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Participantes do Ateliê de Dramaturgia
Projeto Quixote - FUNSAI
(Foto: acervo pessoal) |
Se até bem pouco tempo a dramaturgia ainda era uma atividade solitária e o autor, responsável pela totalidade de uma escrita verbal orgânica e precisa (a peça teatral e fundamental a uma encenação), os modos de criação compartilhada, bem como o afastamento cada vez mais intenso da forma dramática, solicitam do dramaturgo contemporâneo uma proximidade com a prática viva da cena. Busca-se com os Ateliês de Dramaturgia abordados no presente depoimento uma pedagogia que corresponda a tais configurações.
Gênese
Em
linhas gerais, pretende-se com os Ateliês
de Dramaturgia o desenvolvimento de materiais textuais para teatro com base
na apreciação e na eventual produção plástica, a serem discutidos entre os
pares, reescritos o quanto se fizer necessário e testados em sua relação com a
cena. O referencial teórico mais significativo foram os Ateliês de Escrita Dramática de países francófonos, mesclados a minhas experiências anteriores em cursos e coletivos de dramaturgia, bem como à prática docente. Dessa última é que veio o desejo de abraçar as artes plásticas à criação de textos para teatro.
Em 1993 ingressei no magistério superior em Artes e, como docente de iniciação ao Teatro e de Encenação, propunha, entre outros recursos, a criação de cenas a partir da apreciação de outras linguagens, fixando-me, com o tempo, nas artes plásticas. Grupos eram formados e, depois de pesquisa de obras e autores brasileiros, escolhiam-se telas figurativas para apreciação.
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"Os retirantes" - de Cândido Portinari uma das telas escolhidas para criação de cena |
Em seguida, uma situação era identificada e, a partir daí, personagens, tempo e lugar. conflitos eram percebidos ou criados, assim como os antecedentes e o desfecho de tal situação, tudo com o objetivo de se criar uma versão teatral da tela escolhida. As cenas eram apresentadas, avaliadas pelos colegas e reelaboradas até se chegar a uma versão por escrito - tudo bastante inspirado pelos jogos teatrais de Viola Spolin e voltado à forma dramática.
Do ponto de vista pedagógico, o procedimento foi bem sucedido, tanto que o adotei também nas oficinas de dramaturgia ministradas até o início dos anos 2000, com pequenas modificações: abertura para obras de arte estrangeiras e foco na criação de textos, sem a passagem para a cena. Naquele período, iniciei os estudos do processo colaborativo que resultaram na dissertação de mestrado "Da cena ao texto: dramaturgia em processo colaborativo", defendido em 2005, sob orientação da professora Sílvia Fernandes.
Da dissertação à tese foi um passo, na medida em que á reflexão sobre uma pedagogia da dramaturgia compartilhada veio se somar outra solicitação, a da criação de textos para além da forma dramática. Como parte dos procedimentos pesquisados, voltei aos anos 1990 e às artes plásticas, optando dessa vez pelo não-figurativo, por imaginar que ele nos afastaria da forma dramática com maior facilidade, o que veio a se confirmar. nasciam ali, em 2009, o que viriam a ser os Ateliês de Dramaturgia, sob orientação da professora Maria Lúcia Pupo.
Características
O
termo “Ateliê” foi escolhido menos por referir-se aos ateliês franceses que
pelo lugar em que o artista plástico opera com as materialidades para a
produção de suas obras.
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Seleção e composição com imagens Projeto Quixote - FUNSAI
(Foto: Adélia Nicolete) |
Um dos princípios fundamentais da proposta é que a escrita é, ela também, uma
operação com materialidades. A inspiração e o dom cedem lugar à composição, ou
seja, ao trabalho pesado (mas instigante) de conjugação de elementos desde os
mais básicos como os signos linguísticos, o vocabulário; os sinais gráficos e a
pontuação, até a sonoridade, o ritmo e o tom, o formato e o suporte, as ideias,
o conteúdo e sua configuração gráfica e assim por diante.
Esse
trabalho de composição da escrita verbal assemelha-se ao da escrita pictórica
na medida em que se pauta igualmente pelas noções de equilíbrio/desequilíbrio,
simetria/assimetria, contraste, volume, ponto de vista e perspectiva, por
exemplo, além de procedimentos tais como recorte e colagem, justaposição,
sobreposição, assemblages, montagem e
tantos outros mais. Daí que, sempre que possível, procura-se não só apreciar as
obras, mas experimentar composições plásticas em paralelo à composição verbal. Registro
dos encontros, observações do cotidiano, retratos, descrições de estados
internos ou mesmo planejamento de textos costumam ser bons estímulos à escrita
pictórica.
