 1960-1980 a formação dramatúrgica era, em grande parte, empírica ou auto-didata devido à ausência de cursos formais, temos visto, desde o final da década de 80, um aumento significativo de cursos, oficinas e, por isso, de dramaturgos “formados”. São eles responsáveis pela renovação da dramaturgia brasileira nos últimos tempos – quando ainda se afirmava que não havia mais autores nacionais.  Porém, convém uma pergunta: que tipo de formação é necessária para um dramaturgo que se disponha a atuar em processo colaborativo? Seria a mesma do autor de gabinete? Há um perfil adequado para cada tipo de processo? Pode haver migração de um dramaturgo de gabinete para o processo colaborativo? Este procedimento se adéqua a um texto de contornos dramáticos ou é preciso que se busquem novos enfoques?

            A experiência diz que um dramaturgo de gabinete pode atuar satisfatoriamente em processo colaborativo. O trabalho de Luís Alberto de Abreu junto ao Teatro da Vertigem e ao Grupo Galpão confirma a hipótese. É certo que desde seus tempos amadores Abreu dialoga com a cena. Mas é também certo que alguma “marca” de sua dramaturgia está impressa tanto em um quanto em outro espetáculo daqueles coletivos (NICOLETE, 2005). Ocorre que a presença de um dramaturgo “profissional” na equipe pode causar a impressão de maior segurança e estabilidade – sensações caras quando se trata de um processo tão instável e imprevisível quanto o colaborativo. Esse suposto “profissionalismo” pode, por sua vez, dar ao dramaturgo maior “autoridade” junto ao grupo na hora de argumentar sobre determinadas soluções, e a configuração pode vir a ser mais uniforme do ponto de vista dramatúrgico.

Material de divulgação do espetáculo "Poto segredo. Primeiros fios" - Grupo Pontos de Fiandeiras
Dramaturgia em processo colaborativo: Adélia Nicolete
2013

E o dramaturgo iniciante? Que dificuldades enfrenta nesse tipo de processo? Em primeiro lugar sua formação é, na maioria das vezes, dramática. Os cânones consagrados como principal referência tendem a conduzir a soluções vinculadas à presença de um enredo reproduzível, personagens e conflitos definidos, clímax, desenlace – soluções limitadas quando se trata de uma dinâmica criativa capaz de levar a outro tipo de resolução. É como se tentássemos adequar um material com determinada maleabilidade a um molde que não lhe dá a melhor conformação ou não lhe explora suas características mais pulsantes.

            Este dramaturgo iniciante encontra também dificuldade no que se refere ao próprio trabalho em grupo. Condicionado, em geral, ao trabalho solitário, em que é o senhor da obra em sua totalidade – da ideia à formatação final – ao se ver inserido em um ambiente de “promiscuidade criativa” (ARAÚJO, 2003) tende a acionar mecanismos de defesa que, pelo menos a princípio, podem colocá-lo à parte do processo. Por isso cremos que uma formação adequada ao dramaturgo de hoje deveria levar em conta o desvelamento do processo criativo e a reflexão grupal sobre ele, prática comum nos ateliês de escrita em língua francesa. Ao ter sua ideia e seu texto analisados e discutidos em grupo por outros autores ou mesmo iniciantes, além de aprimorar o trabalho, proporciona ao dramaturgo uma experiência de troca, de mútua interferência, de sair do próprio universo e mergulhar no universo criativo alheio, entre outras (NICOLETE, 2010). Isso pode prepará-lo mais adequadamente para um processo como o colaborativo, que exige desprendimento, análise, visão de conjunto, crítica em perspectiva, seleção de material e de sugestões, por exemplo. Que exige um fazer e refazer constante, um abrir mão de grandes achados poéticos em nome da concretude da cena (ABREU, 2003).

            Esse aprendizado nos parece necessário porque uma das críticas mais recorrentes ao resultado dramatúrgico do processo colaborativo é o excesso - como se todos os criadores tivessem de ser contemplados no texto final. Como se ao dramaturgo coubesse tão somente “costurar” as criações alheias – por vezes discrepantes – tendo o cuidado ético (e talvez ideológico) de processar equitativamente as contribuições de cada criador, mesmo que não tenham tanta consistência ou significado no conjunto. Por isso, um aprendizado coletivo já em sua formação, poderia dar ao dramaturgo a experiência da escuta, do aproveitamento criterioso de material sugerido por outrem e, principalmente, a noção de sua autonomia em relação às contribuições do grupo.

