quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Deborah Berger e as artes do fio


Pouco sabemos a respeito de Deborah Berger. Apesar da beleza de seu legado, ela foi uma artista que se manteve à margem da sociedade. Nascida em Nova Jersey (EUA) em 1956, logo cedo foi diagnosticada como autista. Frequentou escolas especiais e chegou a se formar no ensino médio, mas sua vida foi dedicada às artes-manuais.

Deborah aprendeu a costurar quando menina e perto dos dez anos fazia as próprias roupas, os brinquedos e criava jogos e objetos escultóricos utilizando-se de fios. 


Deborah Berger - Sem título (Hobby Horse) - Detalhe Crochê
Acervo do American Visionary Art Museum


Deborah Berger - Sem título (Hobby Horse) - Crochê
Acervo do American Visionary Art Museum

Quando adulta, com dificuldade para ter um emprego regular, a artista posava como modelo para desenhistas e contava com a ajuda de familiares, o que permitiu que nos últimos cinco anos de sua vida ela morasse sozinha em um apartamento em Nova Orleans. Foi lá que produziu sua extensa obra, descoberta apenas em 2005, quando faleceu.


Deboras Berger - Sem título (Túnica e máscara) - Técnica mistaAcervo do American Visionary Art Museum



Deboras Berger - Sem título (Máscara) -  CrochêAcervo do American Visionary Art Museum

Ao entrar em seu apartamento, a família deparou-se com uma infinidade de peças e, por desconhecer o valor estético ou atribuir sua produção à “doença” de Deborah, tratou de descartá-las. Eram túnicas, vestidos, saias, máscaras, calçados, adornos de cabeça e outros objetos em tricô e crochê. Conta-se que um membro do Conselho de Artes de Nova Orleans descobriu os trabalhos em uma pilha de lixo e resgatou-os. Eles foram integrados ao acervo do Museu de Artes de Nova Orleans que, após o furacão Katrina, cuidou de transferi-los para a Coleção Permanente do American Visionary Art Museum.


Deborah Berger - Sem título (Saia e adorno de cabeça) - Técnica MistaAcervo do American Visionary Art Museum

Deborah Berger - Sem título (Adorno de cabeça) - TricôAcervo do American Visionary Art Museum



Deborah Berger - Sem título (máscara) - TricôAcervo do American Visionary Art Museum

A coleção  contempla mais de cem itens. Além dos já descritos há também mantas, tapetes, cestos e peças em grandes dimensões. A maioria dos trabalhos são peças de vestuário, muitas delas de inspiração africana, além de bolsas; chapéus e boinas; xales e echarpes; anéis, brincos e pulseiras - tudo a partir do fio.


Adélia Nicolete

ROUSSEAU, Valérie. Deborah Berger. In: AMERICAN FOLK ART MUSEUM. When the curtain never comes down: performance art and the alter ego.  New York: American Folk Art Museum, 2015. p. 34-35

American Visionary Art Museum:




domingo, 3 de dezembro de 2017

Relicário (3) - Angels in America - teatro brasileiro

Anos 1980. No Brasil e no mundo a aids fazia milhares de vítimas. Associada a  princípio  aos homossexuais, recebeu a alcunha de "peste gay" e só mais tarde verificou-se que o contágio poderia se dar por meios diversos e atingir quaisquer pessoas expostas a ele, fosse pelo consumo de drogas ou mesmo pela saliva, por exemplo. Enquanto isso e antes que fossem desenvolvidas terapias eficazes, a doença assombrava a todos, seja pela rapidez com que as vítimas sucumbiam, seja pelo processo doloroso e fisicamente degradante a que estavam submetidas.

Capa do programa da peça brasileira

Admitir o contágio significava submeter-se a julgamentos morais ou, em grande parte dos casos, assumir uma orientação sexual até então secreta. Dado que a causa mortis não é a aids, mas sim as consequências causadas por ela, muitas famílias escondiam seus doentes e alegavam terem falecido de algum outro problema. Foram anos de medo e assombro.

O abalo causado em toda uma geração produziu, no mínimo, uma grande obra teatral: a peça Angels in America, do norte-americano Tony Kushner, encenada no início da década seguinte. 


Sucesso absoluto nos Estados Unidos, o espetáculo em duas partes recebeu diversos prêmios e foi transformado em minissérie para televisão e também em ópera. No Brasil, a montagem da primeira parte se deu ainda nos anos 1990, sob a direção de Iacov Hillel.



O programa aqui apresentado informa sobre a peça, fala a respeito do dramaturgo e dá voz a ele, além de esclarecer, em páginas mais à frente, sobre alguns personagens e temas abordados na trama. Trata-se de um documento que pode interessar a quem se dedica à escrita para teatro: quais os motivadores, as figuras e os fatos que estimularam a criação.






A seguir, temos algumas imagens do espetáculo brasileiro, seguidos dos créditos da produção e de um breve currículo do elenco e de parte da equipe. Alguns dos atores vieram a ter grande destaque no teatro, no cinema e na televisão nos anos seguintes. É digo de nota sabê-los envolvidos com a encenação de Angels in America.