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Exposição de "grudados" - registros/protocolos dos encontros Ateliê de Dramaturgia - FAINC
(Foto: Elaine P. Bombicini) |
Um
dos objetivos desse recurso é a busca de um hibridismo de linguagens, tão
característico da arte contemporânea, desde o princípio da criação. É nesse
aspecto que os Ateliês de Dramaturgia aqui
descritos se diferenciam mais acentuadamente da experiência francesa e dos
demais ateliês de dramaturgia que têm sido propostos atualmente.
Estrutura e procedimentos
Aspira-se
a atender nos Ateliês pessoas interessadas em dramaturgia, qualquer que
seja sua área de atuação ou suas pretensões profissionais. Se o indivíduo já é dramaturgo
pode ampliar suas referências e se ainda não é, pode sentir-se motivado a
prosseguir e se aperfeiçoar. Se atuar em outras áreas do fazer teatral, a
experiência permitirá que ele se beneficie não só da escrita como da passagem
do texto à cena. Caso não pretenda seguir nenhum desses caminhos, pode vir a
tornar-se melhor leitor, melhor espectador e melhor “compreendedor” do teatro
contemporâneo, como sugerido por Jean-Pierre Sarrazac.
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Atrizes, dramaturgas, professores, poetas, designer Ateliê de Dramaturgia - FAINC
(Foto: Adélia Nicolete) |
A
estrutura do Ateliê de Dramaturgia diferencia-se
das oficinas e cursos em geral por uma série de aspectos. Em vez de aula são
realizados encontros ou sessões. No lugar de
um professor, a mediação é feita por um condutor ou coordenador,
encarregado de planejar e
conduzir o projeto como um todo. A função cabe a um dramaturgo
experiente, que não tem a pretensão de ensinar, mas de oferecer condições e
estímulos para que se dê a criação e, a partir dela, a reflexão e o
aprendizado, sem a necessidade de hierarquias.
Em
lugar de alunos, participantes ou
escrevedores, como sugere Sarrazac. Tais denominações sugerem
uma postura ativa, condição básica para que o trabalho se realize. Mais do que
um grupo, um coro de participantes é
formado e cabe a ele, antes mesmo do condutor, a análise dos textos resultantes
dos exercícios, bem como sugestões para que sejam aprimorados ou mesmo
modificados.
Diferente
do coro grego, que se manifesta em uníssono, o coro de um Ateliê
expressa vozes diversas, todas envolvidas, porém no mesmo processo. A
cumplicidade alcançada graças aos desafios em comum permite que mesmo os
iniciantes possam interferir na escrita uns dos outros, o que proporciona a
experiência de criação compartilhada logo numa primeira instância, a da criação
verbal.
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Ateliês de Dramaturgia e Memória - coro de escrevedores Museu Histórico de Mauá - SP
(Foto: Adélia Nicolete) |
Um
mínimo de cinco ou seis escrevedores é suficiente para que se forme um coro e a
escrita possa beneficiar-se das trocas entre os pares. Como número máximo,
sugere-se até quinze participantes: a grande quantidade de pessoas numa turma
pode comprometer o andamento do trabalho, pois resulta em menos tempo
disponível para se compartilhar os escritos e ouvir as considerações do coro.
Quanto
à periodicidade, sugere-se a média de doze encontros, um por semana, e a carga
horária de três horas ou mais, se possível, pois, de modo geral, cada sessão
desenvolve-se em torno de três ações principais. Na primeira parte da sessão,
os escrevedores são estimulados a apreciar coletivamente uma obra de artes
visuais. Mais do que inspiração, ela é a fonte de onde brota uma série de
possibilidades de escrita, pois é a partir dos elementos levantados nesta fase
que dar-se-ão o planejamento e o desenvolvimento dos textos.
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Apreciação de obra Ateliê de Dramaturgia - Turma de pós-graduação - FAINC
(Foto: Adélia Nicolete) |
O
critério de seleção das obras a serem apreciadas é estabelecido pelo condutor
em função do perfil do grupo, das propostas de texto a serem desenvolvidas e do
andamento dos trabalhos. Os
participantes são orientados a observar a obra e anotar as primeiras impressões
e questões suscitadas. Em seguida, é feita a apreciação coletiva, onde mais
aspectos são anotados.
