quinta-feira, 16 de outubro de 2014

"Por Elise", do grupo espanca! - Apresentação do livro





Não se escapa, na abordagem das escritas contemporâneas,
devido à falta de certezas e modelos, à suspeita da ausência de savoir-faire.
Uma escrita muito aberta e sem trama narrativa bem amarrada
não esconderia a impotência do autor para construir uma história?
Não se pode levantar essa suspeita mais do que a que visa um pintor abstrato
quando perguntam se ele sabe desenhar “bem”.
O trabalho de leitura consiste, com a menor dose de a priori possível,
em entrar no jogo do texto e medir sua resistência.
Jean-Pierre Ryngaert



Quando fui convidada a apresentar o texto Por Elise aos leitores, Ryngaert surgiu de imediato diante de mim. Em seu livro Ler o teatro contemporâneo, o professor e diretor francês registra uma série de considerações que se adequam perfeitamente ao texto de Grace Passô e a muitos outros que vêm povoando a cena brasileira atual.

Ao comentar sobre a falta de certezas e modelos na escrita contemporânea, Ryngaert assinala a desconfiança com que se tem olhado o teatro dramático nos moldes aristotélicos – unidades, mimese, fábula, enredo, ação, conflito, diálogo, começo-meio-fim, encadeamento de ações, causa-conseqüência e tantas outras âncoras – e, ao mesmo tempo, a dificuldade de se libertar dele. O autor chega a cogitar a impossibilidade de uma ruptura radical com as antigas formas, pois a matriz do teatro será sempre uma troca entre seres humanos diante de outros seres humanos. Nesse ponto, junta-se ao francês um alemão, Hans-Thies Lehmann. Ao anunciar a existência de um teatro que chama de pós-dramático, Lehmann assegura que ele só é possível como superação do drama, ou seja, como uma manifestação que conserva algumas características de uma dramaturgia considerada “clássica”, incorporando a ela elementos próprios do contemporâneo – silêncio, fragmentação, lacunas, interrupções, intertextualidade e, sobretudo, uma maior colaboração do leitor/espectador na finalização da obra.

Por Elise é um claro exemplo disso. Ao mesmo tempo em que atende aos que ainda buscam avidamente por um fio, uma trama que seja, para com eles bordar um sentido, propõe um jogo de ir-e-vir, de esconde-esconde. Elipses, longas pausas, artes marciais, diálogos e trajetórias desencontrados e reencontrados, rubricas de filigrana que bem podem ser lidas em cena - uma estrutura de quebra-cabeça em que a autora propositalmente deixou de colocar algumas peças, pois elas estarão em poder da encenação e do público.

Uma outra característica marcante, capaz de situar o texto de Grace Passô e o espetáculo do Espanca! no panorama traçado por Lehmann e Ryngaert, relaciona-se ao processo de criação. Não mais um texto que nasce pronto, no gabinete do dramaturgo, e é oferecido a um grupo de atores que se incumbe de montá-lo e apresentá-lo, de preferência respeitando falas, rubricas e marcas de direção. Por Elise nasceu como um esboço apresentado ao grupo pela autora-diretora-atriz e que, dia a dia, era assimilado e transformado pela equipe. Cada um dos componentes atuou tanto na finalização do texto quanto na construção da cena. O fruto que pode ser degustado nesse volume é semente plantada por Grace, mas cultivada pela equipe.

E é preciso falar ainda do assunto, do conteúdo de Por Elise que, sem dúvida, determina a forma encontrada pela dramaturgia.

Grupos jovens, dispostos a escrever o próprio texto, ao se perguntarem sobre o que querem falar, em geral apresentam respostas bastante similares. Todos querem falar do amor, do medo, da violência. Querem falar de perdas, de morte, de solidão e de sonho. Falar do que se passa dentro deles e no entorno. Com o Espanca! não foi diferente. Mas, em vez de escolher um ou dois temas, o grupo se dispôs a desenvolver todos, ao mesmo tempo. O resultado é uma dramaturgia multifacetada, conforme foi descrito acima, e que tem como trunfo a poesia.

O grupo colocou todos os temas em seu cadinho alquímico e elaborou um espetáculo que supera o simples retrato, tão comum na cena atual. Mais do que um espelho que denuncia a todo instante nossas deformações, uma obra que reflete o que há por trás do espelho, por trás do retrato, dos muros, das cercas elétricas. E, se não bastasse, oferece ainda uma saída poética.

