terça-feira, 30 de setembro de 2014

"Reveillon" e "O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário" – uma família, um apartamento, quarenta anos de intervalo


Elenco do espetáculo "O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário"
Natália Guimarães, Edu Silva, Solange Moreno, Daniel Ortega, Cristiano Sales
Foto: Divulgação


Um dos temas mais abordados no teatro, os conflitos familiares, em suas mais diversas configurações, estiveram presentes desde os primórdios dessa arte, correspondendo a um contexto ou lançando sobre ele as luzes do entendimento. Longe de traçar um panorama, pretende-se nesse artigo esboçar um estudo comparativo de dois textos brasileiros que tratam da temática familiar, bem como assinalar, nas diferenças entre eles, algumas das transformações por que passou a dramaturgia no interregno de quarenta anos que os distancia no tempo.

O primeiro texto, Reveillon, foi escrito em 1974 por Flávio Márcio. Estreou naquele ano no Rio de Janeiro e, no ano seguinte, em São Paulo, obtendo grande sucesso de público e de crítica. O segundo, O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário, veio à cena em 2014 na capital paulista, com dramaturgia textual e direção de Evill Rebouças para pesquisa coletiva da Cia Artehúmus de Teatro. Nas duas peças, pai, mãe e um casal de filhos dividem com a morte um apartamento de classe média na metrópole.

Flávio Márcio nasceu nas Minas Gerais em 1945, transferindo-se, ainda jovem, para o eixo Rio-São Paulo, onde atuou como jornalista, publicitário e dramaturgo até o falecimento, em 1979, aos 34 anos. Sua dramaturgia, sempre de autoria individual e levada à cena nos moldes convencionais, deu-se entre os anos de 1960 e 1970, período em que o Brasil, ao mesmo tempo em que passava pelos rigores da ditadura militar, começava a desenvolver práticas horizontalizadas de criação. Contra a ditadura do diretor e do autor, a chamada criação coletiva propunha a desierarquização das funções e atendeu tanto ao engajamento político de esquerda quanto a iniciativas tidas, na época, como “alienadas”. Na obra autoral de Flávio Márcio, a repressão vivida pelo país naquele momento, parece ter encontrado reflexos e correspondência no âmbito familiar de composição tradicional, o que pode ser verificado em Réveillon, em À moda da casa e em Tiro ao alvo, textos pertencentes à trilogia Família à moda da casa.

Evill Rebouças, filho dos anos 1960 – assim como alguns dos atores da Cia Artehúmus –, cresceu e fez os primeiros anos de sua formação escolar no ABC paulista, sob a ditadura. Nas duas décadas seguintes, o fortalecimento do teatro amador, grande parte das vezes lançando mão de princípios da criação coletiva, em fábricas, nas igrejas e nas escolas,  garantiu o acesso de muitos jovens às diversas funções do fazer teatral. Daí ser bastante comum encontrarmos entre os artistas daquela geração e daquele local, quem se desdobre na dramaturgia, na direção, na interpretação ou em outras áreas, caso de Evill. A partir de meados dos anos 1980, fase da abertura política nacional, a região do ABC, em especial a cidade de Santo André, pode contar com a oferta de oficinas livres de artes, além de cursos formais nos recém criados Centros Comunitários, Escolas Municipais de Iniciação Artística e Escola Livre de Teatro. Tais iniciativas contribuíram, se não para o aumento do número de grupos amadores, ao menos para a capacitação de artistas que, a partir de então, buscaram a atuação profissional em teatro, ideia praticamente inconcebível em períodos anteriores.


O enredo

Reveillon transcorre no último dia de 1973. À medida que o relógio anuncia, com seu tique-taque, o final do ano aproximar-se, os quatro membros de uma família desfilam suas incapacidades e frustrações, suas derrotas e a mesmice de uma vida que se arrasta de modo solitário, ainda que em grupo.

Desde a primeira cena a morte ronda o apartamento, sob as mais diversas formas. Porém, é próximo ao final que o leitor/espectador percebe com clareza a intenção dos personagens: dar fim à própria existência, antes que o próximo ano chegue e a morte em vida recomece. O jovem Guima, poeta insipiente, abre a peça preparando o laço de uma forca enquanto sua mãe, Adélia, mostra-se incapaz de compreendê-lo. Logo de início é possível notar, na tentativa de diálogo entre eles, a falência da comunicação, cada vez mais comprometida ao longo da trama. O diálogo inaugural da peça dá o tom do que virá a seguir:

“GUIMA (lendo, reflexivamente, no caderno ao lado): “Não a face dos mortos...”
ADÉLIA (impaciente, mas tentando ser compreensiva): Dá dinheiro isso, meu filho?
GUIMA (continuando, indiferente): “... nem a face dos que não coram aos açoites da vida.”
ADÉLIA (continuando): Passar o dia inteiro com um pedaço de papel e um lápis na mão escrevendo coisinhas... Responde!
GUIMA (continuando com a leitura do poema): “Mas a face lívida dos que resistem pelo espanto.”
ADÉLIA (irritada): Dá dinheiro, por acaso? Dinheiro coisa nenhuma!
GUIMA (voltando à realidade): Quê que tem? Que que a senhora disse?”

O desejo poético não encontra lugar em uma casa já sem alma – em um país cujo desejo político foi solapado –, o que leva Guima a fugir, na tentativa de livrar-se da morte anunciada.

