No
ano de 1999 Rubens José de Souza Brito, então docente da UNICAMP, defendia sua
tese de doutorado pela ECA-USP, sob orientação do professor Jacó Guinsburg. O
objeto de sua pesquisa era a dramaturgia de Luís Alberto de Abreu, seus processos
e configurações. Para isso analisou o conjunto de peças do autor, de quem
acompanhou a trajetória desde os tempos amadores, traçando um panorama que, a
partir dali, tornou-se uma referência para qualquer estudo sobre o assunto.
Tanto que Rubinho, como era conhecido pelos amigos e alunos, era procurado como
orientador sempre que alguém se dispunha a pesquisar algum aspecto da obra do
dramaturgo.
Como
decorrência da tese veio o convite para que preparasse uma edição das Obras
Selecionadas para a Editora Perspectiva. Ele deu início ao trabalho, mas não
teve tempo suficiente para levá-lo adiante devido à morte repentina em 2008. O
presente volume é, portanto, a concretização de seu projeto tão caro e coube a
mim retomar sua condução.
Decidi, então, rever com
Luís Alberto de Abreu a listagem de peças a serem publicadas. De um total de
mais de 50 textos, o autor selecionou 14 que abarcam o período que vai de 1982
a 2010. Eles foram divididos em quatro áreas, definidas pela pesquisa que
envolvem. A primeira delas, com o maior número de obras, é a de comédia popular
brasileira. Foi iniciada por Abreu e Ednaldo Freire e levada a cabo junto à
Fraternal Cia de Arte e Malas-Artes, com catorze textos escritos ao longo de
mais de dez anos de trabalho. Baseado em estudos de Mikhail Bakhtin, Luís da
Câmara Cascudo, Amadeu Amaral e Cornélio Pires, o grupo empreendeu uma pesquisa
de tipos já fixados no imaginário da cultura brasileira e retrabalhou-os
segundo princípios da comédia popular. Dessa reelaboração nasceram personagens-tipo
que figuram em diversas peças da Companhia. São eles: João Teité, Matias Cão,
Mateúsa, Mané Marruá, Benedita, entre outros. Figuras com perfil definido e já
conhecido do público, justamente por fazerem parte da cultura popular, e que, a
cada peça, encontram oportunidade para criarem novas intrigas e se safarem
delas. Burundanga, a revolta do baixo
ventre (1994), Sacra folia (1996)
e Auto da paixão e da alegria (2002)
pertencem a essa vertente de pesquisa. As duas primeiras são o que o autor denomina
de comédia de representação, a terceira contempla já uma investigação da forma
narrativa.
Essa
investigação formal está presente também nas outras duas comédias que completam
o conjunto: Till Eulenspiegel (1999)
e Stultifera navis, a nau dos loucos (2001).
Pertencem igualmente ao projeto de Comédia Popular Brasileira, porém visam à
retomada de personagens da cultura universal e seu tratamento à luz da cultura
e da realidade nacionais. O encontro entre os fictícios Peter Askalander,
nórdico, e Pedro Lacrau, um índio brasileiro, é a situação central de Stultifera navis, a nau dos loucos. Nessa
outra peça do projeto de comédia popular, Abreu intentou escrever um texto de
inspiração cinematográfica, um filme verbalizado, como definiu: grandes cenas
épicas com afundamento de navios, tempestades em alto mar e uma radicalização
da narrativa.
Para
a elaboração de Till, Abreu tomou como base um volume de histórias sobre
as aventuras de um herói popular alemão. Embora localize a ação na Europa da
Idade Média e crie uma trajetória paralela à do herói, a de três cegos à
procura do caminho para Jerusalém onde esperam encontrar finalmente descanso,
fartura e justiça, Abreu estabelece clara relação com o Terceiro Mundo e seus
desvalidos. Ao final os desvalidos da peça seguem, liderados pela figura
alegórica da Consciência de Till, rumo ao encontro de uma utopia possível.
Luís Alberto de Abreu e o professor Jacó Guinsburg, editor do livro (foto: Elaine Perli Bombicini) |
A
segunda área de pesquisa é a da forma narrativa. Embora em praticamente todos
os seus textos Abreu lance mão dos recursos da narrativa épica, nas quatro
peças aqui selecionadas essa elaboração se deu mais especificamente. Em Bella
Ciao (1982) os problemas de configuração levantados pelo conteúdo levavam o
autor à busca de uma forma que pudesse conter satisfatoriamente a saga de uma
família de imigrantes italianos, desde sua terra natal no início do século XX
até a queda do Presidente Getúlio Vargas em 1945. Essa forma foi encontrada
principalmente no contato com as obras de Bertolt Brecht. Vemos sua influência
desde o peso dado aos aspectos políticos da trajetória, passando pela
construção das cenas que encerram todas uma unidade, que pode ser identificada
por um título (recurso que Abreu continuará adotando em praticamente todos os
textos seguintes), e pela figura do Ponto, que atua como narrador.
