segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Dona Bem, guardiã da memória - Parte I: prendas domésticas e filosóficas



Placa à entrada do museu domiciliar de Vovò Bem.
É só agendar, chegar e bater.
(Foto: Adélia Nicolete)

Conservo objetos antigos em minha casa. São lembranças de avós, tias, de meus pais, objetos afetivos que, ao serem olhados ou tocados lembram minhas origens, sinalizam quem sou através daqueles e daquelas que me antecederam. Tenho primos que montaram uma espécie de museu em sua propriedade na mineira Itajubá. Artigos os mais diversos, estão ali para mostrar aos familiares e amigos como eram os tempos antes do celular, do computador, das modernidades todas. Penso que muitos de nós mantêm sua pequena “coleção de memórias”, mas juro que não conheço uma pessoa sequer como Vovó Bem, que fez do quintal de sua casa um museu aberto à comunidade.


De tanto ser chamada de “bem” pelo marido, dona Maria Piedade ficou conhecida em Poconé como Dona Bem. Os anos passaram, os filhos cresceram, estudaram, casaram-se e deram-lhe netos que, a partir de então, nomearam-na Vovó Bem.

(foto: Adélia Nicolete)


Maria Piedade casou-se aos 17 anos, em 1955. Na época trabalhava como balconista em uma loja da praça, mas antes disso já estava no magistério.


_ Aos 15 anos comecei a ajudar uma professora no Colégio Caetano e logo fui nomeada – naquele tempo não era preciso ser formada para dar aula. Da cidade fui transferida para um sítio bem longe e lá fiquei hospedada na casa de um conhecido, que depois virou meu compadre e tudo. Aos 16 anos pedi transferência para cidade e comecei a trabalhar na loja, de modo que quando eu me casei eu já trabalhava no balcão e ainda era professora.

Curiosa de enxovais, pergunto a respeito do seu. 

_ Aqui não se usa falar enxoval, mas aprontação. Aprontação de casamento, aprontação de recém-nascido. A moça leva de tudo que precisa. Eu levei. Levei toalha de banho, camisola bonita enfeitada de renda ou então bordada à mão, anágua, penhoar. As pessoas que tinham mais dinheiro mandavam fazer redes lavradas – eu mesma tive uma tia que lavrava a rede no tear: ela tecia a rede e ia tecendo as iniciais dos noivos junto. Estudei em colégio de freira, aprendi a bordar, a fazer tricô, essas coisas, mas como eu trabalhava fora quando me casei e não tinha tempo de fazer nada, o meu enxoval foi feito pela minha mãe, pela minha tia. Muita gente ajudou.


Baús de enxoval expostos do museu
(Foto: Adélia Nicolete)


Vovó Bem ainda se lembra das amigas e de mulheres de sua família a fazer aprontações de casamento.

_ Me lembro da minha irmã, que sabe abordar muito bem esses bordados bonitos de marcar lençóis – ela inclusive ensinava a moçada a bordar em casa.  Cada moça tinha seu baú. Aquele baú mais antigo que a gente viu ali no museu, eu encontrei jogado num quintal! Me avisaram e eu fui lá buscar. Mas aqui em Poconé ainda há bastante daqueles lá, bonitos, conservados. Eles passam os baús de mães para filhas e hoje servem de enfeite ou de uso mesmo.


Toalha bordada pela irmã de Vovó Bem
(Foto: Adélia Nicolete)

Ela conta que sua avó e suas tias colhiam e fiavam o algodão para fazer lindos tapetes. Além disso, cuidavam da casa, costuravam e iam pra roça, pois moravam num sítio.

_ O tempo era outro - filosofa Vovó Bem sem o mínimo pesar. Agora existe muita coisa para distrair. O celular, por exemplo. Tenho aqui uma netinha pequena de dois anos que fica sentada na cadeira – é a coisa mais engraçada – desfiando o cabelo e olhando o celular. Dão coisa pra ela assistir e passa o dia se deixar! Outra coisa é a casa: antigamente a casa você limpava uma vez e pronto. Hoje ela é feita de um jeito diferente, o piso, as janelas, um tantão de móveis e você tem que limpar muito mais vezes, tem de limpar toda hora e ajeitar, isso toma tempo. Mudou também o modo de se fazer comida: hoje um quer uma coisa, outro quer outra! De primeiro, a mãe ou avó diziam: "hoje tem arroz e feijão" e ninguém queria outra coisa, ninguém podia querer outra coisa – era aquilo e pronto! "Se não quer, não come". Esse negócio mudou. Hoje em dia é assim (aqui em casa, pelo menos, é muito assim): a pessoa vê a comida e diz “Ah, é isso? Então eu não quero...” Aí eu digo “Tá bom, deixa, eu vou fritar um ovo para você...” E o tempo é outro também porque a gente está fazendo uma coisa e pensando em outra. Eu estou fazendo uma coisa e penso: daqui a pouco eu tenho que terminar tal coisa, preciso ir lá em tal lugar. A nossa cabeça se divide e daí não concentra no que faz, o tempo passa e a gente parece não fez nada. 




