quarta-feira, 19 de abril de 2017

Dramaturgia contemporânea, Maier e Basquiat



Até bem pouco tempo o que se buscava na criação ou na leitura de uma peça teatral era uma espécie de unidade compreensível composta, dentre outros elementos, por uma fábula de fácil reprodução, desenvolvida por personagens definidos e nomeados, com vontades e força suficientes para colocar uma ação ou mais ações em marcha. Tais vontades deveriam encontrar oposições ou alianças capazes de intensificar a trajetória dos envolvidos por meio de atitudes físicas concretas ou, mais ainda, pelo diálogo interpessoal responsável por mover as ações rumo a um desfecho.  É bom lembrar que tais conflitos poderiam se originar de fatores externos, mas também internos.

Começo, meio e fim definidos e reforçados pelo fluxo causal, ou seja, pela articulação contínua de causas e suas consequências, terminavam por compor uma totalidade que, por sua vez, resultava numa ideia, num ensinamento, numa mensagem que condensava e definia a obra. A maioria dos sentidos vinham já embalados e rotulados, prontos para consumo e a apreciação estética guardava uma experiência de completude que a vida em si não conhece. Algo semelhante ocorria com as artes plásticas e suas obras de caráter figurativo.

Esse tipo de composição correspondia a um tempo de grandes e inquestionáveis verdades - narrativas salvíficas que abarcavam a ideologia política, a economia, a fé, o comportamento, a vida em sociedade e tudo o mais que, assim como o drama, fazia sentido a partir de determinada conformação. Correspondia a um tempo de autoridades e hierarquias definidas e respeitadas, a começar pelo Divino, cada um a cumprir o seu papel num organograma pré-existente e sem grandes chances de alteração.


A Revolução Industrial e as consequentes transformações no mundo do trabalho e da economia, na automação, nas novas configurações de tempo e de espaço, por exemplo, bem como na troca mais veloz de informação entre as diferentes culturas foi uma das grandes responsáveis pelas alterações nos modos de criação e apreciação artísticos. As Grandes Guerras do século seguinte, em especial a Segunda, marcaram uma ruptura ainda maior com os períodos precedentes.

Assim, as artes em geral, e aqui nos interessam especificamente as artes plásticas e a dramaturgia, responderam ao novo contexto com novas formas de expressão e de comunicação. Ambas conservam estratégias compositivas semelhantes e alguns de seus elementos são comuns.

Longe de pretender esgotar o assunto ou mesmo de aprofundá-lo da maneira devida, pois que se trata de um blog, lanço a seguir alguns elementos presentes na fotografia de Vivian Maier e nas obras de Jean-Michel Basquiat e que podem ser encontradas na dramaturgia contemporânea, para além da forma dramática, conforme prometido na postagem anterior.

* * *

Personagem indefinido, pouca ou nenhuma clareza de vontades e propósitos, escassez ou ausência de "foco" correspondentes à cisão interna do homem contemporâneo.

As proposições de Freud e Jung, por exemplo, foram fundamentais para uma nova abordagem da psique humana e, consequentemente, das personagens e figuras a serem retratadas artisticamente.


Vivian Maier - Autorretrato sem data



A totalidade facilmente apreensível da obra figurativa foi, aos poucos, dividindo espaço com proposições mais livres e abertas a interpretações por vezes díspares. Esse e outros trípticos de Basquiat ilustram a independência das formas contemporâneas de um modelo exclusivo de unicidade, que bem pode equivaler ao colapso das grandes metanarrativas estruturadoras.

Assim também a dramaturgia de nosso tempo opera com a fragmentação das ações, a desarticulação tempo-espaço, com a descontinuidade, a liberdade com relação aos cânones, seja do ponto de vista estrutural, seja na utilização/disposição não dogmática dos elementos.

Jean-Michel Basquiat - Sem título - 1982
("History of the black people")













A dramaturgia que escapa aos cânones da forma dramática, tal como esse autorretrato de Vivian Maier ou a tela de Basquiat, compõe-se de múltiplas camadas de sentido, oriundas de fontes diversas e espelha o modo de vida contemporâneo, sua contínua e acelerada produção de informações, dificilmente processadas ou devidamente apropriadas pelo sujeito.

Os espetáculos resultantes desse contexto mostram-se polifônicos, em especial aqueles criados por meio de dinâmicas coletivas e que conservam, em graus variados, a voz dos propositores, e polissêmicos, na medida em que não buscam ocultar a discrepância mais ou menos acentuada dos diversos códigos, recursos ou mesmo linguagens utilizados na encenação.


Vivian Maier - Autorretrato - 1971

Jean-Michel Basquiat - Notary - 1985

A composição dessa multiplicidade de fontes e materiais pode se dar por estratégias diversas tais como reprodução e repetição, colagem, justaposição, sobreposição e montagem de elementos, tanto nas artes plásticas quanto no teatro.


