As dinâmicas coletivas
de criação em teatro e os diferentes sentidos de dramaturgia é o título de um artigo que escrevi para a Revista Pitágoras 500, editada pelo
Instituto de Artes da UNICAMP, cujo volume de número 9 é dedicado a reflexões
sobre coletivos de criação.
Transcrevo logo
abaixo o primeiro tópico. O texto completo e todos os excelentes artigos estão
disponíveis no endereço indicado no final.
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As dinâmicas coletivas em arte têm se mostrado, a partir
dos anos 1950, um potente meio de criação. Muitas delas emergiram no caudal da
contracultura e de seus pressupostos de desierarquização de funções, de
autonomia em relação aos mecanismos consagrados de produção, de subversão à
cultura dominante e seu culto à figura de um autor único que, muitas vezes,
sobrepunha-se à obra.
Há quem considere redundância falar em dinâmicas coletivas
quando se trata de teatro – arte grupal por natureza, a construção da cena já
implicaria em colaboração mútua. Ocorre, porém, que os esquemas convencionais
de produção operam com atribuição específica de funções, que não se
inter-relacionam e costumam obedecer a uma hierarquia. No topo da pirâmide está
o diretor a coordenar atores, iluminadores, cenógrafos, figurinistas, músicos,
cenotécnicos, divulgadores, que respondem às suas concepções de modo paralelo.
É comum que apenas o encenador tenha uma visão geral do trabalho até bem
próximo da estreia, quando todas as áreas são agregadas, constituindo o todo da
encenação. Esse modelo difere substancialmente de práticas como a criação
coletiva ou o processo colaborativo.
A criação coletiva foi um dos primeiros movimentos rumo à
equivalência criativa e à divisão de responsabilidades que confluem para a
construção do espetáculo. No Brasil, ela desenvolveu-se e alcançou proporções
significativas a partir de meados dos anos 1960, mantendo-se por quase duas
décadas como importante procedimento de pesquisa estética e de militância, bem
como de formação e fortalecimento do teatro de grupo. Na década de 1990,
ganharam força no país os coletivos de artes visuais, música e cinema. Eles
apresentaram uma saída para a viabilização, divulgação e comercialização de
trabalhos fora da tirania do mercado. Nesse contexto, despontou o processo
colaborativo que, desde então, tem sido utilizado por um número cada vez maior
de grupos teatrais.
Herdeira de alguns princípios da criação coletiva, a
dinâmica colaborativa pressupõe que as hierarquias sejam substituídas pelas
responsabilidades criativas, não havendo predomínio do autor, do diretor ou dos
intérpretes. Há proposições a serem feitas por todos os envolvidos e funções a
serem desempenhadas, sempre com interferência mútua entre os criadores, mas com
decisões e assinatura final de cada área, sob a coordenação geral da direção
(ABREU, 2003). A dramaturgia desenvolve-se no decorrer do processo, com base
nas pesquisas, na improvisação dos atores, no ir e vir das proposições,
experimentações e avaliações de cenas (SILVA, 2011). O grupo pode abrir os
ensaios ao público e ter também sua colaboração, na forma de análises, críticas
e sugestões. Novas etapas de criação sucedem-se até que chegue o momento das
finalizações de cada área e da busca de uma identidade geral do trabalho.
Dificilmente um espetáculo nesses moldes pode se considerar finalizado, pois é
permanentemente revisto em função da relação com o espectador, da rotatividade
dos intérpretes ou dos diferentes espaços de exibição (NICOLETE, 2005).
Constata-se que, assim como na criação coletiva, a
dramaturgia baseada em múltiplas proposições, tende a uma conformação
igualmente polifônica. Diferente de um autor individual, no controle do texto
desde as primeiras ideias até a conformação final, o dramaturgo em processo
avança no mesmo passo da cena, a administrar criativamente as sugestões. Seu
objetivo não é uniformizar as colaborações, nem reduzi-las a um denominador
comum, ao contrário, é compor um trabalho com os diferentes materiais –
situações improvisadas, textos sugeridos, ações, gestos, vozes, etc. –,
conservando, muitas vezes, sua discrepância. Todos os demais criadores, porém,
ao sugerir materiais com vistas à composição dramatúrgica e cênica, desempenham
de alguma forma a função dramaturgia.
Decorre daí a dificuldade de se pretender uma dramaturgia
textual e, consequentemente, uma encenação, semelhantes ao “organismo”
perfeitamente estruturado da forma dramática convencional. É praticamente
impossível encaixar na conformação canônica as contribuições de origens, aspectos
e funções tão variados. Nesses casos, é necessário que o dramaturgo resista à
tentação de operar com os estímulos da cena do mesmo modo com que opera uma
dramaturgia particular, que resista a bloquear as leituras que se fazem de uma
proposta nova por utilizar velhas lentes. Daí a importância de se discutir um
pouco mais alguns sentidos abarcados pelo termo dramaturgia no teatro
contemporâneo e verificar se contribuem para um alargamento de referências
capaz de facilitar o trabalho dramatúrgico e sua leitura, seja por parte dos
criadores, seja dos espectadores. É a isso que nos propomos com esse artigo.
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Adélia Nicolete