domingo, 28 de agosto de 2016

Anton “O Grande Antônio” Barichievich - a escrita de si mesmo



Anton Barichievich - Cartão promocional - sem data
The Great Antonio Collection, Darling Foundry, Montreal


Para Ana Paula Patrone
e seu amor pelas colagens


Tão logo avistei as colagens d'O Grande Antonio nas paredes do American Folk Art Museum, fui atirada aos tempos do colégio. 

Cada início de ano letivo abria as perspectivas de um novo modo de ser, por isso muitas de nós caprichávamos na “carta de apresentação” aos colegas – espécie de painel onde nos exibíamos: as colagens feitas na capa da pasta ou do caderno.

Abraçadas ao material escolar, ele era nosso escudo, chegava à frente e, por meio de sua análise, declarada ou muda, encontravam-se os pares e poderíamos nos sentir menos apartados em nossa adolescência.  Aquela obra de arte revelava, por meio das imagens, a identidade com que gostaríamos de ser reconhecidas: nosso cantor ou banda preferidos, fotos de infância, lugares em que estivéramos ou gostaríamos de conhecer; cenas de filmes, ingressos de cinema e de shows. Frases de efeito ou textos românticos; caveiras, flores ou corações;  nossa vocação, nosso estilo, enfim. Cada detalhe compunha uma escrita de nós mesmas.

Ana Paula Patrone - Colagem em capa de pasta escolar - 1998
(acervo da artista)
Por isso, à medida que apreciava os cartões e pôsteres do artista, compunha um seu retrato, confirmado depois no catálogo da exposição, conforme relato a seguir.

Há indícios de que Anton Barichievich tenha nascido na Croácia em 1925. Durante a Segunda Guerra Mundial o exército britânico o recrutou em Albania, onde fazia trabalhos forçados, e o enviou para a Inglaterra, de onde imigrou para o Canadá em 1945 a fim de trabalhar nas docas de Montreal.

A força física daquele homem de 200 quilos ficou famosa a ponto de iniciá-lo na carreira de lutador profissional. Nascia ali O Grande Antonio. O personagem ganhou fama no decorrer de suas performances e foi imortalizado em uma série de colagens que ele mesmo fazia e vendia para o público, evocando suas gloriosas conquistas.



Anton Barichievich - Cartão promocional em que se mostra o lutador quando jovem 
The Great Antonio Collection, Darling Foundry, Montreal
Quando mais velho e longe dos ringues, era nas ruas de Montreal que O Grande Antonio exibia seus dotes. Desfilava para os transeuntes, carregava ou puxava pesos descomunais e até cantava ópera.

O Grande Antonio em uma de suas demonstrações de força











O Grande Antonio - exibição de força em 1978
Nos anos 1960 alcançou o recorde mundial ao puxar quatro ônibus urbanos de uma só vez














Famoso em Montreal, mesmo depois de sua morte em 2003, “O Grande Antonio se tornou objeto de numerosos artigos de jornais e revistas, os quais ele recortava e usava como base em seus trabalhos de colagem.” *  Eram fragmentos de textos e de manchetes, combinados em frases superlativas, cujo objetivo era engrandecer ainda mais sua figura e garantir para si um lugar na História.

“Tais aglomerados multilinguísticos e tipográficos, sem gramática específica ou hierarquia, provocavam uma leitura errática. Ele tomou emprestadas as estratégias de manchetes sensacionalistas da imprensa popular, que prendem de imediato a atenção do leitor, enquanto transmitem a essência da mensagem de modo sucinto.” *


Com o passar do tempo, Antônio modificou sua técnica ao justapor  camadas sucessivas de texto, o que eventualmente obscurecia os retratos originais. Além disso, retrabalhava constantemente suas colagens, tanto que  algumas chegaram a ter mais de vinte versões.


Anton Barichievich - Cartão promocional - sem data
The Great Antonio Collection, Darling Foundry, Montreal


“Sempre um hábil showman, ele maravilhava as multidões com sua personalidade carismática: pintava as unhas de vermelho, portava uma  corrente de 22 quilos ao redor de seu pescoço, e se vestia em trapos peculiares.” * E mesmo quando envelheceu, tentou bater um novo recorde: o de comprimento de cabelo com seus longos dreadlocks.

              Seu “escritório” era uma filial do Dukin’ Donuts. Era lá que dava entrevistas e que recebia suas correspondências e telefonemas. O Grande Antonio retornava a seu apartamento, do outro lado da rua, apenas às altas horas da madrugada.


O Grande Antonio em seu apartamento - 1976




Interessa-nos duplamente a figura criada por Anton Barichievich: o performer e o artista plástico em atuação combinada. As colagens, à primeira vista tão somente autopromocionais, são composições intrincadas que ultrapassam o arranjo texto-imagem para alcançar o retrato. A leitura dessas obras não se limita à apreciação dos recortes, pois nos apresentam um texto a pedir decodificação. Em cada uma das assemblages, Barichievich nos apresenta seu personagem de múltiplas formas, o que equivale dizer que os cartões são um complemento da performance, ou melhor, são um encarte, um libreto que “não pode ser vendido separadamente”. 

