quinta-feira, 29 de junho de 2017

II Ciclo de Estudos da Dramaturgia Contemporânea - Brasil


Para o professor Stephan Baumgartel
por sua imensa contribuição para o estudo 
da dramaturgia contemporânea brasileira


Quando iniciei minha pesquisa de doutorado em 2009, uma das questões da tese relacionava-se à possibilidade de uma pedagogia da dramaturgia fora dos moldes figurativos/dramáticos. Cumpridas as disciplinas, o primeiro passo foi me debruçar sobre a dramaturgia dita contemporânea e alguns de seus pressupostos. Para tanto, elaborei um Ciclo de Estudos da Dramaturgia Contemporânea e divulguei a amigos e ex-alunos.

Formamos um grupo de 12 pessoas que em onze encontros, de março a junho de 2010, analisamos de Samuel Beckett a Sarah Kane, além de estudar um bom número de teóricos e, não bastasse, criarmos materiais textuais e reflexivos que alimentavam um blog.

Passados sete anos daquela experiência tão gratificante surgiu a vontade de organizar um novo Ciclo, dessa vez centrado na produção contemporânea brasileira. O critério para a seleção dos textos foi bastante claro: como a dramaturgia tem respondido às questões históricas?

Silvero Pereira em cena de "BR-Trans"
Coletivo As Travestidas - Fortaleza
Dramaturgia: Silvero Pereira
Direção: Jezebel de Carli

Foram analisados ao todo seis textos que procuraram abarcar diferentes estados brasileiros; autores de diferentes raças e orientações sexuais, cuja escrita foi individual ou colaborativa. Muitos outros textos seriam possíveis, mas tivemos de nos ater a seis encontros apenas. A dramaturgia foi analisada a partir da conjunção texto escrito-encenação, seja por meio de vídeos, seja na fruição ao vivo, como foi o caso de "Mata teu pai”, de Grace Passô.

O grupo contou em média com dez participantes, que ocuparam uma das salas da Escola Livre de Teatro de Santo André entre abril e junho desse ano. “BR-Trans”, de Silvero Pereira, foi o primeiro trabalho analisado e respondeu aos recordes de violência ligada à homofobia no Brasil.

Procuramos em cada análise refletir sobre os modos como o processo criativo determinou, ainda que em parte, a configuração formal da dramaturgia. Outros aspectos abordados foram a dramaturgia dos demais elementos cênicos, a conjugação texto-cena, bem como os dispositivos e procedimentos identificados na composição.


"Caranguejo overdrive" - Aquela Cia - Rio de Janeiro
Dramaturgia de Pedro Kosovski
Direção de Marco André Nunes

A cada nova dramaturgia, eram estudados também os processos de criação e parte do material que fundamentou cada uma delas. Assim, por exemplo, para a análise de “Caranguejo Overdrive”, foram pesquisados o movimento Mangue Beat, o texto de Josué de Castro “Sobre homens e caranguejos”, o aterramento do mangue na cidade do Rio de Janeiro, críticas e outros materiais gentilmente sugeridos pelo próprio dramaturgo Pedro Kosovski.

O estudo desse trabalho corresponde às inquietações geradas pela urbanização desordenada, pela gentrificação e pela especulação em torno de obras ora justificadas pela Copa do Mundo e pelas Olimpíadas, mas que, na verdade, há séculos drenam o dinheiro público em todo país.

"Abnegação 2 - o começo do fim" - Grupo Tablado de Arruar - São Paulo
Dramaturgia: Alexandre Dal Farra
Direção: Alexandre Dal Farra e Clayton Mariano

“Abnegação 2 – o começo do fim” foi a terceira dramaturgia analisada e falou de perto ao grupo, já que foi baseada no assassinato do ex-prefeito petista Celso Daniel em 2002 e marca, ainda que sem citar nomes ou legendas, a adesão do PT aos esquemas de desvio de verba para campanhas eleitorais e para enriquecimento individual de alguns dos envolvidos.

Em paralelo, além de outros materiais, foi lido o texto “Hamlet S/A”, encenado pela Cia Estrela Dalva, de Santo André e que aborda o mesmo tema.

"Conselho de classe" - Companhia dos Atores - Rio de Janeiro
Dramaturgia: Jô Bilac
Direção: Bel Garcia e Susana Ribeiro


Darcy Ribeiro, pelos idos de 1977, afirmava que a crise da educação brasileira não era propriamente uma crise, mas um projeto. “Conselho de classe”, de Jô Bilac, foi analisada no II Ciclo de Estudos sob essa perspectiva, tendo como texto paralelo de análise “A aurora da minha vida”, de Naum Alves de Souza.