            Aliado a isso, um outro fator sinaliza a diferença entre processos: a convivência do grupo. Um coletivo que atua há um certo tempo junto difere, no processo, de outro que engatinha na criação compartilhada? Parece-nos que sim. A afinação entre os parceiros que o convívio tende a proporcionar leva, à parte os conflitos também gerados pela intimidade, a certa sintonia criativa, como se uns “lessem o pensamento” dos outros, de modo que as respostas aos estímulos podem vir mais rápidas, os acordos ou os enfrentamentos podem se dar mais objetivamente. Um dramaturgo residente, como ocorre em algumas companhias, talvez alcance um aperfeiçoamento cada vez maior a cada trabalho.
           
            Por outro lado, a questão das críticas à dramaturgia colaborativa nos leva, necessariamente, a uma visão mais abrangente da situação. É preciso lembrar que a deposição do texto como elemento central de uma montagem e sua disposição no mesmo patamar das outras instâncias emissoras de sentido, traz à reflexão a noção de uma dramaturgia da luz, da interpretação, da cenografia, da direção e assim por diante. E se há um texto a ser lido pelo espectador em cada uma dessas áreas não seria recomendável, então, um aprendizado, ainda que mínimo, de dramaturgia para todos esses criadores/autores? Não seria mais produtivo, não traria melhor resultado dramatúrgico final se atores, diretor, cenógrafo, figurinista tivessem noções de dramaturgia? Não a dramaturgia acadêmica, reverente à tradição, mas a experiência dramatúrgica da imaginação, da concepção, da organização, da composição, da harmonização de elementos com vistas a uma escrita que, paradoxalmente, pode nem vir a ser escrita/enunciada! A experiência com diversos tipos de materiais textuais desvinculados de padrões dramáticos, como narrativas, depoimentos, documentos, tiradas, formas breves em geral (NICOLETE, 2010).

            Esta reflexão traz, necessariamente, a reboque uma outra. O ator vem sendo formado para um processo que exige dele bem mais que a interpretação de um papel previamente construído? E o diretor? Sua atuação leva em conta os demais criadores ou insiste em um papel de compositor e regente de uma partitura por ele previamente definida? O cenógrafo, o iluminador, o figurinista, por sua vez, vem sendo preparados para opinar criativamente sobre algo ainda em construção ou permanecem aguardando uma melhor definição da cena para atuar criativamente? E os demais artífices? São questões importantes e que merecem uma reflexão mais alentada porque, em geral, se critica a dramaturgia, mas se esquece de que ela é também a configuração verbal de criações várias. E se essas criações não trouxerem em seu bojo um material limpo e bem cosido, mais dificilmente resultarão em excelência estética.

            É notável a incorporação de alguns paradigmas cênicos nos textos teatrais elaborados no coletivo, o que pode ser verificado, por exemplo, em O Livro de Jó, de Luís Alberto de Abreu, realizado com o Teatro da Vertigem (FERNANDES, 2010). Sendo assim, ao dramaturgo não seria benéfico se, desde sua formação, tivesse contato por mínimo que fosse com as demais áreas?

            Enfim, como foi dito no início, tentamos apontar alguns motivos que justifiquem as falhas encontradas na dramaturgia em processo colaborativo. Causas de origem estrutural, grupal ou da própria formação dos artistas. E uma das soluções nos parece que pode ser encontrada, principalmente, em uma pedagogia que vise à preparação e ao aperfeiçoamento do trabalho criativo coletivo em todas as áreas de produção de um espetáculo.



Bibliografia
ABREU, Luís Alberto de. Processo colaborativo : relato e reflexões sobre uma experiência de criação. Cadernos da ELT, Santo André, v.1, n.0, p. 33-41, mar. 2003.

SILVA, Antonio Carlos de Araújo.  A gênese da vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. 2003. 192p. Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.

FERNANDES, Sílvia.  Teatralidades contemporâneas.  São Paulo : Perspectiva, 2010.

