domingo, 27 de setembro de 2015

Ateliê de Memórias – São José dos Campos


Fachada da Casa de Cultura Tim Lopes
(Foto: Adélia Nicolete)


A utilização de recursos literários para a escrita memorialística foi o tema principal do Ateliê de Memórias, conduzido no dia 26 de setembro na Casa de Cultura Tim Lopes, em São José dos Campos.

Todos nós, em alguma circunstância, nos utilizamos da escrita para registros de momentos de nossa vida. Agendas e diários são exemplos clássicos desse tipo de texto. Utilizados como pura forma de expressão ou simples anotações, não objetivam o compartilhamento e, portanto, prescindem de tratamento literário. Ao pretendermos a comunicação desses escritos aos leitores de modo a diverti-los, emocioná-los ou convidá-los a conhecer um pouco mais sobre nossa história (de nossa família, comunidade ou até de um animal de estimação*, etc), faz-se necessária uma série de elementos, todos eles utilizados também na ficção.


Atividade escrita
(Foto: Adélia Nicolete)


É como se, diante do material disponível que é a nossa vida ou uma fatia dela, nos tornássemos um Autor diante de Outro ser, cuja história trataríamos de narrar.** Esse Autor lançaria mão de recursos tais como organização e encadeamento dos fatos e ações; suspense e criação de expectativa em certas ocasiões, metáforas e imagens poéticas em outras. Ele daria um colorido ainda mais cômico a passagens engraçadas e poderia trabalhar um ritmo vertiginoso em trechos de aventura. Fatos excepcionais poderiam ganhar tons que os tornassem mais fantasiosos e o que misterioso fosse, ganharia ares de Filosofia.

Por vezes lembramos de passagens de nossa vida com tantos detalhes, que as recriamos em imagens, sons, cheiros, sabores e outras sensações físicas. O Autor pode transmitir esses e outros detalhes em seu texto, a fim de convidar o leitor para senti-los como nós os sentimos. ***



Atividade escrita
(Foto: Adélia Nicolete)

A pesquisa é outra grande aliada quando se quer tornar o texto memorialístico ainda mais interessante.**** Dados históricos, hábitos e expressões de época, por exemplo, são capazes de provocar grande empatia no público leitor.***** São dados que se prestam, inclusive, a preencher lacunas ou a justificar ações e comportamentos citados na narrativa.

Ao criar um Narrador para a nossa história, o Autor poderia propor a narrativa em primeira pessoa, fechada nas próprias lembranças ou, por que não, um diálogo direto com o leitor, tornado cúmplice.



Jogo de cartas utilizado para a criação dos textos

Logo após a explanação teórica, foi proposto um jogo a fim de estimular a memória, a criatividade e a atividade escrita. A partir do sorteio individual de três cartas, cada uma delas contendo um “quem”, um “quando” e um “o que”, os participantes trataram de lembrar-se de alguma situação de sua vida ou de alguma história conhecida que envolvesse os três disparadores. Em seguida, organizaram e escreveram suas narrativas, levando em conta, se possível, os recursos literários discutidos previamente.

Jogo concluído ao lermos os 30 textos memorialísticos cuja abordagem variou entre a fantasia, a comédia, o erotismo, o romance, o terror, o poético, o nostálgico, alguns deles a mais pura ficção!


Atividade escrita
(Foto: Adélia Nicolete)

Agradeço a todos os escrevedores pela presença e pelas memórias compartilhadas, à Erika, Poliana e Claudiomar da Casa de Cultura pelo convite e pela recepção, e ao Wangy Alves que, mesmo ausente, esteve presente.


* Como exemplo, indicamos a leitura e "Flush - biografia de um cão", de Virginia Woolf

** Sobre o tema, consultar o capítulo sobre Biografias em "Estética da criação verbal", de Mikhail Bakhtin

*** Citamos, nessa altura, "Seis propostas para o próximo milênio", de Ítalo Calvino


**** Citamos como exemplo a pesquisa realizada por José de Souza Martins para a realização de seu livro autobiográfico "Uma arqueologia da memória social"

***** Recomendamos a leitura de "Nu, de botas", relatos da infância de Antonio Prata




Adélia Nicolete

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Eijiró Miyama


Eijiro Miyama, Yokohama, 2013 
(Foto: Nadya Lev)


Nossa quarta postagem sobre artistas que operam com descartes é dedicada a Eijiró Miyama (Japão, 1934), um trabalhador da construção que somente depois de se aposentar começou a dedicar-se às artes plásticas e à performance.



Eijiró Miyama em uma rua de Yokohama - 2014
(Foto: Mario del Curto)


Com um orçamento bastante restrito, Miyama vive em um apartamento minúsculo na periferia de Yokohama. É em seu quarto, que mede cerca de 2m x 4m, que ele armazena cuidadosamente os adereços utilizados em suas apresentações. Uma cadeira reclinável serve de cama, um televisor, de diversão, e o vestíbulo guarda ferramentas e sucatas. Devido à falta de espaço, é na cobertura de seu prédio que o performer ensaia.

