Para quem está chegando agora, informo que essa
postagem é a terceira de um conjunto de seis, originadas de uma fala no II
Seminário Brasileiro de Escrita Dramática. A
provocação feita pelos organizadores com o tema do “Manual” foi respondida em outubro passado, lá em Florianópolis. Agora resolvi
registrar minhas reflexões aqui, a fim de compartilhá-las com um público
mais amplo.
Na primeira postagem da série sugeri a Paixão como um primeiro tópico a ser considerado em qualquer manual de sobrevivência e ainda mais naquele destinado às Artes. Um segundo tópico seria relativo ao Aliciamento a fim de que cada vez mais pessoas criassem e fruíssem o teatro e, como resultante, dramaturgas e dramaturgos continuariam a cumprir suas funções. O texto de hoje, diretamente ligado ao
Aliciamento, defende o direito à dramaturgia e o acesso a ela graças à socialização
permanente dos modos de produção. *
* * *
Quando comecei a fazer teatro amador no final dos anos 1970, embora a
criação coletiva já estivesse em curso, os processos em geral cumpriam o
seguinte caminho: formar um grupo (ou aliciar amigas e amigos incautos),
escolher uma peça (em geral de acordo com o número de participantes),
distribuir os papeis (ou disputá-los a tapa), decorar, ensaiar, apresentar
(poucas vezes) e partir para a próxima montagem – sim, as peças eram “montadas”
ou “levantadas”, nunca encenadas.
Havia pouquíssima dramaturgia publicada e não tínhamos acesso a ela,
portanto a fonte de onde jorravam os textos era os Cadernos de Teatro,
publicados pelo Tablado. Pouca gente arriscava-se a escrever no ABC de 40 anos
atrás. Havia o Grupo Forja, do Sindicato dos Metalúrgicos, cuja dramaturgia era
criada coletivamente, mas sob a coordenação bastante incisiva do já experiente
Tin Urbinatti. No mais, escrevia-se de modo empírico, autodidata, a partir do
estudo de outros dramaturgos, a maioria estrangeiros.
A ditadura civil-militar inspirou grandes textos, mas a censura se
encarregava de proibir sua chegada à cena e ao público, tanto que muitas das
peças eram conhecidas somente por meio de leituras, às vezes clandestinas. Decorreu
daí o mito de que, alcançada a abertura política, não havia mais boa dramaturgia
no Brasil: o grande inimigo fora derrotado e com ele o estímulo a uma escrita significativa.
Durante anos esse mito justificou a importação de textos e o que ficou conhecido
como “a década do encenador”.
Chico de Assis - dramaturgo, roteirista e professor (Foto: internet) |
Foi somente a partir de meados dos anos 1980 que os cursos livres de
dramaturgia despontaram mais efetivamente por aqui, graças à reação e à iniciativa
dos próprios profissionais. Alguns deles foram inspirados pelo Seminário de
Dramaturgia do Teatro de Arena – Renata Pallottini e Chico de Assis, por
exemplo. Outros dois, jovens autores, motivados pela sua formação e seu trabalho junto
a grupos foram Carlos Alberto Soffredini e Luís Alberto de Abreu.
Carlos Alberto Soffredini Dramaturgo, roteirista, diretor e professor |
De lá para cá o interesse pela escrita para teatro só fez aumentar no que
tange ao texto autoral e ao trabalho junto ao coletivo criador. Aliás, o grande
número de coletivos que se formaram a partir dos anos 1990 e a sedimentação do
chamado processo colaborativo despertaram um interesse mais vivo pela escrita
textual não só por parte de dramaturgos, mas também dos outros criadores. ** Assim,
os cursos, oficinas e ateliês promovidos atualmente visam ao atendimento de
todo e qualquer interessado em dramaturgia, inclusive espectadores.
Tais iniciativas estendem-se desde programas formais em escolas e
universidades até projetos do terceiro setor. Estão presentes na rotina de
grupos atuantes – seja como atividade de contrapartida social, seja oficialmente
na agenda – e também na proposição autônoma de indivíduos ou grupos constituídos
especificamente para esse fim, em diversos estados brasileiros.
Aos poucos a atividade
escrita perde seu caráter elitista. A inspiração perde terreno para o esforço, para
a constância, o estudo, a persistência e, por que não, à teimosia. O talento, o
dom, a predestinação cedem lugar ao direito de todos à fruição e à experiência criativa.
Antonio Cândido (Foto: internet) |
O professor Antonio Cândido, no ensaio “O direito à literatura” afirma que “a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis de cultura.” Em seguida conclui que “uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.” (p.193) ***
Em vinte e duas páginas o sociólogo argumenta sobre a importância do acesso à literatura erudita e às suas formas complexas, inclusive a dramaturgia, não como superiores às manifestações populares e cotidianas, mas sim como produções valorosas e carregadas de potencial humanizador. Para ele, esse tipo de acesso é considerado indispensável às classes favorecidas e deveria sê-lo igualmente às demais
Em algumas sociedades "a
literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando
nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e
afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera
prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e
da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e
combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.
Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura
proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do
estado de coisas predominante.” (p. 178) ***
Enfim, que não nos baste jamais escrever peças, mesmo que de conteúdo revolucionário, se não oferecermos condições para que outras pessoas tenham acesso ao fazer artístico, se não revolucionarmos também os modos desse fazer, por meio de ações pedagógicas, artigos, sites, blogs e publicações em geral, por meio de discussões e compartilhamentos constantes não só com os nossos pares, mas com o máximo de pessoas que pudermos aliciar.
Adélia Nicolete
* Sobre a socialização dos modos de produção da escrita, entre outros assuntos, recomendo a leitura do ensaio:
BENJAMIN, Walter. O autor como
produtor. In: Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. 7.ed. Tradução de S. P.
Rouanet. São Paulo : Brasiliense, 1994.
p. 120-136. (disponível na web)
** Sobre esse período sugiro a consulta ao primeiro capítulo da dissertação:
NICOLETE, Adélia. Da cena ao texto : dramaturgia em processo colaborativo. São Paulo, 2005. Dissertação (Mestrado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. (Disponível na web)
** Sobre esse período sugiro a consulta ao primeiro capítulo da dissertação:
NICOLETE, Adélia. Da cena ao texto : dramaturgia em processo colaborativo. São Paulo, 2005. Dissertação (Mestrado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. (Disponível na web)
*** SOUZA, Antonio Candido de Mello e.
O direito à literatura. In : Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. (disponível na web)
Que prazer a leitura deste texto! Tantas referências que nos certificam a necessidade e a possibilidade da escrita, que olhando para este período tão criativo e ao mesmo tempo tão trabalhoso, sinto saudades! Essa fase atual e obscura da humanidade há de passar e a esperança de dias ainda mais criativos este otimismo na alma, me garante. Meu abraço!
ResponderExcluirQuerida, que bom receber sua visita e seu comentário. Sua esperança de que a humanidade retome os trilhos me anima. Que assim seja! Um abração também!
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