Arte: Gabriela Ribeiro |
A dramaturga
Heloísa Cardoso teve seu projeto Odisseia
por elas aprovado na edição 2017 do PROAC Dramaturgia. Durante o processo,
ela compartilhou em vídeo algumas das fases da pesquisa e da criação que resultaram
na peça A encomenda, inspirada nas
figuras femininas da Odisseia de
Homero. O próximo passo é a publicação do livro. Convidada a escrever o prefácio, reuni algumas amigas e, feito Penélope, tecemos uma rede para saudar o texto e a jovem autora. Que nada a desmanche.
PREFÁCIO POR ELAS
"sou uma mulher do século XIX
disfarçada em século XX"
Ana Cristina Cesar
Desde a mais remota ideia de nosso nascimento, gerações
incontáveis atrás, uma caixa está à nossa espera. Dentro dela estão depositados
uma infinidade de conteúdos, semelhantes aos de milhões de outras caixas ou específicos
de um tempo, de um lugar, de uma certa condição dada ao nosso berço. Mal saímos
à luz, é esperado que nos conformemos ao pacote e a todas as expectativas ali
contidas. Ele nos acompanhará desde o primeiro vagido até os estertores finais
e a cada vez que nos levantarmos, ou mesmo em sonho, lá estará ele, incólume, a
nos desafiar.
Creio que saibam do que se trata: do amontoado de conceitos,
ideias, valores, leis e normas a que se submeter; do feixe de narrativas, de
exemplos e modelos a seguir. Pautam nosso pensamento e nosso comportamento, nos
doutrinam, subjugam nosso corpo, determinam nossas relações familiares,
afetivas e sociais; conferem-nos papéis e roteiros, convencionam que a uns
caberá a caça e o provimento e a outras, a procriação da espécie e a
domesticidade. Louvam a força, o heroísmo e a aventura de um gênero, preceituam
a castidade, a docilidade e a abnegação do outro. Estampam, desse modo, as
figuras de protetores e protegidas, justificam subordinações e dependências que
se estendem do nível econômico ao emocional. A romancista inglesa Virginia
Woolf chamou tais figuras de “Anjo do lar” e afirmou tê-la assassinado a fim de
se tornar uma verdadeira escritora. Nossa trajetória, vista à distância, é a relação
diuturna com essas imagens, com essa caixa e penso ser a respeito disso que
Heloísa Cardoso trata em sua peça A
encomenda, que tenho a ventura de prefaciar.
(...) Imaginei que voltarias como prometeste
Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome.
(Acho que te criei no interior de minha mente
Deveria, em teu
lugar, ter amado um falcão
Pelo menos, com a primavera, retornam com estrondo
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro:
(Acho que te criei no interior
de minha mente.)”
Sylvia Plath
Inspirada pelas figuras femininas presentes na Odisseia de Homero, Heloísa propõe um
jogo relacional que, numa primeira leitura, nos parece a estilização do vínculo
entre Ulisses e as diversas mulheres que conheceu em sua perambulação. No caso,
o herói seria a própria encomenda, figurada em uma pesada caixa de papelão,
deixada por engano diante de Circe, Caribdes, Cila, Calípso, Euricleia e as
escravas e, finalmente, Penélope, aquela que há tanto tempo resiste à fúria dos
pretendentes e mantém-se à espera de seu homem.
Ao examinarmos detidamente, porém, não é difícil perceber o quanto
a relação com a caixa diz sobre as próprias mulheres que a recebem. O quanto se
diz sobre algo que supera a ideia de um homem/herói/amante e alcança conteúdos
mais amplos – mesmo porque a figura responsável pelo transporte da encomenda é
ninguém menos que Atena, a deusa nascida da cabeça de Zeus, já adulta,
paramentada com elmo e escudo, armada com uma poderosa lança. Sendo assim, a
autora nos questiona sobre a maneira de lidar com os pacotes e conteúdos que
nos são propostos. Temos receio, nos colocamos na defensiva? Questionamos,
confrontamos? Arriscamo-nos e à nossa própria integridade em nome da violação?
Ou será que aceitamos e até nos tornamos dependentes dela? A cena final chega a
colocar em questão a própria ideia que se faz da caixa.
Nesse sentido, a peça de Heloísa Cardoso opera com uma simbologia
que fala de perto às atuais circunstâncias. Vivemos em um tempo de violação dos
princípios democráticos, num país campeão de feminicídios e de crimes por
homofobia, em que as populações indígenas são historicamente dizimadas,
ecologistas e defensores da ocupação justa do território, exterminados, e a
juventude negra e pobre perece sob porrete, coronha e bala. A cada eleição,
velhas caixas diante de nós. De que modo lidar com elas?
“El teatro hace patente
un amor por la muerte, un culto por lo efímero, como una especie de impulso de
aniquilación, la sensación de que algo muere. (...) Algo que está ocurriendo
sobre la cuerda floja y en cualquier momento se puede caer la trapecista (y
todo el mundo empieza a aplaudir). El actor se puede equivocar, puede incluso
abandonar la escena. Eso no existe en la literatura, ni en el cine, por ejemplo.
Tal vez es esa especie de tanatofilia lo que hace que siga existiendo público
para el teatro. Y eso debemos tenerlo muy en cuenta también los autores, quiero
decir, responder a la expectativa de riesgo con la que el público se enfrenta
al escenario, volver a poner la escena sobre esa cuerda floja, sobre la
caída y muerte del trapecista.”