Como se pode verificar nas páginas finais do programa, em épocas anteriores aos editais de financiamento às artes, os apoiadores eram essenciais à produção de um espetáculo. garantiam desde a alimentação da equipe até o fornecimento de matéria-prima e mobiliário para a cenografia, por exemplo, ou o figurino, o transporte e a divulgação.





Assisti a Angels in America - Parte I  no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, no dia 19 de novembro de 1995. 


Adélia Nicolete 


Obs: Para uma melhor visualização das imagens, basta clicar sobre elas.

A dissertação de mestrado de Marcio A. da S. de Deus intitulada "Análise dos recursos épicos em Angels in America, de Tony Kushner", defendida em 2014 na FFLCH - USP pode ser acessada para download aqui.

Matérias e críticas do espetáculo podem ser acessadas em:

Ilustrada 17 julho 1995

Ilustrada 5 maio 1995

Ilustrada 5 maio 1995 - parte 2

Ilustrada 27 junho 1995




sábado, 18 de novembro de 2017

Relicário (2) - Grupo de Arte Ponkã


Na seção Relicário de hoje, alguns programas de espetáculos do Grupo de Arte Ponkã, de São Paulo. 

Formado nos anos 1980 por artistas descendentes de imigrantes japoneses e ocidentais, o Ponkã notabilizou-se, a princípio, por exercícios cênicos próximos da performance e das possibilidades de conexão entre as culturas de origem. O próprio nome do grupo - fruto híbrido de laranja e mexerica - denotava a "esquizofrenia e a dificuldade de harmonizar conceitos ocidentais e orientais de ética, filosofia e comportamento". *

Ao longo de quase uma década de atividades, o coletivo alternou espetáculos criados coletivamente com outros de dramaturgia autoral - caso de O pássaro do poente, escrito por Carlos Alberto Soffredini a partir de uma lenda japonesa; caso também de Quioguen, adaptação de peças curtas orientais. Muitos artistas passaram pelo grupo, que encerrou a carreira em 1991, depois de produzir cerca de seis espetáculos.

Vale lembrar que a curta duração de um conjunto tão promissor foi causada, em grande parte, pela epidemia de aids que marcou a década de 1980 no Brasil e no mundo. A classe artística ficou desfalcada em todos os setores e o Ponkã chegou a perder pelo menos três de seus componentes originais.

Ao lembrarmos de algumas criações do grupo, é possível identificar propostas inovadoras ainda hoje.

***

Abaixo, três programas, compartilhados na íntegra a fim de visualizarmos também o contexto de cada produção. 
No documento 2 atentar para o Manifesto Ponkã, que inaugurou oficialmente o grupo.

Para ampliar, clique sobre a imagem.



1 - Folheto do Centro Cultural São Paulo de março de 1983, onde consta o anúncio do primeiro espetáculo do grupo: "Tempestade em copo d'água".

Interessa notar também as aulas de dança com Marilena Ansaldi e uma apresentação de mímica da então iniciante Denise Stoklos.










2 - Programa do segundo espetáculo do grupo - "Aponkãlipse" - publicado pelo Centro Cultural São Paulo em 1984.

Atentar para o Manifesto Ponkã, escrito por Ubiratã Tokugawa (Paulo Yutaka) no verso do folheto.




3 - Programa do espetáculo "Pássaro do Poente", dramaturgia de Carlos Alberto Soffredini, cuja estreia deu-se no Teatro Ruth Escobar em 25 de março de 1987.






* Mais informações sobre o grupo, consultar o site Itaú Cultural.


Adélia Nicolete


terça-feira, 14 de novembro de 2017

Artes-Manuais: narrativas e memórias afetivas


(Foto: Mariana Vilela)


Na postagem do dia 15 de agosto publiquei o prefácio do livro Artes-manuais: narrativas e memórias afetivas, à época no prelo. Hoje é dia de mostrá-lo e falar um pouco sobre o processo de criação.

Tudo começou no curso de Pós-Graduação em Artes-Manuais para a Educação, coordenado pela Prof. Dra. Nina Veiga e realizado n'A Casa Tombada, em São Paulo. 
Mentira! A história desse livro desconhece o seu começo!

Digamos que um ponto inicial identificável foi... um ponto. Aquele primeiro. Ponto de um bordado ou de uma costura, de um tricô ou de um crochê; de uma pedra, ponto na rocha.


Elis mostra para Érika a peça afetiva que trouxe
(Foto: Adélia Nicolete)















Rosana observa a manualidade trazida por Karina
enquanto ouve sua narrativa
(Foto: Adélia Nicolete)


Renata e Eliana trocam suas narrativas
(Foto: Adélia Nicolete)

















Cada participante escolheu em seus guardados uma dentre tantas peças confeccionadas à mão e a levou para expor ao grupo. O que tem de especial um jogo das cinco marias? Por que ainda se guarda uma caixinha de fósforos encapada com tecido? Um colarzinho de fuxicos , o que tem de mais? O que nos faz guardar uma blusa ou uma touca de tricô fora de uso? A resposta é uma só: as histórias que carregam consigo. O afeto que envolve o objeto e nos re-liga a quem o fez, a quem o ofertou e a nós mesmos. As histórias foram compartilhadas em duplas, trocadas, fio a puxar fio.