Uma das várias máquinas de costura expostas
(Foto: Adélia Nicolete)
Vovó Bem conta que sua avó colhia o algodão, descaroçava,
fiava e tecia as roupas da família
(Foto: Adélia Nicolete)

Fusos artesanais para fiação de algodão
(Foto: Adélia Nicolete)


Por falar em uso do tempo, Dona Bem ocupa-se de muitas tarefas: cuida da casa e do belo jardim que disputa espaço com o museu; da conservação do acervo e da recepção dos visitantes, além da fabricação de doces e licores com que mantém o espaço - como o ingresso é gratuito, a proprietária recebe doações voluntárias e vende seus produtos.

Orquídeas dão as boas vindas
(Foto: Adélia Nicolete)



Na próxima postagem, saberemos mais sobre o acervo histórico d'O Cantinho da Vovó Bem, que consta do Cadastro Nacional de Museus. Lá podemos encontrar endereço e telefone para agendamento.

Selfie com Dona Bem e Renato em seu jardim

A visita foi realidada na tarde do dia 11 de julho de 2018. Agradeço aos poconeanos Josenira e Pollyana pela indicação e Renato pela companhia.


Adélia Nicolete

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Ateliê de Dramaturgia - Trupé de Teatro


Esta não é a primeira postagem sobre a Trupé de Teatro aqui no blog e, tenho certeza, não será a última. Um pouco atrasada no tempo do relógio, publico hoje um encontro acontecido em outubro do ano passado, quando o coletivo promovia as oficinas temáticas durante a Mostra de Artes “Do bolso à praça”, uma das ações do Proac “Território das Artes”, prêmio recebido em 2016.



O Núcleo de Dramaturgia coordenado por Débora Brenga trabalhara reflexões e textos a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o grupo desafiou-me a conduzir um Ateliê intitulado “Eu, Tu, Ele - Nós, Vós, Eles”. O objetivo principal era investigar a narrativa em primeira pessoa numa abordagem entre o real e o ficcional. Na fria sorocabana, incandescemos.

Depois de refletir um bocado acerca do título, decidi abordar um tema premente que também contemplava a questão dos direitos humanos: o trânsito de refugiados. Os noticiários e o próprio cotidiano se encarregavam de nos colocar frente à frente com o assunto e o filme “Era o Hotel Cambridge”, lançado há pouco no Brasil, valia-se do movimento dos sem-teto para trazer à tela o drama de homens e mulheres a procurar refúgio em nosso país. Daí a buscar referência nas fotografias de Sebastião Salgado foi um passo.


Foto: Sebastião Salgado

No livro Êxodos – registro fotojornalístico de movimentos populacionais mundo afora – encontrei a imagem que serviria de disparador para a criação dos textos. A princípio ela foi tão somente exibida e apreciada pelo coletivo, não divulguei o lugar ou a situação em que foi flagrada. Minha intenção era que as sensações e ideias brotassem da própria foto e não de informações factuais a seu respeito.

Durante a apreciação levantamos uma serie de elementos presentes e tratamos de imaginar outro tanto. Estabelecemos relações entre os retratados, criamos situações possíveis, enfim, exploramos a cena que se nos apresentava pelo olhar de Sebastião Salgado.


A próxima etapa foi a escolha de uma determinada pessoa da foto para que narrasse aquele momento vivido. A tarefa de cada participante do Ateliê seria, então, compor uma narrativa a partir do estabelecimento de um/a enunciador, de suas motivações, de seu ponto de vista, de suas expectativas e assim por diante. Em outras palavras, a personagem compartilharia em primeira pessoa a experiência daquele momento, mas num tempo futuro, trajetória já feita.

Carlos Doles no escritório da Trupé

Josias Padilha preferiu escrever em pé, no bar do teatro

Mariana Bizzotto compõe sua narrativa à vontade
no piso do espaço cênico




















Dado o tempo para as criações individuais, foram feitas a leitura e a análise dos textos. É sempre surpreendente observar a riqueza desse tipo de trabalho – a variação de abordagens, de tons e mesmo de formatos. Uma das escrevedoras operou de modo tão precioso o ritmo e as imagens, que parece ter composto uma canção. Bob Dylan, pensei! E sugeri a ela que, professora de inglês, fizesse a versão. 

Tivemos, ao final, dez narrativas de travessia a dialogar com a foto de Sebastião Salgado que, agora sim, pode ser revelada:



***

Agradeço ao grupo pelo convite e mais: pelo privilégio de vivermos teatro juntos durante todo esse tempo. 

E como o blog é meu e quem manda aqui sou eu, vou dizer e pronto: amo vocês muito mais que coxinha da Padaria Real!

Adélia Nicolete