Arthur Bispo do Rosário veste uma de suas criações (Fonte: internet) |
Ao dar continuidade às propostas de escrita a partir do
contato com as artes plásticas, o terceiro encontro do Ateliê de Dramaturgia na
UDESC foi direcionado à temática do descarte. Para tanto, nos valemos da
apreciação de alguns artistas performers
e também de peças teatrais cujos procedimentos de criação assemelham-se ao das
linguagens visuais no sentido de operar com materialidades de origens diversas.
Uma das características mais marcantes da pós-modernidade é
a exacerbação do consumo em todos os níveis. Decorre daí um grande volume de
material descartado e, em nível filosófico e existencial, a tentativa de lidar
com o provisório e o superficial, com o que é passageiro, frágil e de curta validade.
O ser humano, em busca permanente de sentido para si e para o que está ao seu
redor, debate-se na tentativa de lidar com a sucata, com o dejeto, o resíduo, a
sobra, o resto.
Dessas tentativas resultam trabalhos como os do
norte-americano RockNRoll, do brasileiro Raimundo Borges Falcão, do japonês
Eijiró Miyama – todos já contemplados neste blog – e de Arthur Bispo do Rosário.
Eijiró Miyama vestido com uma de suas criações (Fonte: internet) |
Tais artistas, como tantos outros a lidar com o descarte,
partem de um impulso interno de organização e criação, impulso esse que
determina o tipo de material a ser colecionado, bem como seu direcionamento a
certa resultante. O processo é semelhante na maioria dos casos apreciados e
percorre busca, identificação e coleta, seguidas de seleção, composição e
formalização.
A técnica compositiva vale-se de seriação, sobreposição e
repetição, podendo ocorrer também a justaposição e a fragmentação dos materiais
selecionados. Costura, bordado e colagem são procedimentos comuns aos artistas escolhidos
para o encontro e, não bastasse a criação dos objetos, eles assumem-se também como
performers de sua obra.
Casaco criado pelo artista RockNRoll (Coleção Lisa Spindler) |
No que
tange à dramaturgia teatral, analisamos trechos de peças de padrões não mais
dramáticos, compostas via intertextualidade, fragmentação, justaposição de
imagens, listagem – num paralelo com as obras de arte apreciadas.
Um dos textos escolhidos para leitura e análise foi “X-WRITE”, de Ana Luísa Santos,
dramaturga e performer mineira. O
trecho inicial dá uma ideia das estratégias compositivas da autora, que segue
na mesma proposta até o final da peça:
EU SOU DE
AÇÚCAR
EU QUERIA
FAZER UM DIÁLOGO ATÉ DERRETER
MAMÃE PASSOU
STÉVIA EM MIM
PAPAI NÃO
FALA SOBRE ISSO
VOCÊ SÓ DUBLA
IGUALZINHO
COM A GENTE
ACHEI MASSA
DO PERFIL_
A CASA DELE É
TODA TOSCA_
NÃO TEM NADA
DE FEMININO_
ATÉ DÁ MAIS
CAMADAS_
É UMA COISA
ESTEREOTIPADA MESMO
CRISE SOCIAL_
CRISE SEXUAL_
CÉU SOBRE OS
OMBROS_
OLHAR PELA
FECHADURA
UMA TRAVESTI
QUE ESCREVE_
FAZ PROGRAMA
E FAZ MESTRADO
COMO A GENTE
É PRECONCEITUOSO
É PORQUE EU
NÃO ASSISTO
VIAGEM
SOLITÁRIA_
LUTA CONTRA O
CORPO
CONFLITOS
NORMAIS DO SER HUMANO
-
Ana
Luísa Santos vale-se da colagem como técnica principal. Segundo ela, depois de
criados e/ou coletados os fragmentos, foram testadas diversas disposições. Chegou-se
a utilizar literalmente do recorte em papel de cada um dos itens da lista a fim
de experimentar as localizações em nível rítmico, gráfico e temático, por
exemplo, o que sugere novas possibilidades de arranjo. Em outras palavras,
trata-se de um texto-jogo de infinitas possibilidades.
De
certo modo, tais possibilidades ganham quase uma progressão geométrica, na
medida em o público participe da elocução e/ou da leitura do texto, o que
ocorreu em duas apresentações propostas pela dramaturga-performer. Na primeira, o texto foi distribuído a leitores
específicos, que tinham os pés mergulhados em bacias com água, e páginas igualmente distribuídas aos espectadores, que puderam não só acompanhar a
enunciação feita por outrem, como também ler em voz alta quando lhes
aprouvesse. Tal estratégia foi utilizada quando de nossa leitura no Ateliê de
Dramaturgia na UDESC, o que propiciou protagonismos e momentos corais, a
propiciar sentidos diversos aos materiais propostos por Ana Luísa.
A
segunda encenação feita pela dramaturga contou com um telão onde o texto foi
projetado de modo espelhado e outro em que se podia ver o rosto da atriz em
tempo real. O público acompanhava a peça pelo telão, enquanto a performer, ao microfone, lia em um teleprompter, mais uma vez com os pés submersos. Comandado por um parceiro “de jogo”, o teleprompter exibia o texto ora num
ritmo normal, ora acelerado, ora pausado, obrigando a intérprete a alterar voz,
corpo e estados internos.
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Sob certo ponto de vista, “X-WRITE” pode ser considerado um texto polifônico na medida em que congrega vozes perceptivelmente diferenciadas. Encontra-se ali a fala das ruas e da sala de estar; a conversa de comadres e o discurso publicitário; a fofoca, a manchete, postagens e comentários das redes sociais; o verso poético e contemplativo, o grito, a angústia. Podem-se ouvir os manifestos das ruas, o noticiário, as reflexões filosóficas e sociológicas, de um sem número de fontes.
Ana
Luísa Santos é observadora atenta. Coleciona o que seus olhos e seus ouvidos
consideram legenda do mundo contemporâneo e, a partir do material coletado – verdadeiros
descartes – cria dramaturgia e cena, na maioria das vezes, com a colaboração do
público.
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Logo após a análise de alguns trechos de dramaturgia, os participantes do Ateliê foram convidados a relacionar "materiais" descartáveis, ideias e conceitos fora de uso, termos já sucateados ou esvaziados de seu sentido e, a partir da seleção de alguns deles, criar um material textual com base nas estratégias compositivas estudadas anteriormente.
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Logo após a análise de alguns trechos de dramaturgia, os participantes do Ateliê foram convidados a relacionar "materiais" descartáveis, ideias e conceitos fora de uso, termos já sucateados ou esvaziados de seu sentido e, a partir da seleção de alguns deles, criar um material textual com base nas estratégias compositivas estudadas anteriormente.
Adélia
Nicolete
* Sobre esses artistas e a dramaturgia do descarte, consultar as postagens sobre
Raimundo Borges Falcão
Rock'N'Roll
Eijiró Miyama
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