Passados
quatro anos de Bella Ciao e tendo
encenado mais três textos nesse intervalo, Abreu iniciou a pesquisa para a
elaboração de Lima Barreto, ao Terceiro Dia (1986). O projeto consistia em elaborar uma trama que
suportasse aspectos biográficos do escritor e fragmentos de sua obra mais
famosa, O triste fim de Policarpo
Quaresma. A vastidão do material representava outro desafio formal para o
dramaturgo. Dessa vez, ao contrário do que ocorrera em Bella Ciao, quando Abreu ia resolvendo os problemas à medida que
ocorriam, o autor pretendeu estabelecer primeiro a estrutura. Quis
intencionalmente trabalhar uma concepção formal que pudesse organizar passado,
presente e ficção, e que possibilitasse interferências mútuas. Vencido o
desafio da forma levou-se adiante a escrita do texto.
Borandá,
auto do migrante (2003), encontra Luís
Alberto de Abreu com vinte e três anos de carreira e o domínio da forma
narrativa. Os desafios, nesse caso, pertenceram à esfera do conteúdo. Desde a
peça O rei do Brasil (1991) o dramaturgo precede a escrita do texto
propriamente dito pelo cannovaccio. Trata-se de um roteiro de ações,
como os que eram seguidos pelos atores da commedia dell'arte italiana, e
que contém o enredo e o detalhamento das ações em cada uma das cenas. Um quadro
esquemático de todo o texto. Não foi diferente com Borandá. Abreu criou
um roteiro de ações que trataria de uma releitura de Macunaíma do ponto de
vista do migrante. Seria uma história fantástica, com tratamento mítico e assim
foi entregue à Companhia para que começassem as improvisações. Paralelamente a
isso os atores realizavam entrevistas com migrantes de diversas origens, com o
objetivo de dialogar com as improvisações e o texto. Ocorre que, à medida que
as entrevistavam chegavam às mãos do dramaturgo constituíam-se material potente
o bastante para modificar a primeira estrutura imaginada.
O desafio
foi, portanto, reorganizar o cannovaccio. Alterar a forma já definida
para que abrigassem o novo material. A solução encontrada foi a narrativa de
duas sagas entremeadas pela história fantástica original. Abreu procurou em Borandá
um aprofundamento no estudo dos personagens narradores e o trabalho com o que
ele chama de velocidade do épico. Com isso criou narradores capazes de
interpretar homens ou mulheres, desfazendo a limitação de gênero, e propôs
cenas mais curtas, que produzissem uma sucessão de imagens sob o comando de um
narrador principal, a dirigir a memória – influência dos procedimentos
utilizados pelo dramaturgo norte americano Thornton Wilder no texto Nossa
Cidade.
O dramaturgo e a crítica Ilka Marinho Zanotto, prefaciadora do livro (foto: Elaine Perli Bombicini) |
Em 2006, com Memória das Coisas, dá-se
a pesquisa do fluxo da memória. Como organizar um material que brota em
progressão geométrica? Um homem se vê diante de um arco no centro da cidade e
ele tenta se lembrar a que ele se refere. Nesse cavoucar recordações, que se
torna o eixo do espetáculo, da própria ruína arquitetônica brotam
personagens-lembranças que, por sua vez, se lembram de outros, e tudo se torna
matéria de representação. A essa altura a chamada carpintaria teatral não importa
mais a Luís Alberto de Abreu, que se preocupa agora com a consistência da cena.
Há uma liberdade nessa organização dramatúrgica que permite que um personagem
assuma a narrativa se tem algo importante a dizer. Dispensa-se a trama
perfeitamente articulada em nome da unidade maior constituída pela
multiplicidade da memória.
Curiosamente
Memória das Coisas pertence ao ciclo de comédias populares da companhia.
