segunda-feira, 1 de setembro de 2014

"Luís Alberto de Abreu : um teatro de pesquisa" - Apresentação do livro


Luís Alberto de Abreu, um teatro de pesquisa
Editora Perspectiva


            No ano de 1999 Rubens José de Souza Brito, então docente da UNICAMP, defendia sua tese de doutorado pela ECA-USP, sob orientação do professor Jacó Guinsburg. O objeto de sua pesquisa era a dramaturgia de Luís Alberto de Abreu, seus processos e configurações. Para isso analisou o conjunto de peças do autor, de quem acompanhou a trajetória desde os tempos amadores, traçando um panorama que, a partir dali, tornou-se uma referência para qualquer estudo sobre o assunto. Tanto que Rubinho, como era conhecido pelos amigos e alunos, era procurado como orientador sempre que alguém se dispunha a pesquisar algum aspecto da obra do dramaturgo.

            Como decorrência da tese veio o convite para que preparasse uma edição das Obras Selecionadas para a Editora Perspectiva. Ele deu início ao trabalho, mas não teve tempo suficiente para levá-lo adiante devido à morte repentina em 2008. O presente volume é, portanto, a concretização de seu projeto tão caro e coube a mim retomar sua condução.

Decidi, então, rever com Luís Alberto de Abreu a listagem de peças a serem publicadas. De um total de mais de 50 textos, o autor selecionou 14 que abarcam o período que vai de 1982 a 2010. Eles foram divididos em quatro áreas, definidas pela pesquisa que envolvem. A primeira delas, com o maior número de obras, é a de comédia popular brasileira. Foi iniciada por Abreu e Ednaldo Freire e levada a cabo junto à Fraternal Cia de Arte e Malas-Artes, com catorze textos escritos ao longo de mais de dez anos de trabalho. Baseado em estudos de Mikhail Bakhtin, Luís da Câmara Cascudo, Amadeu Amaral e Cornélio Pires, o grupo empreendeu uma pesquisa de tipos já fixados no imaginário da cultura brasileira e retrabalhou-os segundo princípios da comédia popular. Dessa reelaboração nasceram personagens-tipo que figuram em diversas peças da Companhia. São eles: João Teité, Matias Cão, Mateúsa, Mané Marruá, Benedita, entre outros. Figuras com perfil definido e já conhecido do público, justamente por fazerem parte da cultura popular, e que, a cada peça, encontram oportunidade para criarem novas intrigas e se safarem delas. Burundanga, a revolta do baixo ventre (1994), Sacra folia (1996) e Auto da paixão e da alegria (2002) pertencem a essa vertente de pesquisa. As duas primeiras são o que o autor denomina de comédia de representação, a terceira contempla já uma investigação da forma narrativa.

            Essa investigação formal está presente também nas outras duas comédias que completam o conjunto: Till Eulenspiegel (1999) e Stultifera navis, a nau dos loucos (2001). Pertencem igualmente ao projeto de Comédia Popular Brasileira, porém visam à retomada de personagens da cultura universal e seu tratamento à luz da cultura e da realidade nacionais. O encontro entre os fictícios Peter Askalander, nórdico, e Pedro Lacrau, um índio brasileiro, é a situação central de Stultifera navis, a nau dos loucos. Nessa outra peça do projeto de comédia popular, Abreu intentou escrever um texto de inspiração cinematográfica, um filme verbalizado, como definiu: grandes cenas épicas com afundamento de navios, tempestades em alto mar e uma radicalização da narrativa.

            Para a elaboração de Till, Abreu tomou como base um volume de histórias sobre as aventuras de um herói popular alemão. Embora localize a ação na Europa da Idade Média e crie uma trajetória paralela à do herói, a de três cegos à procura do caminho para Jerusalém onde esperam encontrar finalmente descanso, fartura e justiça, Abreu estabelece clara relação com o Terceiro Mundo e seus desvalidos. Ao final os desvalidos da peça seguem, liderados pela figura alegórica da Consciência de Till, rumo ao encontro de uma utopia possível.