Sem suas colagens, O Grande Antonio seria apenas mais uma criatura a sobreviver na metrópole. 






Retomo a memória das pastas e cadernos adolescentes e vejo o quanto suas colagens nos ajudavam a compor a nós mesmas e à nossa performance ainda em processo.


Ana Paula Patrone - fragmento de colagem em pasta escolar - 1998
(Acervo da artista)


Adélia Nicolete


MORIN, Viviane Morin, ROUSSEAU, Valérie. Anton “O Grande Antônio” Barichievich. In: AMERICAN FOLK ART MUSEUM. When the curtain never comes down : performance art and the alter ego.  New York: American Folk Art Museum, 2015.  p. 30-31 (Tradução de Bernardo Abreu)



Biografia do performer por Sylvain Laquerre

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Giuseppe Versino



Vestimentas e objetos criados por Giuseppe Versino
Exposição "When the courtain never comes down"
(Foto: internet)

Na postagem de hoje dou prosseguimento à tradução e divulgação de parte do material recolhido no Americam Folk Art Museum de Nova York. Em meados de 2015, por ocasião de uma visita à exposição When the courtain never comes down (algo como Quando as cortinas [do palco] nunca se fecham), tomei contato com a obra de uma série de artistas, de diversos períodos e lugares, e que tinham em comum o diagnóstico de distúrbio mental. Dentre eles estavam o nosso Arthur Bispo do Rosário e o até então desconhecido para mim, Raimundo Borges Falcão.

O subtítulo da exposição, Performance Art and Alter Ego,  assinala outra semelhança entre muitos dos criadores apresentados: o fato de serem “performers” de suas obras. Há os que vestem, os que se exibem pela cidade, fazem “shows”, enfim, interagem criativamente com o trabalho criado e também com o público eventual.


Meu interesse pelo tema foi imediato, pois identifiquei a estreita relação entre artista/obra e o teatro, tanto do ponto de vista do resultante quanto dos modos de produção, sempre artesanal. É possível estabelecer pontes com a dramaturgia, o cenário (alguns deles desenvolveram habitações), figurinos e adereços, bem como a própria performance do ator. O presente texto contempla o trabalho de Giuseppe Versino. *


Túnica tecida por Giuseppe Versino
(Foto: internet)

  
O pouco que se sabe a respeito de Giuseppe Versino é graças à sua passagem pelo manicômio. Os registros do antigo Hospital Psiquiátrico de Collegno, norte da Itália, acusam seu nascimento em 10 de outubro de 1882 e o falecimento em 10 de abril de 1963, ambos em Turim. Ainda jovem foi internado com diagnóstico de esquizofrenia, tendo entrado e saído do hospital diversas vezes.


Dele não restaram documentos nem anotações pessoais. O único e precioso registro deixado foram algumas vestimentas que Versino teceu com as próprias mãos.

Detalhe da túnica tecida por Versino
(Foto: catálogo da exposição)


“O paciente afetado com demência precoce, senhor G. Versino, admitido no Hospital Psiquiátrico em Collegno, é encarregado da limpeza diária. Depois de usar os trapos para limpar, ele lava, desgasta e, finalmente, molda-os em cordões que, trançados e amarrados, formarão suas roupas. O peso da túnica que ele usa, tanto no verão como no inverno, é de 20 quilos. Levou aproximadamente um mês para fabricá-la.” *


A nota acima é atribuída ao famoso psiquiatra, criminalista e professor Antonio Marro (1840-1913), diretor clínico do Hospital de Collegno, é provável que ele tenha acompanhado boa parte das produções de Versino, tanto que se preocupou em conservá-las e disponibilizá-las para pesquisas acerca da conexão entre loucura e produção artística.

Casaco, calça e botas manufaturados por Versino
(Foto: catálogo da exposição)


Uma parte das peças criadas por Giuseppe Versino quando de sua internação em Colegno integra o acervo do Museu de Antropologia Criminal Cesare Lombroso, da Universidade de Turim e a outra, do Museu de Antropologia e Etnografia da mesma Universidade. 


Adélia Nicolete


* Veja também:

Raimundo Borges Falcão

Rock'N'Roll

Eijiro Miyama

Charlie Logan

Palmerino Sorgente


* *MANGIAPANE, Gianluigi. Giuseppe Versino. In: AMERICAN FOLK ART MUSEUM. When the courtain never comes down: performance and the alter ego. New York: American Folk Art Museum, 2015. p. 116. (Tradução de Bernardo Abreu) 

Museu de Antropologia Criminal Cesare Lombroso:
http://museolombroso.unito.it/index.php

Museu de Antropologia e Etnografia da Universidade de Turim:
http://museoantropologia.unito.it