Adélia Nicolete, Débora Brenga e Marcelo Lazzaratto I Colóquio Trupé de Pesquisa - Sesc Sorocaba - junho de 2016 (Foto: Adriano Sobral) |
A¨retomada dos trabalhos junto ao Núcleo de Dramaturgia da
Trupé de Teatro de Sorocaba, suscita o registro de mais uma reflexão compartilhada no I Colóquio Trupé de Pesquisa realizado há cerca de um ano. O primeiro registro, “O centésimo espetáculo ou O teatro
contemporâneo à luz da ressonância mórfica”, pode ser lido aqui. Na postagem de hoje, minha intenção é abordar o processo
colaborativo numa perspectiva política.
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Quando comecei a fazer teatro, no final dos anos 1970, o teatro
político há pouco chegara à região do ABC. Os grupos operários, em especial o
Grupo Forja de São Bernardo do Campo, sob a direção de Tin Urbinatti, propunham um novo modo de se pensar e de se construir a cena, intimamente relacionado à oposição ao regime ditatorial do período.
Não foram poucos os grupos amadores que nasceram desses
dois contextos e seguiram, com maior ou menor intensidade, o mesmo ideário. Participantes
ou egressos desses grupos, muitas vezes, atuavam nas escolas como diretores ou
atores, ocasião em que disseminavam não só a reflexão e a ação teatral como também
materiais teóricos e dramaturgia.
Desse modo, em pouco tempo praticamente todos discutiam,
encenavam ou ao menos tinham conhecimento da existência de Brecht, Piscator, Teatro
de Arena e Oficina, Boal, Guarnieri, Vianinha, Buenaventura, Dragún, em sua
maioria através de textos mimeografados.
Enrique Buenaventura (1925-2003) Diretor, dramaturgo, autor colombiano - referência latino-americana para os processo de criação coletiva |
A criação coletiva dava seus primeiros passos numa região
em que o teatro amador fora sedimentado em bases intuitivas e, portanto,
carecia de técnica suficiente para uma ação propositiva dos atores. Por isso, embora
houvesse intenções políticas libertárias, interesse genuíno por textos de
elevado teor revolucionário, bem como o desejo de democratizar as discussões
por meio dos famigerados bate-papos ao final de cada sessão, a maioria dos
trabalhos seguia o padrão da “montagem” tradicional.
Em outras palavras, embora o objetivo fosse a
conscientização – de quem faz e de quem frui teatro – o modo de produção era
alienado: escolhia-se o texto pelo seu conteúdo, mas na hora de encená-lo,
distribuíam-se os papeis por questões práticas, decorava-se o texto, marcava-se
a cena e, em pouquíssimo tempo, apresentava-se. A ideia de “linha de montagem” parece adequada para
analisar o procedimento: cada um encarregava-se de uma parte do processo,
isentando-se da experiência como um todo e, consequentemente, da possibilidade
de desenvolver autonomia, ainda que relativa.
De certa forma, ainda hoje muitos grupos reproduzem modos de criação baseados na autoridade do dramaturgo/diretor; no tratamento diferenciado do elenco, segundo o tempo de grupo ou o status na companhia; na memorização de texto, bem como nos ensaios de marcação e na estreia a curto prazo, mesmo que o conteúdo proposto seja a crítica de um estado de coisas que precisa de urgente revisão.
Elenco e diretor do espetáculo "Os da mesa 10", de Osvaldo Dragún Peça subversiva levada à cena em modo alienado de produção 1980 |
De certa forma, ainda hoje muitos grupos reproduzem modos de criação baseados na autoridade do dramaturgo/diretor; no tratamento diferenciado do elenco, segundo o tempo de grupo ou o status na companhia; na memorização de texto, bem como nos ensaios de marcação e na estreia a curto prazo, mesmo que o conteúdo proposto seja a crítica de um estado de coisas que precisa de urgente revisão.
Herdeiro da criação coletiva e nascido na efervescência dos
teatros de grupo dos anos 1990, o processo colaborativo tende a recuperar um
modo de fazer mais próximo de uma experiência ao mesmo tempo estética e política.