Luís Alberto de Abreu e o professor Jacó Guinsburg, editor do livro
(foto: Elaine Perli Bombicini)

           
            A segunda área de pesquisa é a da forma narrativa. Embora em praticamente todos os seus textos Abreu lance mão dos recursos da narrativa épica, nas quatro peças aqui selecionadas essa elaboração se deu mais especificamente. Em Bella Ciao (1982) os problemas de configuração levantados pelo conteúdo levavam o autor à busca de uma forma que pudesse conter satisfatoriamente a saga de uma família de imigrantes italianos, desde sua terra natal no início do século XX até a queda do Presidente Getúlio Vargas em 1945. Essa forma foi encontrada principalmente no contato com as obras de Bertolt Brecht. Vemos sua influência desde o peso dado aos aspectos políticos da trajetória, passando pela construção das cenas que encerram todas uma unidade, que pode ser identificada por um título (recurso que Abreu continuará adotando em praticamente todos os textos seguintes), e pela figura do Ponto, que atua como narrador. 

            Passados quatro anos de Bella Ciao e tendo encenado mais três textos nesse intervalo, Abreu iniciou a pesquisa para a elaboração de Lima Barreto, ao Terceiro Dia (1986). O projeto consistia em elaborar uma trama que suportasse aspectos biográficos do escritor e fragmentos de sua obra mais famosa, O triste fim de Policarpo Quaresma. A vastidão do material representava outro desafio formal para o dramaturgo. Dessa vez, ao contrário do que ocorrera em Bella Ciao, quando Abreu ia resolvendo os problemas à medida que ocorriam, o autor pretendeu estabelecer primeiro a estrutura. Quis intencionalmente trabalhar uma concepção formal que pudesse organizar passado, presente e ficção, e que possibilitasse interferências mútuas. Vencido o desafio da forma levou-se adiante a escrita do texto.

Borandá, auto do migrante (2003), encontra Luís Alberto de Abreu com vinte e três anos de carreira e o domínio da forma narrativa. Os desafios, nesse caso, pertenceram à esfera do conteúdo. Desde a peça O rei do Brasil (1991) o dramaturgo precede a escrita do texto propriamente dito pelo cannovaccio. Trata-se de um roteiro de ações, como os que eram seguidos pelos atores da commedia dell'arte italiana, e que contém o enredo e o detalhamento das ações em cada uma das cenas. Um quadro esquemático de todo o texto. Não foi diferente com Borandá. Abreu criou um roteiro de ações que trataria de uma releitura de Macunaíma do ponto de vista do migrante. Seria uma história fantástica, com tratamento mítico e assim foi entregue à Companhia para que começassem as improvisações. Paralelamente a isso os atores realizavam entrevistas com migrantes de diversas origens, com o objetivo de dialogar com as improvisações e o texto. Ocorre que, à medida que as entrevistavam chegavam às mãos do dramaturgo constituíam-se material potente o bastante para modificar a primeira estrutura imaginada.

O desafio foi, portanto, reorganizar o cannovaccio. Alterar a forma já definida para que abrigassem o novo material. A solução encontrada foi a narrativa de duas sagas entremeadas pela história fantástica original. Abreu procurou em Borandá um aprofundamento no estudo dos personagens narradores e o trabalho com o que ele chama de velocidade do épico. Com isso criou narradores capazes de interpretar homens ou mulheres, desfazendo a limitação de gênero, e propôs cenas mais curtas, que produzissem uma sucessão de imagens sob o comando de um narrador principal, a dirigir a memória – influência dos procedimentos utilizados pelo dramaturgo norte americano Thornton Wilder no texto Nossa Cidade.


O dramaturgo e a crítica Ilka Marinho Zanotto, prefaciadora do livro
(foto: Elaine Perli Bombicini)


 Em 2006, com Memória das Coisas, dá-se a pesquisa do fluxo da memória. Como organizar um material que brota em progressão geométrica? Um homem se vê diante de um arco no centro da cidade e ele tenta se lembrar a que ele se refere. Nesse cavoucar recordações, que se torna o eixo do espetáculo, da própria ruína arquitetônica brotam personagens-lembranças que, por sua vez, se lembram de outros, e tudo se torna matéria de representação. A essa altura a chamada carpintaria teatral não importa mais a Luís Alberto de Abreu, que se preocupa agora com a consistência da cena. Há uma liberdade nessa organização dramatúrgica que permite que um personagem assuma a narrativa se tem algo importante a dizer. Dispensa-se a trama perfeitamente articulada em nome da unidade maior constituída pela multiplicidade da memória.