Na sequência, nos debruçamos sobre “Mata teu pai”, em cartaz em São Paulo. Não sem antes retomarmos o percurso da dramaturga e estudarmos o mito de Medeia, a peça de Eurípedes; “Gota d’água” de Chico Buarque e Paulo Pontes; “Medeamaterial”, de Heiner Müller, bem como o filme “Medea” de Lars Von Trier.

A disputa territorial, as guerras e massacres, os movimentos populacionais e o próprio patriarcado vistos sob a ótica feminina motivaram a análise dessa potente dramaturgia.


"Mata teu pai" - Cia OmondÉ - Rio de Janeiro
Dramaturgia: Grace Passô
Direção: Inez Viana

O II Ciclo de Estudos da Dramaturgia Contemporânea – Brasil foi encerrado com a análise de “Maré”, texto autoral de Márcio Abreu, encenado pelo grupo espanca! em 2015, como quarto fragmento do espetáculo “Real”.

À proposição do grupo sobre a criação de um texto que refletisse  um episódio real, Márcio Abreu respondeu de forma poética ao abordar uma família cuja rotina foi drasticamente alterada com a invasão policial do Complexo da Maré em 2013. Dada a configuração singular da dramaturgia verbal, estudamos paralelamente a peça “Sete crianças judias” de Caryl Church.

"Maré" - episódio do espetáculo "Real" - Grupo espanca! - Belo Horizonte
Dramaturgia: Márcio Abreu
Direção: Marcelo Castro

Dessa vez, o Ciclo não rendeu um blog, mas um grupo aberto no facebook onde foram disponibilizados vídeos e outros materiais de estudo. Esse grupo continua no ar e pode ser acessado aqui.

Gostaria de agradecer aos participantes pelos encontros sempre tão produtivos, aos amigos e amigas que mediaram o levantamento de materiais e, finalmente, a Solange Dias, coordenadora pedagógica da ELT pela disponibilização de um espaço.

Durante a avaliação geral do projeto foi sugerido que um III Ciclo de Estudos abordasse a dramaturgia latino-americana. Vamos a ele. Notícias em breve.

Adélia Nicolete



domingo, 18 de junho de 2017

Processo colaborativo - I Colóquio Trupé de Pesquisa




Adélia Nicolete, Débora Brenga e Marcelo Lazzaratto
I Colóquio Trupé de Pesquisa - Sesc Sorocaba - junho de 2016
(Foto: Adriano Sobral)



A¨retomada dos trabalhos junto ao Núcleo de Dramaturgia da Trupé de Teatro de Sorocaba, suscita o registro de mais uma reflexão compartilhada no I Colóquio Trupé de Pesquisa realizado há cerca de um ano. O primeiro registro, “O centésimo espetáculo ou O teatro contemporâneo à luz da ressonância mórfica”, pode ser lido aquiNa postagem de hoje, minha intenção é abordar o processo colaborativo numa perspectiva política.

* * *

Quando comecei a fazer teatro, no final dos anos 1970, o teatro político há pouco chegara à região do ABC. Os grupos operários, em especial o Grupo Forja de São Bernardo do Campo, sob a direção de Tin Urbinatti, propunham um novo modo de se pensar e de se construir a cena, intimamente relacionado à oposição ao regime ditatorial do período.

As Comunidades Eclesiais de Base ligadas à ala progressista da igreja católica, por sua vez, fomentavam nos centros comunitários uma série de dinâmicas com vistas à discussão e à conscientização não só dos problemas locais, como também da esfera nacional e internacional. O teatro, especialmente aquele ligado à juventude, era um dos recursos mais eficientes.

Não foram poucos os grupos amadores que nasceram desses dois contextos e seguiram, com maior ou menor intensidade, o mesmo ideário. Participantes ou egressos desses grupos, muitas vezes, atuavam nas escolas como diretores ou atores, ocasião em que disseminavam não só a reflexão e a ação teatral como também materiais teóricos e dramaturgia.

Desse modo, em pouco tempo praticamente todos discutiam, encenavam ou ao menos tinham conhecimento da existência de Brecht, Piscator, Teatro de Arena e Oficina, Boal, Guarnieri, Vianinha, Buenaventura, Dragún, em sua maioria através de textos mimeografados.


Enrique Buenaventura (1925-2003)
Diretor, dramaturgo, autor colombiano - referência latino-americana
para os processo de criação coletiva


A criação coletiva dava seus primeiros passos numa região em que o teatro amador fora sedimentado em bases intuitivas e, portanto, carecia de técnica suficiente para uma ação propositiva dos atores. Por isso, embora houvesse intenções políticas libertárias, interesse genuíno por textos de elevado teor revolucionário, bem como o desejo de democratizar as discussões por meio dos famigerados bate-papos ao final de cada sessão, a maioria dos trabalhos seguia o padrão da “montagem” tradicional.

