quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Oficina Cerâmica Francisco Brennand


Para Gaby, Breno e Bruno,
que se aventuraram comigo pela Várzea e pela noite
depois dela *


Por mais que eu me esforce, não me recordo da primeira vez em que ouvi falar de Francisco Brennand.

Alguns artistas conheci no colégio, muitos outros na faculdade ou depois dela, mas Brennand parece me acompanhar desde a pré-história. Desconfio que a matéria principal de seu trabalho – a cerâmica – e as formas que ele lhe dá é que me causam essa impressão.

Francisco Brennand - Pássaro Rocca - escultura cerâmica
Estação Trianon-MASP do metrô de São Paulo

Há anos me deparo com ele e cumprimento seu Pássaro Rocca, instalado na estação Trianon-MASP do metrô de São Paulo. Sonhava conhecer o espaço criativo e expositivo que mantém no Recife, o que veio a acontecer no começo de agosto. 

Atravessamos o centro do Recife e tomamos o rumo dos arrabaldes. Depois de um bom tempo de carro até o bairro da Várzea, ainda percorremos 2,5km de terra, numa alameda de árvores e bambus, até chegarmos à Oficina Cerâmica Francisco Brennand, instalada nas terras pertencentes à sua família desde o século 19.

Os quatro saltimbancos que nos recebem à entrada da Oficina
Os galpões da antiga olaria da família ao fundo
(Foto: Adélia Nicolete)



















Chafariz próximo aos saltimbancos
(Foto: Adélia Nicolete)


A ideia era encontrar o artista por lá - aquele senhor de noventa anos, lúcido, em plena atividade. "Veio e já se foi", anunciou um dos estagiários. 

Brennand visita a Oficina diariamente. Percorre o espaço expositivo, faz vistorias, confere a produção e desenha. Prefere ser reconhecido como desenhista e pintor, avisa o estagiário, diz que sem esse conhecimento, não seria capaz de projetar suas esculturas e encaminhá-las para os artesãos.

Francisco Brennand ao lado de uma peça
Ao fundo, mostruário de pisos e azulejos de sua criação
(Foto: internet)




















Herdeiro da propriedade, o artista transformou a fazenda e a olaria desativada da família em sua Oficina Cerâmica no início dos anos 1970. Restaurou e conservou os galpões e algumas casas, ergueu um teatro, uma galeria, algumas instalações e pediu a Burle Marx que se encarregasse do projeto paisagístico.

Jardins de Burle Marx
Ao fundo, prédio da Accademia - galeria onde estão
expostos os desenhos e pinturas de Brennand
(Foto: Adélia Nicolete)

Fui acompanhada por três participantes do Ateliê de Dramaturgia e Memória que ministrei na cidade. Percorremos demoradamente toda a área externa, decorada para receber os visitantes. Na verdade, penso que adiamos um pouco o acesso que leva ao Templo Central, ponto mais conhecido da Oficina e espécie de ícone do pensamento/conceito de Brennand. 


Templo Central - talvez a imagem mais conhecida do local
O templo guarda o Ovo Primordial, símbolo caro a Brennand
e que se relaciona com a própria Vida
(Foto: Adélia Nicolete)



















O Ovo Primordial sob a abóbada turquesa
e defendido pela força das presas
(Foto: Adélia Nicolete)


Caminho de Acesso ao Templo Central
À direita, exército de Pássaros Rocca guardam o espaço
(Foto: Adélia Nicolete)













As plantas voltam a ocupar
a terra
(Foto: Adélia Nicolete)


Ainda jovem, Francisco Brennand despertou para as Artes Plásticas, o que o levou à Europa a fim de estudar desenho e pintura. Seu contato com a cerâmica, até então, não passava de uma relação utilitária. Foi somente quando entrou em contato com as peças de Picasso e Miró, principalmente, que teve seu interesse despertado pelo potencial artístico do material e passou a se dedicar à pesquisa e à produção.

Por isso, entrar em contato com todo o acervo de esculturas, paineis e instalações da Oficina (veja imagens logo abaixo) foi como testemunhar cada detalhe e etapa dessa descoberta. Ali podem-se ver as diversas possibilidades da cerâmica; o mergulho de Brennand na mitologia, na psicologia, na História, na Filosofia, bem como seu profundo respeito para com os materiais envolvidos - do barro ao fogo.



Parte do espaço expositivo das cerâmicas
(Foto: Adélia Nicolete)

Ainda no espaço expositivo, área que remonta
às saunas romanas, revestida com a
cerâmica do artista
(Foto: Adélia Nicolete)


Área destinada à manufatura das peças
(Foto: Adélia Nicolete)































Painel cerâmico
(Foto: Adélia Nicolete)


Algumas construções da antiga fazenda/olaria foram adaptadas a novas instalações, como o Templo do Sacrifício, que abriga várias peças do artista. Além disso, uma grande quantidade de obras está espalhada por toda a área de visitação.


Templo do Sacrifício - área interna(Foto: Adélia Nicolete)

Templo do Sacrifício
(Foto: Adélia Nicolete)



Serpente
(Foto: Adélia Nicolete)















(Foto: Adélia Nicolete)

(Foto: Adélia Nicolete)
















(Foto: Adélia Nicolete)


Visitar o espaço e ter contato pessoal com as obras me fez compreender um pouco mais a sensação de que as conhecia há um tempo sem conta. A própria temática de Brennand, ou uma delas, liga-se à preservação da vida – pulsão comum a todos nós. As formas orgânicas, do mesmo modo, nos são próximas. Compreendi também o porquê de um desejo tão grande por conhecer a Oficina.