Curiosamente Memória das Coisas pertence ao ciclo de comédias populares da companhia. Da comédia, porém, resistem os dois palhaços e o diretor, que beiram o patético. O diretor não possui mais o controle da situação. Diferente da personagem de Thornton Wilder, ele se desespera com a amnésia do protagonista, com a autonomia das personagens e o fluxo das lembranças, tentando encontrar um sentido para transmiti-lo ao público, tornado testemunha. Podemos identificar, na orquestração do tema, das ações e das figuras, influências de Tadeuz Kantor e Pirandello – citados no próprio texto.

            No terceiro bloco encontram-se dois textos resultantes da pesquisa da forma poética, A Guerra Santa (1991) e O Livro de Jó (1995). A eloquência e o ritmo da poesia foram a saída encontrada por Luís Alberto de Abreu às circunstâncias em que se encontrava a dramaturgia naquele momento. Segundo o autor, as reflexões políticas geradas nos anos 1970 já não encontravam mais respaldo no público.  Seu texto O Rei do Brasil, que propunha uma discussão cultural do país, foi um fracasso de bilheteria. A isso veio se somar o grande destaque conquistado pelos encenadores nos anos 1980 e a relativa crise da dramaturgia. Diante disso Abreu iniciou uma pesquisa formal na tentativa de recuperar o público, de sintonizar-se novamente com ele. Daí nasceu A Guerra Santa, texto resultante do projeto Maioridade 68 promovido pela FUNARTE e que foi buscar nas personagens e no ambiente d'A Divina Comédia de Dante Alighieri a metáfora dos ideais revolucionários.

            O Livro de Jó, baseado no texto bíblico, foi uma criação partilhada com o Teatro da Vertigem de São Paulo. Da parceria com o diretor Antônio Araújo uma outra pesquisa foi desenvolvida, desta vez processual. Os dois foram responsáveis pela sistematização inicial do chamado processo colaborativo e por divulgá-lo junto a outros grupos e escolas em diversos estados brasileiros. 

            Em relação à forma poética um outro texto, Francesca (1993), ainda inédito e inspirado em uma das passagens d'A Divina Comédia, completa a trilogia de peças que buscam na poesia uma forma de comunicação mais direta com o leitor/espectador. A partir dessas experiências, Abreu passou a utilizar a poesia como elemento de elocução nas peças seguintes, mesmo nas comédias. Um exemplo disso pode ser encontrado na fala do Anjo Gabriel ao anunciar o massacre dos inocentes em Sacra Folia.

            No final dos anos 1990 o dramaturgo iniciou uma pesquisa do teatro nô japonês. Seu objetivo era compreender como se articulava a estrutura daqueles dramas que comunicam diretamente ao público, quase sem a intermediação da encenação. Nascido na sociedade rural, o drama nô possui uma dramaturgia relativamente simples, baseada na forma narrativa e poética podendo lançar mão, inclusive, do canto e da dança. Foram esses elementos que Abreu utilizou, em todo ou em parte, na elaboração dos três textos que compõem o último conjunto dessas Obras Selecionadas – a pesquisa do teatro nô. O primeiro, Maria Peregrina, foi escrito em 1999 especialmente para a Cia Teatro da Cidade de São José dos Campos, em São Paulo. Para o mesmo grupo, escreveu em 2010  Um Dia Ouvi a Lua, baseado em músicas sertanejas e em sua mais recente pesquisa das personagens heroínas. Nesses dois textos Abreu optou pela composição de um tríptico, pois, embora haja uma unidade temática e mesmo um fio condutor, são trabalhados três núcleos independentes. Caso diferente de Um Merlin, de 2002, escrito para a interpretação do ator Antonio Petrin e a direção de Roberto Lage. Essa obra contempla a pesquisa do herói sábio e pertence a um tipo de nô que tange os deuses ou entidades e a própria morte. Dessa vez o que Abreu preferiu aprofundar foram o registro poético e o narrativo, não tanto a estrutura nô.

 Ao longo do tempo a dramaturgia de Luís Alberto de Abreu dividiu espaço com a atividade pedagógica, que se desdobrou em palestras, coordenação de cursos e processos, oficinas e grupos de estudos. A prática em sala de aula e junto aos grupos, muitas vezes, levou o autor a sistematizar determinados conteúdos em forma de artigo. Por isso, à reunião das peças teatrais, seguem os textos teóricos do autor. Tratam-se de três artigos publicados em periódicos que se referem às pesquisas da narrativa, das personagens dramáticas e contemporâneas.