Angelica Liddell
A encomenda é a
sétima peça teatral de Heloísa Cardoso e pode-se considerá-la, quem sabe, a
terceira parte de uma trilogia precedida por Manual doispontos Insaciável barra Mórbida (2012) e Lolita (2016). Uma porção de fios une as
três dramaturgias. O de maior destaque talvez seja a relação homem-mulher, o
desejo e sua objetificação, os embates entre expectativa e realidade, o amor e
as frustrações dele decorrentes. Há, no entanto, uma linha subjacente a
estruturar os enredos todos e colaborar no estabelecimento da unidade. Falo da
tensão psicológica. As personagens de Heloísa equilibram-se num fio retesado ao
máximo, quase a ponto de se romper, as situações aproximam-se do limite e se alguma
leveza existe, é a dos balões de gás prestes a escapar dos dedos e se perderem
para sempre. Numa escrita onde tudo é pulsão e intensidade, imaginamos que
direção e interpretação invistam, elas também, num jogo arriscado com o
espectador, como recomenda e realiza Angelica Liddell.
Em seu novo trabalho, a
dramaturga verticaliza e, consequentemente aprofunda algumas opções. A tensão
psicológica é acentuada pela atmosfera onírica - pode-se dizer que A encomenda é noturna, bem como os seres
que transitam por ela. A festa dos pretendentes que se prolonga até a exaustão
e a morte, os bastidores da boate de strip
tease gerenciada por Cila e Caribdes,
a gruta de Calipso, embalada por uma música dark e sensual, bem como as provações prenhes de elementos do
inconsciente a perturbar Penélope são apenas alguns exemplos. Nada ali é o que
parece, pois a dramaturgia dispõe de filtros que embaçam a leitura imediata. Se
quisermos nos aventurar, será preciso deixar as bolsas e os casacos no
guarda-volumes, fechar a porta atrás de nós e, sem medo da escuridão ou do
pesadelo, testemunhar o percurso da caixa e o modo como é recebida em cada
estação. Asseguro que vale a pena.
Este é,
sem dúvida, o texto mais denso e maduro da dramaturga. Tomou como base uma obra consagrada, mas conseguiu apropriar-se dela e criar uma
narrativa autônoma em que Penélope assume o protagonismo da trajetória. Arrisco-me
a dizer que a peça sinaliza um novo ciclo temático e mesmo de vida para sua
autora. Livre de fantasmas, ela poderá chegar “à maior de todas as liberações,
que é a liberdade de pensar nas coisas em si”, conforme nos ensina mais uma vez
Virginia Woolf. Todavia, quer A encomenda
sinalize o começo de outra fase ou não, o importante é prosseguir na
escrita, pois esse é o caminho de Heloísa Cardoso.
“Digo ainda como se
algum dia pudesse deixar de dizer. Não vou saber até o fim. Aqui deve ser o
começo. É reconfortante saber que há muitas coisas sem solução. Tem gente que
diz: no fim você resolve. E vem uma angústia, um torniquete apertando desde o
começo. Não estou livre. Para chegar ao fim devo continuar ainda que não exista
solução.”
Hilda Hilst
***
Peço
licença para algumas linhas adicionais, pois gostaria de comentar sobre a
importância das leis de fomento a viabilizar não só a criação, mas a publicação
dramatúrgica. Este livro e, portanto, este prefácio se devem à verba obtida com
uma parcela dos impostos recolhidos em nível estadual e destinada à Cultura.
Parte da tiragem será enviada gratuitamente às bibliotecas públicas e outra
parte chegará aos demais leitores, de modo a fomentar, por sua vez, a criação
de novos textos por onde passar.
É preciso,
pois, assegurar a continuidade dos programas de incentivo à Cultura se
quisermos viabilizar uma Arte de qualidade e em aperfeiçoamento contínuo. Graças
a um deles pude tramar essa rede com Ana, Sylvia, Virginia, Angelica e Hilda a fim
de saudar e acolher a jovem Heloísa.
Adélia Nicolete
Adélia Nicolete
Ponho-me na pele de Helô, com esse prefácio que a coloca nos braços e úteros fraternos de tantas mulheres que você escolhe para acolher A Encomenda. A partir de seu olhar, a vontade de conhecer essa dramaturgia de Heloísa Cardos só aumenta. A alegria também cresce feito fermento, afinal, é muito intenso saber que estamos quebrando os velhos paradigmas de mundo feito de bigodes e falos.
ResponderExcluirDébora, querida, sinta-se parte da rede desde sempre. Sei do afeto que tem por Helô, muito antes de eu entrar nessa história. Ao ler a peça, sei que também quebrará os paradigmas da encenação convencional e a imaginará no magma do inconsciente, no útero, lá onde brotam todas as coisas. Carinho imenso por ti. Obrigada pela leitura e pelo comentário.
ExcluirOlá Adélia e demais mulheres aqui representadas! Que bacana essa abertura, sincronicidades e espaços para a alma, o fazer e a conexão. Torcendo por poder ler o material da autora. Sucesso e que mais leis de incentivo a cultura surjam! Abraço, carinho, beijo!
ResponderExcluirElaine, cara, que bom ter se sentido curiosa pela peça. Na tarde de 01 de setembro, Heloísa Cardoso promoverá uma leitura de "A encomenda" na Biblioteca Municipal de Santo André. Sinta-se convidada. Beijão pra ti também! Obrigada pela visita.
Excluir