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Obra de Eymard Brandão analisada na abertura do Ateliê de Dramaturgia - Galpão Cine Horto - BH |
Durante
a apreciação de um trabalho não-figurativo, procura-se não estimular a
adivinhação de figuras ocultas ou de supostas narrativas. A apreciação será
conduzida, pois, a aspectos tais como: lembranças suscitadas, impressões,
atmosferas, sensações, bem como associações com cheiro, som, gosto, emoções,
etc. Pode-se propor uma leitura a partir das decisões formais e materiais do
artista: o que as formas transmitem? E as cores? Quais as sensações ligadas a
elas? E as posições em que se encontram na tela? Espera-se que, com a prática,
a apreciação se aprimore e acabe sendo feita quase sem as provocações do
condutor. Pode-se também estudar os procedimentos do artista, visitar seu
ateliê, etc. enfim, são muitos os caminhos possíveis. Todas as impressões e
ideias são anotadas e formam o conjunto de elementos a que o participante irá
recorrer para o planejamento e a escrita de seu texto.
A
apreciação artística já faz parte da criação, não só pelos elementos com que
irá motivar o texto, mas pelo movimento interno gerado em cada um – lembranças,
ideias, associações que estabelecem de modo preliminar uma dinâmica criativa.
Decorre daí a importância das ações previstas serem realizadas numa mesma
sessão. A escrita quando elaborada em outro período, fora do encontro,
desvinculada da apreciação, opera com dados concretos, mas sem o estado
criativo gerado na ação grupal.
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Cada um escreve onde e como preferirAteliê de Dramaturgia
Turma de pós-graduação - FAINC
(Foto: Adélia Nicolete) |
A
partir dos elementos levantados nas apreciações, passamos à fase da escrita. Para
começar, os delimitadores. A forma do texto, o tempo disponível, o tamanho, o
tipo de narrador e, a depender da experiência do grupo, até alguns
complicadores como o lugar em que a ação deve se dar, o número de personagens,
o tom, enfim. Longe de tolherem o processo criativo, os delimitadores costumam
ser libertadores, bastando para isso que se mantenha um clima de desafio, de
jogo.
É
sugerida aos escrevedores uma sequência de ações a ser seguida em quase todos
os textos: rever a obra de arte e o material anotado na apreciação, planejar o
que se quer, selecionar os conteúdos com que se quer trabalhar; escrever,
reler, revisar e finalizar o texto. Isso tudo a fim de se apropriar o máximo
possível da atividade.
A
teoria, a literatura dramática, a técnica, são abordadas a partir da prática da
escrita, suas necessidades e os questionamentos suscitados, sem que haja,
obrigatoriamente, um estudo teórico a priori. O coordenador faz o
“parto” de textos que foram gestados por outrem, livres de modelos e sempre a
partir da prática, estimulando e orientando o participante, desde o princípio,
na busca pela complementação permanente de sua formação. Assim, podem ser lidos
em sala ou recomendados textos não só de literatura dramática, mas de História,
de psicologia e sociologia, de ficção, entre outros, bem como haver apreciação
de filmes e fotografia, de música e dança, a depender do percurso do grupo.
Concluído
o processo de escrita, na terceira parte da sessão ocorre a leitura dos textos
a fim de compartilhá-los com os colegas e obter deles um comentário crítico,
momento em que atua o coro de escrevedores. O contato com a escrita do outro é
um bom exercício de alteridade para o participante, assim como ouvir seu texto
com diferentes entonações, dicções e expressões mostra a ele uma variedade de
abordagens, difíceis de se imaginar no momento da escrita.
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Compartilhamento de intervenção poética em obra de Leonilson Ateliê de Dramaturgia - FAINC (Foto: Elaine P. Bombicini) |
Nesta
altura do processo os colegas podem sugerir alterações, abordagens diferentes,
correções, sempre adotando-se o “e se”: “e se você acentuasse o tom cômico do
texto?”, “e se o final fosse mais aberto?” e assim por diante. O “e se”
relativiza as colocações, tirando o peso tanto do que se fala quanto do modo
com que se é ouvido. Ao
condutor cabe abordar aspectos que não tenham sido levantados durante a análise
coletiva, esclarecendo dúvidas, oferecendo informações ou referências sobre
algum tema, sugerindo leituras.
Os
elementos levantados na análise, submetidos ao livre arbítrio do autor,
auxiliam na reescrita. Contra o cansaço, a frustração, a perda da novidade, o
mito do texto que nasce pronto, etc, é o exame paciente do próprio texto e a
compreensão das análises do coro que fundamentam as versões seguintes.