Seu contexto gerador foi o neoliberalismo e a noção de mercado que se espraiou
no terreno da cultura e que veio a suscitar um sem número de coletivos
criadores, todos à margem da produção convencional em teatro, música, artes
plásticas, cinema, literatura, etc. Tais coletivos tinham por meta abarcar
todas as esferas da criação, desde a viabilização econômica cooperativada até a divulgação e
a comercialização das obras, numa relação direta com o público, sem a mediação
de produtores, agentes, curadores, marchands,
distribuidores, etc.
Além do mais, a ideia de um mercado da cultura tenderia a condicionar as obras aos interesses dos patrocinadores, o que não é inédito, vide o mecenato, por exemplo, mas não pode se tornar uma regra. Por isso, naquele mesmo contexto, o Movimento Arte Contra a Barbárie foi de importância fundamental para o estabelecimento de leis de fomento a fim de assegurar a produção de trabalhos dos mais variados perfis, muitos deles, dificilmente “patrocináveis” e criados em uma outra lógica que não a dos prazos exíguos.
Além do mais, a ideia de um mercado da cultura tenderia a condicionar as obras aos interesses dos patrocinadores, o que não é inédito, vide o mecenato, por exemplo, mas não pode se tornar uma regra. Por isso, naquele mesmo contexto, o Movimento Arte Contra a Barbárie foi de importância fundamental para o estabelecimento de leis de fomento a fim de assegurar a produção de trabalhos dos mais variados perfis, muitos deles, dificilmente “patrocináveis” e criados em uma outra lógica que não a dos prazos exíguos.
A horizontalização de funções permite que a ideia de
hierarquia seja substituída pela de responsabilidade criativa, isto é, cada
participante, embora interfira criativamente em todas as áreas, responde e assina
pela sua. Os conflitos daí resultantes visam à busca de soluções cujo foco é a cena
e não a satisfação de uma ou de outra subjetividade.
"Geração 80" Teatro da Conspiração - Santo André - 2002 Criação em processo colaborativo |
A experiência em diversas instâncias e funções, além de
proporcionar uma aquisição de autonomia criativa, garante o exercício
permanente da alteridade – cada vez mais necessária em tempos de intensa individualização.
Mesmo quando se opera a partir de um texto teatral ou
narrativo de referência, ele é o disparador das pesquisas e das criações e não
o centro, como nas encenações em molde tradicional. Esse texto é experimentado,
questionado, partido, invertido, complementado ou mesmo substituído por outros
textos sejam eles verbais, sejam corporais, vocais, musicais, pictóricos e
assim por diante. Ou seja, o princípio da fidelidade, que entende a peça
teatral como o ponto para onde convergem todos os esforços, é substituído pelo
princípio da equivalência, da proposição de outros textos, seja em paralelo seja em disputa.
Atores e atrizes da Trupé de Teatro de Sorocaba ensaio do espetáculo "Das guerras de um velho baixo caos" - 2015 Criação em processo colaborativo (Foto: Adriano Sobral) |
Quando o foco é a montagem de
uma peça, os esforços se dirigem a ela. Quando o foco é o processo, como no
caso do processo colaborativo, constrói-se não só a obra, mas a si mesmo – a
obra é também resultado da auto-construção baseada no exercício
contínuo de iniciativa, experimentação, crítica, argumentação; de alteridade, socialidade, questionamento, inquietação, autonomia.
Como anotei nas conclusões de minha dissertação de mestrado *,
o processo colaborativo , mais do que um método a ser seguido ou de um ideal a
ser alcançado, é busca. A depender do tipo de proposta, do tipo de grupo; das condições
econômicas, das circunstâncias espaço-temporais, é sempre uma busca. E é
justamente nesse exercício que reside o seu sentido.
Adélia Nicolete
* NICOLETE, Adélia. Da cena ao texto: dramaturgia em projeto colaborativo. Dissertação (Mestrado em Artes) - USP, 2005. O download pode ser feito nessa página.
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