Luciana e Camila expõem e narram suas peças afetivas
(Foto: Adélia Nicolete)

Vera e Fabiana em troca de narrativas
(Foto: Adélia Nicolete)





Haline e Dayse apresentam suas memórias
(Foto: Adélia Nicolete)







Quem fez essa peça? Quando você a recebeu ou confeccionou? Qual era a estação do ano? Quais os pontos ou qual a técnica envolvidos? Fale sobre a materialidade do objeto. Qual a sensação ao lembrar, que gosto tem essa lembrança? Onde você guarda esse tesouro? 

Essas e outras perguntas, feitas ao sabor da curiosidade, puxaram mais e mais recordações a fim de enriquecer os relatos.


Gabriela e Simone em narrativas afetivas
(Foto: Adélia Nicolete)

[
Débora e Eliana se divertem e se emocionam
(Foto: Adélia Nicolete)













Mika e Suzana relembram
(Foto: Adélia Nicolete)














A etapa seguinte foi elaborar individualmente o texto ouvido. Tecer por escrito a narrativa ouvida utilizando os fios narrados, mas também aqueles trazidos dentro de si ao ouvir as histórias: emoções, comparações, empatia, memórias próprias: outras texturas e cores a compor com os relatos. 

O quanto tem a escrita de arte-manual? Quantas escritas a habitar uma peça feita à mão? De que maneira técnicas e procedimentos, características singulares de cada objeto podem tramar com o verbo e trançar metáforas? Ensinamentos e expressões de artesãs - "linha de preguiçosa", "avesso perfeito", "lavar as mãos antes de começar o trabalho" - poderiam dar colorido à trama. De que mais nos lembramos?

Esses e outros desafios foram feitos às participantes como forma de estimular a criação.



(Foto: Adélia Nicolete)


Cada texto escrito foi narrado à turma e demos início ao processo de reescrita e revisão para a publicação, a cargo de Luciana e Érika.

A equipe encarregada do projeto gráfico e da diagramação tratou de tecer ainda outra camada de sentido aos textos criados.



Estúdio montado em casa de Sofia para a produção do livro
(Foto: Karina Nakahara)



Karina, Sofia, Suzana e Vinícius formaram a equipe
(Foto: Karina Nakahara)


Cada prancha criada foi fotografada, tratada e impressa.
(Foto: Mariana Vilela)




(Foto: Divulgação)


(Foto: Divulgação)


Sofia, do projeto gráfico e da diagramação
(Foto: Lara Arce)



Vinícius, da equipe
(Foto: Lara Arce)


















Os textos de apresentação e de encerramento foram criados e o material enviado para a impressão. Karla encarregou-se da parte comercial e o lançamento ocorreu no dia 11 de novembro, n'A Casa Tombada.



Lara e Haline na noite de lançamento
(Foto: arquivo das autoras)




Cristina autografa ao lado de Karla, Vanessa e Renata
(Foto: arquivo das autoras)


Daniela autografa ao lado de Paula
(Foto: arquivo das autoras)







Eliana autografa junto a Karla
(Foto: arquivo das autoras)


Vera autografa livro para convidado
(Foto: arquivo das autoras)


















O lançamento e a noite de autógrafos marcam o final do processo? O final se dá no contato com o leitor? E quando novos livros são produzidos a partir desse estímulo, são eles o encerramento? Outro aspecto a se pensar: a obra foi assumida por todas - desde os textos até a produção e a comercialiação. O quanto esse exercício capacitou o grupo? O quanto comprovou que é possível criar e publicar de maneira autônoma, estimulando novas investidas? Desdobramentos.


Nina Veiga lê um trecho do livro, ladeada por Haline
(Foto: Carlos Vinícius)

No centro, Giuliano Tierno, Coordenador Geral d'A Casa Tombada
e também coordenador da Pós-Graduação
em Artes-Manuais para a Educação
(Foto: Carlos Vinícius)

Quando se fala em processo, coisa impossível é identificar começo e final. Essa postagem, por exemplo, é um desdobramento da atividade. Os vídeos abaixo também - eles registram em parte a noite de lançamento e foram feitos por Nina Veiga, com quem compartilho a organização da publicação.









Parabéns a toda a turma pelo trabalho e por essa resultante tão bonita - agradável aos olhos, às mãos e ao pensamento! Parabéns a A Casa Tombada por iniciativas tão potentes! 

Parabéns e obrigada, Nina Veiga, por esses e tantos outros Encontros!

Que venham outros textos mais - tecidos de memórias e afetos!


Adélia Nicolete


Aqui o site d'A Casa Tombada.

Para aquisição do livro, deixar mensagem inbox na página d'A Casa Tombada no facebook.