A instalação das peças no local em que foram imaginadas, tiradas da terra e “paridas” em sua forma final atua sobre nós, visitantes, como uma espécie de “campo fértil de arte”. Ver o mato cobri-las aos poucos, reclamando sua origem, e saber que Brennand as quer ali para sempre nos oferece um sentido precioso de permanência, bastante raro nos tempos que correm.

Em uma época do provisório, do descartável, da impermanência, a obra de Francisco Brennand fundeada na Várzea pernambucana, é solidez, culto à memória ancestral, convite a se meditar sobre o Grande Mistério.



Visita inesquecível na deliciosa companhia de
Bruno, Breno e Gaby
*Agosto de 2017*



Aqui, o site oficial da Oficina Cerâmica Francisco Brennand, onde podemos encontrar mais informações acerca do local, tais como horários, valores, acesso, etc.

E no vídeo abaixo é possível saber um pouco mais a respeito de Brennand e da Oficina.





Adélia Nicolete


* Em caso de se utilizar o serviço de Uber ou táxi, recomendo deixar bem claro o local, tanto na ida quanto na volta. Caso contrário, pode-se ir parar no Instituto Ricardo Brennand, que não tem praticamente nada a ver com a Oficina. Em se tratando da volta, à noite, o risco do veículo não chegar pode dificultar bastante o retorno à cidade.










terça-feira, 15 de agosto de 2017

A escrita conjura


Leonilson - "Empty man" - 1991
bordado/escrita em preto sobre "red work" familiar
Para Nina Veiga
e todas as autoras do livro
"Artes-manuais: narrativas e memórias afetivas" 


Puxar o fio da memória, alinhavar uma ideia, tecer um raciocínio, arrematar o assunto. Quanto das manualidades habitam o nosso imaginário mesmo se nunca pregamos sequer um botão? Quanto dessas práticas ancestrais escorrem pela nossa língua? “O que você está tramando, menino? Não me enrede na sua conversa! Você não dá ponto sem nó!” Quanto renasce em nossas canções? “É a sua vida que eu quero bordar na minha, como se eu fosse o pano e você fosse a linha?”
Pois foi esse o ponto inicial para a elaboração do Ateliê de Memórias e Escrita Criativa que ministrei na Pós Graduação em Artes-Manuais para a Educação em setembro de 2016. Sempre me fascinou a estreita relação entre a escrita e as manualidades, em especial aquelas ligadas à fiação. A própria palavra texto remete a têxtil, ou seja, tecido. As novelas, algumas delas capazes de parar todo um país, derivam de novelo, aquele fio que se desenrola, no caso da televisão, dia após dia, cheio de nós a serem desatados. Por falar nisso, as boas histórias têm e desenlace e se não for possível narrá-las numa enfiada só, é preciso saber cortá-las no momento certo se quisermos que o ouvinte anseie por retomar a trama.
Do mesmo modo, fascinantes são as narrativas ocultas nas manualidades. A moça que bordava o enxoval fazia conjuras de amor: a letra inicial de seu nome enlaçava-se à do noivo, ambas protegidas por uma guirlanda de flores a propiciar paixão e fertilidade nas roupas de cama. Quantas expectativas ao tecer ou bordar o enxoval da criança esperada? Na escolha dos motivos, dos pontos e das cores o desejo de saúde e sorte, a prece. Novas conjuras. E o que nos diz a mortalha, enfim? Costurada ponto a ponto, pranto a pranto, escrita de saudade e de dor.
Manualidade ancestral é também o livro que agora temos em mãos. Sua origem são peças afetivas garimpadas pelas alunas do curso e trazidas aos olhos e aos ouvidos do grupo. O que tem de especial uma toalha de mesa bordada? O que me contam uma touca, um babador ou um vestido de crochê? A peça decorativa ou utilitária, que segredos ela guarda? Quem teceu? Quem ofertou? Em que momento e por quê?
A preciosa história de cada peça foi narrada a uma colega que, com o cuidado de quem fia a seda, se apropriou do que ouviu e transformou em texto – tecido de letras e de sons. Depois de escritas, as histórias foram lidas para todo o grupo de modo a habitar cada uma das participantes e a formar, a partir delas, novas tramas. A seguir,  um grupo de diligentes editores tratou de tecer uma nova camada narrativa ao dispor graficamente textos e imagens no papel. Com isso, o livro passa a ser uma nova peça a reunir todas as outras, colcha de retalhos, urdidura em que os leitores tecerão suas próprias narrativas e memórias num enredo sem fim.
As memórias ligadas às manualidades unem os fios do presente e do passado a fim de fortalecer os laços com a ancestralidade. Ao reavivarmos nossa relação com esses fazeres ancestrais invocamos as forças que os produziram e nos apropriamos delas para seguir adiante. Que o texto escrito que daí tecemos possa conjurar, por sua vez, a volta das manualidades e todas as suas narrativas singulares ao nosso cotidiano.

Adélia Nicolete

Prefácio do livro "Artes-manuais: narrativas e memórias afetivas" a ser lançado no dia 11 de novembro próximo.