Da comédia, porém, resistem os dois palhaços e o diretor, que beiram o
patético. O diretor não possui mais o controle da situação. Diferente da
personagem de Thornton Wilder, ele se desespera com a amnésia do protagonista,
com a autonomia das personagens e o fluxo das lembranças, tentando encontrar um
sentido para transmiti-lo ao público, tornado testemunha. Podemos identificar,
na orquestração do tema, das ações e das figuras, influências de Tadeuz Kantor
e Pirandello – citados no próprio texto.
No
terceiro bloco encontram-se dois textos resultantes da pesquisa da forma
poética, A Guerra Santa (1991) e O Livro de Jó (1995). A
eloquência e o ritmo da poesia foram a saída encontrada por Luís Alberto de
Abreu às circunstâncias em que se encontrava a dramaturgia naquele momento.
Segundo o autor, as reflexões políticas geradas nos anos 1970 já não encontravam
mais respaldo no público. Seu texto O
Rei do Brasil, que propunha uma discussão cultural do país, foi um fracasso
de bilheteria. A isso veio se somar o grande destaque conquistado pelos
encenadores nos anos 1980 e a relativa crise da dramaturgia. Diante disso Abreu
iniciou uma pesquisa formal na tentativa de recuperar o público, de
sintonizar-se novamente com ele. Daí nasceu A Guerra Santa, texto
resultante do projeto Maioridade 68 promovido pela FUNARTE e que foi buscar nas
personagens e no ambiente d'A Divina Comédia de Dante Alighieri a
metáfora dos ideais revolucionários.
O
Livro de Jó, baseado no texto bíblico, foi uma
criação partilhada com o Teatro da Vertigem de São Paulo. Da parceria com o
diretor Antônio Araújo uma outra pesquisa foi desenvolvida, desta vez
processual. Os dois foram responsáveis pela sistematização inicial do chamado
processo colaborativo e por divulgá-lo junto a outros grupos e escolas em
diversos estados brasileiros.
Em
relação à forma poética um outro texto, Francesca (1993), ainda inédito
e inspirado em uma das passagens d'A Divina Comédia, completa a trilogia
de peças que buscam na poesia uma forma de comunicação mais direta com o
leitor/espectador. A partir dessas experiências, Abreu passou a utilizar a
poesia como elemento de elocução nas peças seguintes, mesmo nas comédias. Um
exemplo disso pode ser encontrado na fala do Anjo Gabriel ao anunciar o
massacre dos inocentes em Sacra Folia.
No
final dos anos 1990 o dramaturgo iniciou uma pesquisa do teatro nô japonês. Seu
objetivo era compreender como se articulava a estrutura daqueles dramas que
comunicam diretamente ao público, quase sem a intermediação da encenação.
Nascido na sociedade rural, o drama nô possui uma dramaturgia relativamente
simples, baseada na forma narrativa e poética podendo lançar mão, inclusive, do
canto e da dança. Foram esses elementos que Abreu utilizou, em todo ou em
parte, na elaboração dos três textos que compõem o último conjunto dessas Obras
Selecionadas – a pesquisa do teatro nô. O primeiro, Maria Peregrina, foi
escrito em 1999 especialmente para a Cia Teatro da Cidade de São José dos
Campos, em São Paulo. Para o mesmo grupo, escreveu em 2010 Um Dia Ouvi a Lua, baseado em músicas
sertanejas e em sua mais recente pesquisa das personagens heroínas. Nesses dois
textos Abreu optou pela composição de um tríptico, pois, embora haja uma
unidade temática e mesmo um fio condutor, são trabalhados três núcleos
independentes. Caso diferente de Um Merlin, de 2002, escrito para a
interpretação do ator Antonio Petrin e a direção de Roberto Lage. Essa obra
contempla a pesquisa do herói sábio e pertence a um tipo de nô que tange os
deuses ou entidades e a própria morte. Dessa vez o que Abreu preferiu
aprofundar foram o registro poético e o narrativo, não tanto a estrutura nô.
Ao longo do tempo a dramaturgia de Luís
Alberto de Abreu dividiu espaço com a atividade pedagógica, que se desdobrou em
palestras, coordenação de cursos e processos, oficinas e grupos de estudos. A
prática em sala de aula e junto aos grupos, muitas vezes, levou o autor a
sistematizar determinados conteúdos em forma de artigo. Por isso, à reunião das
peças teatrais, seguem os textos teóricos do autor. Tratam-se de três artigos
publicados em periódicos que se referem às pesquisas da narrativa, das
personagens dramáticas e contemporâneas.