Noite de autógrafos na Livraria Alpaharrabio
(Foto: Lina de Abreu)
           
            A obra de Luís Alberto de Abreu, por sua vez, suscitou uma série de pesquisas acadêmicas. Selecionamos fragmentos de três delas para figurarem na terceira parte deste volume. O primeiro pertence à tese intitulada Dos Peões ao Rei, do professor Rubens José de Souza Brito, comentada no início desta apresentação. O segundo faz parte da dissertação de mestrado de André Carrico, Por conta do Abreu, defendida no Instituto de Artes da UNICAMP e que aborda a comédia popular na obra do dramaturgo. As três sagas que compõem Borandá foram objeto de estudo do terceiro trecho selecionado, que faz parte da dissertação Do Drama ao Fragmento: a questão da forma na dramaturgia contemporânea em São Paulo, de autoria de Cássio Pires defendida na ECA-USP em 2005. Outros trabalhos acadêmicos encontram-se relacionados ao final desse tópico e, se não foram selecionados para esta publicação, deveu-se tão somente a critérios de espaço.

            O mesmo se deu em relação aos registros da recepção crítica dos espetáculos. Muito foi escrito em jornais e outros periódicos impressos ou eletrônicos a respeito dos textos do dramaturgo. Procuramos apresentar aqui uma amostragem que levasse em consideração, além do conteúdo, alguns dos nomes que acompanham ou acompanharam a trajetória do dramaturgo em boa parte de seus trinta anos de profissão, completados em 2010.

            Dentre seus mais de cinquenta textos – desde o primeiro, Foi bom, meu bem? levado à cena em 1980, até o mais recente Nomes do Pai –  apenas um permanece inédito, o musical Francesca.  A atuação do autor se estendeu ao cinema, à televisão, às fábricas, a departamentos de cultura e, mais recentemente, a hospitais e centros de saúde junto ao Instituto Narradores de Passagem, do qual é o idealizador. Em todas as iniciativas, o que move Luís Alberto de Abreu é a pesquisa, seja ela unicamente da escrita, seja do diálogo com atores, diretores ou cineastas na construção da obra. Seja na dramaturgia autoral, seja em projetos nos quais esteja inserido. O presente volume oferece ao leitor uma parte selecionada dessas experiências.

            Agradeço à minha filha Lina pela ajuda no levantamento e digitação das críticas, à profª dra. Sílvia Fernandes e a Cristiane Layher Takeda pelas sugestões e pelo estímulo em relação à publicação. Ao Professor Jacó Guinsburg e a Luís Alberto de Abreu agradeço o privilégio de realizar este trabalho dedicado à memória do professor Rubens José de Souza Brito, de quem cito um trecho da tese ao finalizar esta apresentação:

“Como se vê, Luís Alberto de Abreu se sensibiliza pelos mais diferentes temas.
No centro de cada um deles, encontra-se o homem brasileiro,
flagrado não só em seus instantes de dor, de reflexão, de angústia e de luta,
mas também nos seus momentos de esperteza, alegria e riso.
Entre a razão e a emoção, entre a profundidade e a superficialidade,
entre o cômico e o trágico, e entre o trivial e o metafísico,
o dramaturgo vai compondo, cena a cena, não mais o brasileiro,
mas o próprio homem.”



2 comentários:

  1. Querida Adélia! me emocionei ao ler este artigo aqui no Matéria Vertente, tantos anos de trajetória do Abreu e de uma forma magicamente resumida. Conforme eu ia lendo o texto, ia me recordando de pontos, idas e vindas de carro, cafés, idas à USP, ao Alpharrábio, à defesa de tese do Rubinho ( à qual assisti e que tenho cópia e li inteirinha....). Obviamente o contexto teatral ganha uma profunda intensidade da qual como espectadora me envaideço (só um pouco) por ter acompanhado alguns desses passos bem de perto. O Brasil precisa desses heroicos humanos que Abreu cria e desenvolve, assim como precisamos todos nós dessa organização didática na vida, nas artes, na educação proposta por sua hábil percepção. Uma delícia de ler, uma memória para recordar e um blog para ser lido - e quem sabe mais no futuro, estudado! Fico feliz por participar com vocês de tantos momentos significativos para a cultura do nosso país que se faz tão frágil em alguns momentos! Que a matéria verta e que a consumamos sem moderação! Pela arte! Paz e bem! Elaine

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    1. Elaine, obrigada pela leitura e, mais do que isso, pela presença em toda essa trajetória, que já vai longa. Há um pouco (ou um muito) de você em cada um desses passos. Fique com o meu abraço.

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