quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Manual de Sobrevivência para Dramaturgos Otimistas - 2. Aliciamento


Paulo Ricardo Berton - Dramaturgo e Professor da UFSC
Idealizador e curador do SBEDR
(Foto: Galeria do I SBEDR)


A imagem do dramaturgo como alguém do sexo masculino, isolado em seu escritório diante de um teclado e rodeado por livros, senhor da criação de um texto por ele imaginado e organizado do princípio ao fim é praticamente puro exercício de ficção.

Cada vez mais as mulheres ocupam-se da escrita dramática e a ideia de isolamento completo, embora não totalmente abolida, cede lugar à permeabilidade das relações reais e virtuais, à interferência da tecnologia e seus acessos, do vai-vem cena-texto-cena. Dramaturgo e dramaturga vêm-se, desde o início do processo, em constante estado de negociação com intérpretes, com a direção, com demais criadores e criadoras e até com o público. Todo esse contingente, por sua vez, coloca-se em “estado de dramaturgia”, como sugere Bernard Dort, ou seja, exerce por um período a “função dramaturgia” na medida em que elabora ações que visem ao estabelecimento de um diálogo, de uma comunicação. *

Aquele quadro sofreu uma significativa transformação: autoras e autores não se encontram mais no vértice da criação. No vórtice é que se posicionam agora. No equilíbrio precário das dinâmicas compartilhadas, na polifonia criativa, numa horizontalidade que, observada ao microscópio, é gráfico de eletrocardiograma.

Camila Bauer - Diretora, Pesquisadora e Professora da UFRGS
Curadora do SBEDR
(Foto: Galeria do I SBEDR)
















Todo esse introito para justificar, mais uma vez, a importância de eventos como o Seminário Brasileiro de Escrita Dramática – Reflexão e Prática, em sua segunda edição esse ano. Durante cinco dias nós, dramaturgas e dramaturgos, pesquisadoras e pesquisadores, professores e professoras, estudantes de escrita dramática, editores, pudemos conhecer nossos pares e dialogar com eles nas diversas mesas e discussões, conviver, comungar, enfim, o ofício.

Manoel Candeias - Dramaturgo, Pesquisador e
Professor da Faculdade Célia Helena

Curador do SBEDR
(Foto: Galeria do I SBEDR)























Ainda somos poucos. Pouco se sabe de nós. 

Quem sabe o que é dramaturgia e para quê “ela serve”? Mesmo dentre os que fazem teatro, há uma ideia clara do que é dramaturgia, de quais as funções de um dramaturgo?  Num país como o nosso, com um grande número de analfabetos funcionais, ter acesso a vocábulos como esse (e a seus significados) é de um requinte extremo.

Mas o que dizer do poder público? Fartos e “diplomados”, quantos de nossos representantes, se colocados diante de um dramaturgo saberão o que ele faz? Tanto que as pastas municipais na área da cultura, quando existem, servem como moeda de troca dos acordos eleitorais, geridas por profissionais de outros setores. As verbas para educação e cultura, em todos os âmbitos, são as primeiras a serem racionadas – vejamos a Proposta de Emenda Constitucional nº 55, recém aprovada, cujo apelido de “PEC do Fim do Mundo” dá bem o tom trevoso que nos aguarda. E para coroar tivemos a extinção do próprio Ministério da Cultura em 2016, reintegrado tão somente por força de protestos e ocupações.

Ocupação da Funarte em São Paulo
(Foto: Mauricio Pisane / FramePhoto / Estadão Conteúdo)



No estado de São Paulo diversas Oficinas Culturais fora do centro fecharam as portas, programas artísticos de longa data e efetiva atuação foram sucateados, agentes de cultura, demitidos. Ações que levaram tanto tempo para se integrar às comunidades e constituir acessos qualificados, dissolvidas. 

Em meio a uma forte sensação de terra arrasada, como sobreviver e manter aceso o otimismo? Parece-me que um segundo tópico do nosso Manual é o Aliciamento, em diversas de suas definições. Quanto mais pessoas souberem do que trata a dramaturgia e de como ela está presente não só no teatro, na TV e no cinema, mas também na publicidade, no noticiário e nos cultos religiosos, por exemplo, mais a nossa função ganhará notoriedade e mais amplo sentido.

Portanto, como “ato ou efeito de atrair, seduzir”, o aliciamento para a dramaturgia passa pela divulgação dos mecanismos dramatúrgicos/fabulares presentes no dia-a-dia. Pela revelação dos dispositivos geradores de empatia e de consequente consumo, seja de bens seja de ideologias e comportamentos. Tal “revelação” é bom que esteja a cargo de dramaturgos e dramaturgas, assim denominados, assim reconhecidos, capazes de trazer a "dramaturgia" para o vocabulário comum do cidadão.

Como “angariação de elementos para formação de um grupo”, o aliciamento para a dramaturgia passa pela ampliação do número de interessados pela atividade. Isso pode se dar em cursos e oficinas específicos, mas também nas escolas formais em todos os níveis com a leitura e análise de peças; com a inclusão da literatura dramática em feiras e mostras literárias, não só para a venda de livros, mas para o diálogo com dramaturgas e dramaturgos. Trabalhamos sim com a escrita, mas não somos escritores genéricos, temos uma especificidade: a escrita verbal ou não para a cena e é preciso que isso fique claro se queremos que nossa profissão sobreviva como tal.

O dicionário Houaiss define ainda aliciamento como “alistamento de adeptos para determinada causa” o que, a meu ver, pode significar a arregimentação de pesquisadores da área. Quantas são as publicações nacionais sobre dramaturgia? Durante muito tempo a pioneira Renata Pallottini, poeta, dramaturga e professora, foi a única nas estantes com seus dois títulos: “Introdução à dramaturgia” e “Construção do personagem”. Muito lentamente temos cavado espaço para o tema, em especial nas publicações periódicas ou em edições restritas, financiadas por coletivos teatrais. Ainda assim é pouco e as pesquisas acadêmicas só recentemente se debruçam sobre os processos criativos em dramaturgia, já tão distantes do quadro inicial dessa postagem, bem como da forma dramática convencional.



Renata Pallottini
(Foto: internet)

Tais ações podem nos levar a uma última definição positiva de aliciamento, aquela que implica no “ato ou efeito de instigar; incitamento”. A apropriação dos meios expressivos da escrita dramática e do teatro, quando devidamente orientada, tem o condão de despertar a crítica e, consequentemente, gerar no indivíduo o desejo de mudança do estado das coisas. Para tanto, a Socialização do conhecimento, próximo tópico do nosso Manual, torna-se necessária.

Instigar e incitar para a dramaturgia e para o teatro é, sem dúvida, aliciar para a transformação de si mesmo e do mundo, daí o sucateamento das ações culturais por parte do poder público. Afinal, como anunciou Darcy Ribeiro em 1977: "a crise da educação do Brasil não é uma crise, é um projeto". Um projeto de sufocamento e de embotamento das vontades, que só com muito otimismo é possível combater.


Adélia Nicolete



* Sobre o "estado de espírito dramatúrgico" e a "função dramaturgia" ver a seguinte postagem.








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