Noite de autógrafos na Livraria Alpaharrabio (Foto: Lina de Abreu) |
A
obra de Luís Alberto de Abreu, por sua vez, suscitou uma série de pesquisas
acadêmicas. Selecionamos fragmentos de três delas para figurarem na terceira
parte deste volume. O primeiro pertence à tese intitulada Dos Peões ao Rei, do
professor Rubens José de Souza Brito, comentada no início desta apresentação. O
segundo faz parte da dissertação de mestrado de André Carrico, Por conta do
Abreu, defendida no Instituto de Artes da UNICAMP e que aborda a comédia
popular na obra do dramaturgo. As três sagas que compõem Borandá foram
objeto de estudo do terceiro trecho selecionado, que faz parte da dissertação Do
Drama ao Fragmento: a questão da forma na dramaturgia contemporânea em São
Paulo, de autoria de Cássio Pires defendida na ECA-USP em 2005. Outros
trabalhos acadêmicos encontram-se relacionados ao final desse tópico e, se não
foram selecionados para esta publicação, deveu-se tão somente a critérios de
espaço.
O
mesmo se deu em relação aos registros da recepção crítica dos espetáculos.
Muito foi escrito em jornais e outros periódicos impressos ou eletrônicos a
respeito dos textos do dramaturgo. Procuramos apresentar aqui uma amostragem
que levasse em consideração, além do conteúdo, alguns dos nomes que acompanham
ou acompanharam a trajetória do dramaturgo em boa parte de seus trinta anos de
profissão, completados em 2010.
Dentre
seus mais de cinquenta textos – desde o primeiro, Foi bom, meu bem?
levado à cena em 1980, até o mais recente Nomes do Pai – apenas um permanece inédito, o musical
Francesca. A atuação do autor se
estendeu ao cinema, à televisão, às fábricas, a departamentos de cultura e,
mais recentemente, a hospitais e centros de saúde junto ao Instituto Narradores
de Passagem, do qual é o idealizador. Em todas as iniciativas, o que move Luís
Alberto de Abreu é a pesquisa, seja ela unicamente da escrita, seja do diálogo
com atores, diretores ou cineastas na construção da obra. Seja na dramaturgia
autoral, seja em projetos nos quais esteja inserido. O presente volume oferece
ao leitor uma parte selecionada dessas experiências.
Agradeço à
minha filha Lina pela ajuda no levantamento e digitação das críticas, à profª
dra. Sílvia Fernandes e a Cristiane Layher Takeda pelas sugestões e pelo
estímulo em relação à publicação. Ao Professor Jacó Guinsburg e a Luís Alberto
de Abreu agradeço o privilégio de realizar este trabalho dedicado à memória do professor
Rubens José de Souza Brito, de quem cito um trecho da tese ao finalizar esta
apresentação:
“Como se vê, Luís Alberto
de Abreu se sensibiliza pelos mais diferentes temas.
No centro de cada um deles, encontra-se
o homem brasileiro,
flagrado não só em seus instantes de
dor, de reflexão, de angústia e de luta,
mas também nos seus momentos de
esperteza, alegria e riso.
Entre a razão e a emoção, entre a
profundidade e a superficialidade,
entre o cômico e o trágico, e entre o
trivial e o metafísico,
o dramaturgo vai compondo, cena a cena,
não mais o brasileiro,
mas o próprio homem.”
Querida Adélia! me emocionei ao ler este artigo aqui no Matéria Vertente, tantos anos de trajetória do Abreu e de uma forma magicamente resumida. Conforme eu ia lendo o texto, ia me recordando de pontos, idas e vindas de carro, cafés, idas à USP, ao Alpharrábio, à defesa de tese do Rubinho ( à qual assisti e que tenho cópia e li inteirinha....). Obviamente o contexto teatral ganha uma profunda intensidade da qual como espectadora me envaideço (só um pouco) por ter acompanhado alguns desses passos bem de perto. O Brasil precisa desses heroicos humanos que Abreu cria e desenvolve, assim como precisamos todos nós dessa organização didática na vida, nas artes, na educação proposta por sua hábil percepção. Uma delícia de ler, uma memória para recordar e um blog para ser lido - e quem sabe mais no futuro, estudado! Fico feliz por participar com vocês de tantos momentos significativos para a cultura do nosso país que se faz tão frágil em alguns momentos! Que a matéria verta e que a consumamos sem moderação! Pela arte! Paz e bem! Elaine
ResponderExcluirElaine, obrigada pela leitura e, mais do que isso, pela presença em toda essa trajetória, que já vai longa. Há um pouco (ou um muito) de você em cada um desses passos. Fique com o meu abraço.
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