Murilo, o pai de família, tendo dificuldade de se fazer ouvido pelos demais, passa o dia tentando finalizar uma autobiografia pífia, elaborando a lista de agradecimentos que é praticamente uma despedida. Ele pouco fala e suas palavras têm importância nenhuma no curso das ações. Por vezes parece que o peso da realidade “lá fora” (fora das quatro paredes ou fora do “eu”) é permanentemente evitado pelo casal. A filha, Janete, a protagonista, encarrega-se de ser e de trazer para dentro da casa uma verdade incômoda: a de sustentar a casa como prostituta. Naquela noite fatídica, a moça chega do trabalho e junta-se à mãe no preparo da última ceia que, à semelhança da relação entre as duas, acaba desandando. Durante toda a ação da peça, Janete debate-se entre a banalidade e o cansaço do presente e o passado romântico, lembrando-se do amor impossível, num desespero que justifica seu gesto final.

Fora da órbita familiar gravita Fernando, antigo pretendente de Janete. Não se sabe ao certo se ele é real ou se existiu apenas na imaginação e no desejo da moça. Embora a troca dialógica entre os dois esteja menos comprometida, a comunicação não se dá plenamente, pois o amor é incapaz de superar as diferenças: Janete considera-se indigna do namorado. No ápice do desassossego, cada personagem encontra a maneira mais apropriada de se libertar do peso da existência. Guima morre de forma misteriosa, fora de cena – tantos pereceram dessa forma na época. Adélia enforca-se, interrompendo a profusão da fala, enquanto Murilo usa o revólver. Janete é a última. Atende um Fernando imaginário que vem propor casamento, mas já é tarde. Atira-se e às ilusões pela janela.

Em Reveillon, a incomunicabilidade é apenas uma das consequências da deterioração de relações familiares, em especial daquelas fundadas nos moldes tradicionais. Flávio Márcio traduz essa fratura por meio de interrupções de fala e pensamento, de elipses, de diálogos breves permeados por circunlóquios e pelo uso abundante de reticências. A criação individual do texto e a desvinculação entre autor e sala de ensaio, característicos de boa parte da dramaturgia do período, favoreceram o detalhamento das rubricas, que, não apenas sugerem a intenção dos personagens, mas estendem-se à determinação precisa de cenário e objetos, do figurino, da movimentação dos atores e de recursos audiovisuais.


A revisão do enredo

A trama de Reveillon é relativamente simples em relação a algumas propostas atuais. O teatro contemporâneo tem-se desprendido cada vez mais da ideia de enredo como o arranjo de ações em fluxo causal, algo que durante séculos norteou a composição dramatúrgica. À noção de uma história facilmente reproduzível contrapõe-se uma tessitura polifônica de palavras, ações, situações e temas, resultando em um tipo de escrita em que a identificação de uma fábula torna-se difícil ou mesmo impossível. É assim com O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário.

A recusa em apontar um caminho interpretativo começa pelo título. Trata-se de uma metáfora referente não só ao conteúdo, mas ao percurso do público pelas águas do espetáculo, em busca de um sentido para a cena ou, se preferir, para a vida na “modernidade líquida” em que nos encontramos.

A família, aqui, não é mais a de composição clássica. Pai e mãe dividem o apartamento com dois filhos legítimos, mas sabe-se que existe uma ex-mulher e uma outra filha, eventualmente citadas. Longe de ser mero detalhe, esse arranjo figura em parte o quadro familiar contemporâneo, e os conflitos nele gerados, ainda que semelhantes aos convencionais em alguns de seus efeitos, são de outra ordem, sobretudo econômica e emocional.

Se um apartamento, pago em infinitas prestações, era o sonho dourado da classe média retratada por Flávio Márcio, o condomínio figurado em O desvio do peixe... é, muitas vezes, o sonho possível no neo-liberalismo. Atende, qual fortificação medieval, ao anseio por segurança, intensificando-se o medo daquilo que corre além das muralhas e das cercas elétricas. É preciso sentir-se protegido e vigiado para sentir-se livre.

Nesse contexto, é Téo, o filho morto, quem recebe o espectador a fim de apresentar a família. Mas, se em Reveillon, foi a angústia pela não-comunicação e pela negação da vida o que conduziu os personagens ao suicídio (visto, inclusive, como metáfora da falência de certo modus vivendi), em O desvio do peixe... a morte ocorre de modo absolutamente involuntário. Tom, o peixe do aquário, é morto por uma bala perdida que atravessa a janela; o filho da diarista, detido num abrigo de menores, leva um tiro, e Téo, o anfitrião, não morre de nada, conforme ele mesmo esclarece:

“Eu morri de nada, simplesmente deitei, dormi e não acordei mais. Mas isso era tão pouco, tão simples que não fazia sentido... Sentido teria se eu tivesse morrido de bala perdida... levar um tiro no meio da testa, igual ao filho da diarista... Mas não, eu não morri de febre, de úlcera, de cistite, de convulsão... (...)”

A revelação de Téo esconde a ironia de um tempo em que a morte natural caiu em desuso. Paradoxalmente, o menino morto parece mais vivo que seus pais e sua irmã. Téo é o espírito que retorna e tenta compreender aqueles cuja alma está prestes a desvanecer. João Paulo, seu pai, “o provedor” – assim definindo na dramatis personae –, passa a vida tentando desincumbir-se de tarefas prosaicas – o trabalho que não lhe dá prazer, o pagamento de contas, uma pesquisa para seu curso supletivo e a reflexão sobre a peregrinação dos atuns – lamentando-se por não conseguir relacionar-se em profundidade com os filhos. Seu drama é comum à maioria dos provedores, a quem cabe trabalhar cada vez mais para manter um padrão de vida familiar, e de quem se cobra uma presença muitas vezes impossível.







Publicado originalmente em
Ateliê compartilhado, nº 2, março/2014




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