Vivian Maier - Autorretrato



Vivian Maier - Autorretrato




















A tela "Glenn" (1985), de Basquiat, é um belo exemplar desse conjunto de estartégias compositivas, como se pode ver nos detalhes seguintes à obra:


Jean-Michel Basquiat - "Glenn" - 1985
Acrílica, pastel e xerox sobre tela


Desenhos fotocopiados e coloridos com várias técnicas, colados de diferentes modos e em diferentes posições:


Jean-Michel Basquiat - "Glenn" - 1985
Detalhe


Não há preocupação com um acabamento esteticamente impecável. Uma ideia de pressa, de improviso e de urgência perpassa a obra e constitui mais um elemento na composição:


Jean-Michel Basquiat - "Glenn" - 1985
Detalhe
















A presença de texto verbal, não necessariamente concatenado, também propõe uma nova fonte produtora de sentido. Tal e qual em algumas peças e espetáculos atuais, o verbo pode não se aliar ao logos, pode ser acessado pela sua sonoridade, pelo seu ritmo, pela conjugação à voz e ao corpo do intérprete ou mesmo por projeções numa tela, num corpo, num suporte, enfim, ele também, significativo.

Jean-Michel Basquiat - "Glenn" - 1985
Detalhe


Basquiat utiliza-se de outros trabalhos seus nessa composição, numa clara autorreferência, no entanto, lança mão também de citações de obras plásticas ou literárias outras, bem como de conteúdos científicos, de ilustrações de anatomia, operações matemáticas, esboços e rabiscos que remetem à rapsódia característica de boa parte da dramaturgia de nosso tempo.

Jean-Michel Basquiat - "Glenn" - 1985
Detalhe















À camada de reprografias coladas, sobrepõem-se uma pintura que, por sua vez, também recebe novas camadas e interferências. 

A tela pode ser apreciada como um todo, porém, cada fragmento, observado de perto, dá-se a interpretações específicas, de enorme riqueza.


Jean-Michel Basquiat - "Glenn" - 1985
Detalhe

À semelhanças do grande número de autorretratos produzidos por Vivian Maier, uma presença cada vez mais "vísivel" dos criadores pode ser encontrata na dramaturgia contemporânea e suas autoficções, seus depoimentos pessoais, seu teatro-documentário.

Essa presença pode tomar pequenas ou grandes proporções no quadro ficcional, pode ser única ou se desdobrar e, com isso, alterar-se, como nos exemplos abaixo:


Vivian Maier - Autorretrato - 1961

Vivian Maier - Autorretrato - 1979



Vivian Maier - Autorretrato - 1956































E porque é preciso concluir a postagem de algum modo, mesmo sabendo que o assunto dispõe de outras e mais amplas abordagens, recorro a um obra de Basquiat capaz de ilustrar a sensação de incompletude de certas obras plásticas e teatrais.

De grandes proporções, o trabalho abaixo lança vetores de sentido em todas as direções. Lembra um certo tipo de composição realizado por muitas mãos, como num processo colaborativo. Alguns detalhes fazem pensar num prazo que se esgotou, num material que não foi suficiente ou mesmo numa vontade ou energia que se esvaíram antes que a tela pudesse ser devidamente concluída.

Mais uma vez há enunciados de origens diversas, que parecem cumprir uma função de preenchimento do espaço (ou dos espaços), muito mais por um princípio estético visual que por uma ordem pensada e estabelecida previamente.

A despreocupação em recortar simetricamente a margem esquerda do papel antes de fixá-lo na tela, embora não seja suficiente para impedir uma gestalt de unidade, caracterizada pela mancha ocupada pelos grafismos, pode equivaler às estratégias de desvelamento do modus operandi da cena: os atores que permanecem à vista do público, ainda que fora da cena; as luzes e o som operados pelos intérpretes; o efeito coringa; as luzes da plateia acesas; o intervalo operacional "vazio" entre os quadros de um espetáculo e assim por diante.



Jean-Michel Basquiat - Sem título - 1986
Acrílica, colagem e pastel sobre papel sobre tela
239 x 346,5 cm

Há um número gigantesco de exemplos a serem extraídos de Vivian Maier, de Basquiat, e de outros artistas, é claro, a fim de lançar luz sobre aspectos da dramaturgia contemporânea. Tanto essa abordagem me interessa, que a utilizei em minha tese de doutoramento.

Que a presente postagem possa estimular a/o visitante a novas e ainda mais interessantes buscas.


Adélia Nicolete


Algumas referências bibliográficas:

ARNHEIM, Rudolf.  Arte & percepção visual: uma psicologia da visão criadora. 2.ed. Tradução de Ivonne T. De Faria.  São Paulo : Pioneira, 1984.

NICOLETE, Adélia. Ateliês de dramaturgia: práticas de escrita da integração artes plásticas-texto-cena. Tese de doutorado. ECA_USP, 2013.

RYNGAERT, Jean-Pierre.  Ler o teatro contemporâneo. Tradução de Andréa S. M. da Silva. São Paulo : Martins Fontes, 1998.

SARRAZAC, Jean-Pierre.  O futuro do drama. Tradução de de A. M. Da Silva. Porto, Portugal: Campo das Letras, 2002.

UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Tradução de José S. Almeida Jr et al.  São Paulo : Perspectiva, 2005.


LIPOVETSKY, G. A era do vazio. Lisboa: Relógio d’Água, 1989.