NICOLETE, Adélia. Da cena ao texto : dramaturgia em processo colaborativo. 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.

______. Criação coletiva e processo colaborativo : algumas semelhanças e diferenças no  trabalho dramatúrgico.   Sala preta. São Paulo : v. 2, n. 1, p. 318-325, 2002.

______. Fazer para aprender : a prática dos ateliês de escrita dramática em língua francesa.  ANAIS do VI Congresso da ABRACE, 2010.


 Adélia Nicolete
 Artigo publicado originalmente a Revista Subtexto


terça-feira, 10 de junho de 2014

Os fios do texto no teatro


A palavra texto, que estamos habituados a associar à palavra, é da mesma família da textura, da tessitura, do tecido, enfim. Não é à toa que para o povo dogon da África ocidental, a tecelagem, atividade de importância primordial para a comunidade, é assimilada à palavra. Segundo a tradição, a primeira palavra foi a primeira faixa de algodão tecido, que jamais deverá ser cortada.

Para aquele povo, do mesmo modo que a tecelagem é a união de fibras, o ato de falar firma a vida social. Cada instrumento ou etapa da ação de tecer, por exemplo, corresponde a um órgão ligado à palavra. Assim, a polia está associada às cordas vocais – por causa do som, do rangido –, o tecer está associado à boca, a lançadeira à língua, e o pente aos dentes. O tecido é entendido como um conjunto de palavras em que os fios se entrelaçam como os elementos da linguagem, animados pelo ranger da polia, o barulho dos tensores e da lançadeira. O trabalho de tecer evoca um discurso, uma fala cujo sentido é revelado pelos motivos que aparecem no tecido.


Tecelões dogon - 1986-1987 - foto: Hélène Leloup
Museu do Quai Branly - Paris, 2011


É assim também com o texto teatral, entendido aqui como a escritura/tessitura geral do espetáculo e não somente como aquilo que é emitido vocalmente pelos atores. A encenação é a trama de fios diversos, cada um com a cor e a textura que lhes são próprias. Em grande parte dos casos há, sim, o fio da palavra falada. No entanto, a leitura total da obra se dá graças ao entrelaçamento dos fios da luz, das sonoridades e da gestualidade, os fios da configuração cênica, dos cenários e objetos, do visagismo e tantos outros. Não é à toa que em teatro usam-se termos tais como “costurar ou alinhavar as cenas”, “arrematar”, “não deixar fios soltos”, por exemplo.

O momento culminante de qualquer trabalho dessa natureza dá-se no contato com o público. Tal qual um tecelão, cabe ao espectador, no contato com a obra, completar a seu modo o enredo com os fios de sua experiência, de sua formação, de sua memória. Há, inclusive, espetáculos ou perfomances até certo ponto “incompletas”, pois permeáveis à intervenção direta do público no momento da apresentação. Ou seja, o trabalho é tecido a cada sessão de um modo diferente.


(Publicado originalmente com o título "Os fios do texto" em 
http://alinhavandopontos.blogspot.com.br)




terça-feira, 3 de junho de 2014

A foto da capa



A primeira imagem que ilustrou o BLOG é a foto de um dos recantos do Storm King Art Center, no estado de Nova Iorque.


Uma das idéias de vertente (água que desce pela encosta de um morro) é aqui simbolizada pelo fluxo da pedra: um muro que “nasce” na parte mais alta do terreno, serpenteia por entre árvores até alcançar o lago e, depois de percorrê-lo em largura até o outro extremo, emerge (embaixo, à direita na foto) e continua seu caminho até próximo à autoestrada. "Storm King Wall" é obra do artista Andy Goldsworthy.


Muro de pedra visto a partir da autoestrada, lago ao fundo

Muro de pedra serpenteia até encontrar o lago e submergir


Quando de minha visita ao Centro de Artes, publiquei uma postagem a respeito. Nela encontram-se informações sobre o local e maiores detalhes sobre essa e algumas outras obras lá expostas. O texto pode ser acessado em:

http://papelferepedra.blogspot.com.br/2013/06/storm-king-art-center-o-tio-da-america.html

No alto nasce o muro, feito com pedras de antigas construções locais

Adélia Nicolete