Em outras palavras, embora o objetivo fosse a conscientização – de quem faz e de quem frui teatro – o modo de produção era alienado: escolhia-se o texto pelo seu conteúdo, mas na hora de encená-lo, distribuíam-se os papeis por questões práticas, decorava-se o texto, marcava-se a cena e, em pouquíssimo tempo, apresentava-se. A ideia de “linha de montagem” parece adequada para analisar o procedimento: cada um encarregava-se de uma parte do processo, isentando-se da experiência como um todo e, consequentemente, da possibilidade de desenvolver autonomia, ainda que relativa.


Elenco e diretor do espetáculo "Os da mesa 10", de Osvaldo Dragún
Peça subversiva levada à cena em modo alienado de produção
1980


De certa forma, ainda hoje muitos grupos reproduzem modos de criação baseados na autoridade do dramaturgo/diretor; no tratamento diferenciado do elenco, segundo o tempo de grupo ou o status na companhia; na memorização de texto, bem como nos ensaios de marcação e na estreia a curto prazo, mesmo que o conteúdo proposto seja a crítica de um estado de coisas que precisa de urgente revisão.

Herdeiro da criação coletiva e nascido na efervescência dos teatros de grupo dos anos 1990, o processo colaborativo tende a recuperar um modo de fazer mais próximo de uma experiência ao mesmo tempo estética e política. Seu contexto gerador foi o neoliberalismo e a noção de mercado que se espraiou no terreno da cultura e que veio a suscitar um sem número de coletivos criadores, todos à margem da produção convencional em teatro, música, artes plásticas, cinema, literatura, etc. Tais coletivos tinham por meta abarcar todas as esferas da criação, desde a viabilização econômica cooperativada até a divulgação e a comercialização das obras, numa relação direta com o público, sem a mediação de produtores, agentes, curadores, marchands, distribuidores, etc. 

Além do mais, a ideia de um mercado da cultura tenderia a condicionar as obras aos interesses dos patrocinadores, o que não é inédito, vide o mecenato, por exemplo, mas não pode se tornar uma regra. Por isso, naquele mesmo contexto, o Movimento Arte Contra a Barbárie foi de importância fundamental para o estabelecimento de leis de fomento a fim de assegurar a produção de trabalhos dos mais variados perfis, muitos deles, dificilmente “patrocináveis” e criados em uma outra lógica que não a dos prazos exíguos.


A horizontalização de funções permite que a ideia de hierarquia seja substituída pela de responsabilidade criativa, isto é, cada participante, embora interfira criativamente em todas as áreas, responde e assina pela sua. Os conflitos daí resultantes visam à busca de soluções cujo foco é a cena e não a satisfação de uma ou de outra subjetividade. 


"Geração 80"
Teatro da Conspiração - Santo André - 2002
Criação em processo colaborativo


A experiência em diversas instâncias e funções, além de proporcionar uma aquisição de autonomia criativa, garante o exercício permanente da alteridade – cada vez mais necessária em tempos de intensa individualização.

Mesmo quando se opera a partir de um texto teatral ou narrativo de referência, ele é o disparador das pesquisas e das criações e não o centro, como nas encenações em molde tradicional. Esse texto é experimentado, questionado, partido, invertido, complementado ou mesmo substituído por outros textos sejam eles verbais, sejam corporais, vocais, musicais, pictóricos e assim por diante. Ou seja, o princípio da fidelidade, que entende a peça teatral como o ponto para onde convergem todos os esforços, é substituído pelo princípio da equivalência, da proposição de outros textos, seja em paralelo seja em disputa.


Atores e atrizes da Trupé de Teatro de Sorocaba
ensaio do espetáculo "Das guerras de um velho baixo caos" - 2015
Criação em processo colaborativo
(Foto: Adriano Sobral)


Quando o foco é a montagem de uma peça, os esforços se dirigem a ela. Quando o foco é o processo, como no caso do processo colaborativo, constrói-se não só a obra, mas a si mesmo – a obra é também resultado da auto-construção baseada no exercício contínuo de iniciativa, experimentação,  crítica, argumentação; de alteridade, socialidade, questionamento, inquietação, autonomia.

Como anotei nas conclusões de minha dissertação de mestrado *, o processo colaborativo , mais do que um método a ser seguido ou de um ideal a ser alcançado, é busca. A depender do tipo de proposta, do tipo de grupo; das condições econômicas, das circunstâncias espaço-temporais, é sempre uma busca. E é justamente nesse exercício que reside o seu sentido.


Adélia Nicolete



* NICOLETE, Adélia. Da cena ao texto: dramaturgia em projeto colaborativo. Dissertação (Mestrado em Artes) - USP, 2005. O download pode ser feito nessa página.