A
dramaturgia da cena
Ao final de um processo no Ateliê de
Dramaturgia, pelo menos parte do material textual é levado a público para
que se efetive como dramaturgia sob a forma de cena, de leitura ou como
exposição do trabalho em processo.
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Proposição de cena integrada à composição plástica Ateliê de Dramaturgia UDESC |
Não
propomos a escrita de peças teatrais, mas de textos nos mais diferentes formatos
– a que denominamos material textual – , a serem conjugados a outros materiais
e às demais instâncias criativas da cena. É a linguagem teatral e o conceito de
dramaturgia como rapsódia que vão transformar telegramas, cartas, notícias,
depoimentos, relatos, poemas e outros tantos textos em teatro.
Um dos principais objetivos desse
compartilhamento com o público é exercitar a passagem do texto à cena,
aceitando seus desafios formais e caracterizando-o como dramaturgia, o que
permite ao escrevedor verificar os problemas e as virtudes de sua escrita e a
comunicação com o espectador, reconhecendo a satisfação ou insatisfação com os
resultados obtidos. Finalmente, a comunicação do textos permite que a
comunidade, os familiares e os amigos possam participar de algum modo da
experiência ocorrida nos Ateliês.
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Escrevedora em cena
Ateliê de Dramaturgia - Turma de pós-graduação - FAINC
(Foto: Bernardo Abreu) |
Em
termos pedagógicos, trazer o trabalho para o centro do debate e ouvir o que o
público tem a dizer implica em manter uma disponibilidade para o diálogo,
despertada e desenvolvida durante os encontros e que tem como objetivo o
aprimoramento da escrita. Portanto, um terceiro fator de relevância na
comunicação dos materiais é a sua dimensão formativa em direção ao trabalho em
colaboração permanente entre os criadores.
Conclusão
Para
concluir, nossa opção pelo abstracionismo parece ter encaminhado os textos, de
modo mais assertivo, para fora dos limites do drama. Na medida em que se trata,
em primeira instância, do vínculo entre a composição plástica não figurativa e
a escrita, os materiais textuais gerados trouxeram em seu bojo uma configuração
que fugiu, em grande parte, ao padrão dramático.
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Ateliê de Dramaturgia CAC Walmor Chagas - São José dos Campos |
A
experiência com os princípios de criação pictórica puderam ser usados em favor
da fragmentação, do questionamento de um sentido único e determinado, da
colagem e da montagem em lugar de uma linha única de ação, como também da imissão
de gêneros discursivos, da indeterminação dos agentes, do desprendimento em
relação à verossimilhança e aos arranjos espaciotemporais, e assim por diante.
Nessa mesma perspectiva, acredito que o padrão heterogêneo dos elementos
levantados na apreciação, conjugando sensações, emoções, memória, articulações
lógicas e elocuções de origens variadas podem ter predisposto a uma escrita
igualmente desvinculada, por exemplo, de relações causais.
A ambição original de um projeto de democratização da
escrita, baseado na conjunção com as artes visuais e com a cena, que se
mostrasse uma opção aos moldes formais de ensino-aprendizagem de dramaturgia
mostrou-se possível, bem como o diálogo com os novos processos de criação do
espetáculo e com o teatro contemporâneo.
Referências bibliográficas
DANAN, Joseph. Qu'est-ce que la dramaturgie? Arles: Actes Sud, 2010. (Aprendre, 28)
NICOLETE, Adélia. Ateliês de dramaturgia: práticas de escrita
a partir da integração artes visuais-texto-cena. São Paulo, 2013. Tese
(Doutorado)– Escola de Comunicações e Artes,
Universidade de São Paulo.
______. Da cena ao
texto: dramaturgia em processo colaborativo. São
Paulo, 2005. Dissertação (Mestrado) – Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
______. Fazer para aprender: a prática dos
ateliês de escrita dramática em língua francesa. ANAIS do VI Congresso da ABRACE, 2010.
SARRAZAC, Jean-Pierre. A oficina
de escrita dramática. Tradução de C. dos S. Rocha. Educação e realidade, Rio
Grande do Sul, v. 30, n. 2, p. 203-215, jul-dez 2005.
______. (Org.) Léxico do drama moderno e contemporâneo.
Tradução de André Telles. São Paulo
: Cosac e Naify, 2012.
Adélia Nicolete
Comunicação
apresentada no I Colóquio Internacional de Dramaturgia Letra e Ato
UNICAMP -
2016