Nessa estrada, ao lirismo de Por Elise caminham também Encontros depois da chuva, da Cia Stravaganza, de Porto Alegre; Cantos periféricos, do Teatro da Conspiração, de Santo André, e Papo de anjo, do Galpão Cine Horto, de Belo Horizonte, para citar apenas alguns. É sintomático que muitos trabalhos desse tipo ocorram fora do eixo Rio-São Paulo e sejam realizados por companhias iniciantes e/ou vinculadas à pesquisa. A renovação do teatro, ou seu arejamento, cabe a elas mais do que aos grupos estabelecidos e aos nomes já consagrados.

No jogo do leitor/espectador com o texto, proposto por Ryngaert, Por Elise resiste. Resiste como texto poético, como retrato do homem e das relações humanas contemporâneas, lançando um olhar sui generis sobre a realidade. Amoroso, sem deixar de ser crítico. Agudo, sem deixar de ser lírico. Um olhar que espanca, mas espanca doce.


(Uma nova edição do livro foi publicada recentemente pela editora Cobogó.)





4 comentários:

  1. Cá estou de novo... Não podia "deixar de deixar" um comentário sobre "Por Elise". :)

    Esse é um dos textos mais estranhos com que já me deparei, e quando digo "estranho", é no melhor dos sentidos. Uma estranheza que é fruto da nossa (minha, pelo menos) percepção acostumada com a herança aristotélica-hegeliana, na qual o paradigma a que você se refere, Adélia, o pós-dramático, vem provocar desvios, coisa que, no texto do Espanca!, acontece de forma, eu diria, bastante atrevida! - que maravilha...
    Um atrevimento que, me parece, vem muito da própria Grace, que se coloca/coloca sua voz de forma muito original nas rubricas, que, como você também falou, podem inclusive ser ditas em cena. Longe de se esconder por trás das personagens, a dramaturga (mesmo tratando-se de um processo colaborativo, vejo muito a mão dela como unificadora da coisa toda) aparece entre uma fala e outra como mais uma personagem, de contornos talvez mal desenhados, mas suficientes para que percebamos a sua presença.
    Penso que aí está a chave para a via que se abre entre o palco e plateia, cuja presença é, com alguma frequência ao longo do espetáculo, lembrada/considerada, como em outras produções do Espanca!, de uma maneira também original: com alguma dose de ironia e até mesmo de cinismo, é como se os atores não quisessem deixar claro que estão se dirigindo diretamente ao público, embora não restem dúvidas de que estejam. Ou ao menos foi essa a impressão que tive ao assistir ao "Por Elise" (apenas em vídeo, infelizmente) e ao "Marcha para Zenturo" (esse sim, ao vivo!), sendo uma das coisas que mais me encantou no trabalho do grupo.
    Considero Grace um dos grandes nomes da dramaturgia brasileira contemporânea e fico muito feliz que os textos dos espetáculos do grupo estejam publicados (até onde eu pude acompanhar), coisa rara.

    Mais uma vez, muito bom ler tuas impressões e poder compartilhar as minhas, Adélia.

    Beijo,

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    1. Procuro acompanhar a trajetória da Grace Passô desde "Por Elise", tanto como dramaturga, quanto nas outras funções que ela exerce sempre muito bem. É fascinante esse exercício de "perseguição" de um artista ou grupo - procuro também acompanhar o espanca!, do mesmo modo como fiz com o CPT do Antunes Filho ou com o TAPA, ambos aqui de SP.

      O que vejo nela, pra ficar em um só aspecto, é que consegue manter o mesmo arrojo do início. Parece não ter medo de errar feio, lança-se a cada trabalho de modo arriscado. Como atriz, diretora, dramaturga, tanto faz. Embora seja possível reconhecer traços comuns em todos esses campos, ou seja, idiossincrasias que a acompanham desde o primeiro projeto, ela sempre consegue manter-se maior do que isso.

      E o espanca! segue um caminho de pesquisa forte e também ousado, não só enquanto produtor de espetáculos, como também de agitador cultural em BH e por onde passa. Coisa boa demais!

      Coisa boa demais ter você por aqui, Nayara. Gostoso esse exercício, né? Fique à vontade.

      Beijo pra ti também.

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  2. Sim, é uma delícia acompanhar os passos de um grupo ou de um artista como os que você citou. Poder comparar um trabalho a outro, ver que ponto desenvolveram, o que vem sendo recorrente e o que aparece como novidade... E é muito bom que hajam grupos com pesquisa continuada que nos permitem esse exercício também.

    PS (que não tem a ver com a postagem, mas com uma conversa anterior): assisti a "Incêndios", o filme, neste final de semana. Esperava muito, mas não tanto. Ainda estou sem palavras ou, como diria uma amiga, "sem léxico para comentar".

    Beijos e bom semana pra ti!

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    1. Que bom que assistiu ao Incendios e que gostou, Nayara! Isso me anima ainda mais a assistir.Em breve darei noticias.
      Abraço!

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