Eijiró Miyama no telhado de seu prédio em Yokohama - 2009
(Foto: Mario del Curto)

Tudo começou com os chapéus, feitos a partir de tigelas de macarrão instantâneo decoradas. Aos poucos seu trabalho foi aprimorado e hoje os mais diversos adornos vêm de todos os lugares: doações de amigos e de estranhos, mercados de pulgas ou mesmo do lixo.


Eijiró Miyama
(Foto: internet)

Segundo o fotógrafo e colecionador Mario Del Curto, “Miyama-san tem muito senso de estilo e faz escolhas sofisticadas para seu figurino: tal chapéu combina com tais óculos; tais óculos fazem conjunto com tal vestido, tal flor vai com tal chapéu. Tudo é codificado." - o que toma tempo, mas é o grande  prazer  do artista. *


Eijiró Miyama
(Foto: internet)

Miyama ensaia durante a semana e quase todos os domingos sai, em sua bicicleta, para exibir-se pela região ou em Tóquio. A ação é simples: espalhar mensagens de paz por onde anda – “sua personagem e aparência são como uma pequena pedra no sapato da conformidade.” *

_ “Residentes de Yokohama, residentes do mundo, olhem para mim e aproveitem!” *

Eijiró Miyama
(Foto: internet)

Ao pensarmos em uma possível “dramaturgia” de seu trabalho, seja em termos estéticos seja em termos procedimentais, ocorre-nos alguns textos do ator, diretor e dramaturgo santista Victor Nóvoa, em especial Verniz náutico para tufos de cabelo, escrito em 2014, encenado e publicado em 2016.

Logo na rubrica inicial, Nóvoa apresenta as personagens e situa o leitor no ambiente em que se dará toda a ação, o que, sem dúvida, remete ao universo de Miyama:

“Escuridão total. Sons de um corpo se debatendo no chão e vozes de duas mulheres tentando ajudar. Silêncio total e prolongado. Vê-se apenas uma seringa sendo preparada e aplicada no braço da Mulher Inerte. Aos poucos revela-se uma cozinha abarrotada de utensílios domésticos, todos os tipos, tamanhos e cores de quinquilharias para casa, as duas personagens mal conseguem se mover no meio desta enorme bagunça. A sensação de claustrofobia e dificuldade de movimentação dentro da cena irá se estender por todo o espetáculo. De um lado das quinquilharias está a Cuidadora, ela amarra fitas cor-de-rosa em um cartão com tufos de cabelo. Filha da Mulher está arrumando uma mesa de aniversário e tentando abrir um espaço para colocar cadeiras para os convidados, faz isso enchendo bexigas. Um contrarregra irá colocar mais objetos no decorrer da cena; os objetos devem ser colocados de forma que atrapalhe a movimentação das personagens.” **


Cena do espetáculo Verniz náutico para tufos de cabelo
(Foto: Alécio Cezar)


Ao longo da peça, percebemos que os objetos acumulados no pequeno espaço são o duplo concreto do acúmulo ideológico da personagem Filha da Mulher e, por extensão, do acúmulo a que todos nós estamos submetidos.

O consumo e o ritmo veloz que caracterizam o viver contemporâneo, em especial nas grandes cidades, bem como a imensa variedade de estímulos ao nosso alcance, podem nos impedir de viver em profundidade as experiências de fruição ou mesmo de relação interpessoal. Assim, o que pensamos, sentimos e dizemos é, por vezes, muito mais reativo que ativo, isto é, trazem a chancela do provisório e do descarte:


“Cuidadora procura as bexigas por entre as quinquilharias. Não acha. Silêncio.

CUIDADORA — Está difícil de achar.

FILHA DA MULHER — “A felicidade de encontrar algo é muito maior quando nos esforçamos sozinhos”, Pedro Bial.

Cuidadora continua procurando e seu corpo fica afundado no meio dos objetos, está visivelmente com muita dor.

CUIDADORA — Sabe se tem algum lugar em que possa estar?

FILHA DA MULHER — Oh, meu Deus, estou aqui concentrada nas lembrancinhas, tenta naquele armário.

Cuidadora vai até o armário e abre. Caem muitos objetos dele. Ela acha as bexigas e as entrega à Filha da Mulher.

FILHA DA MULHER — Encha bexigas, duvido que seu dente doa agora. Concentre-se, “Todo ofício leva à metafísica”, Dostoiévski. Esta eu li numa revista especializada em cupcakes.

Cuidadora começa a encher uma bexiga.” **


Se Miyama seleciona, recolhe e estabelece combinações e funções para a sucata encontrada na rua, dando-lhe um sentido artístico, mas ao mesmo tempo crítico, o material recolhido por Nóvoa é de outra ordem. À parte a sucata que se acumula no apto da personagem, são as frases e comportamentos estandardizados o que plasma a dramaturgia da peça - metáforas que se complementam. Em outras palavras, quando tudo passa a ser consumido apenas e não verdadeiramente assimilado e apropriado, o que se tem é o esvaziamento. Segundo Nóvoa, “o discurso se esvazia e ficamos apenas com o verniz, daí que Pedro Bial e Dostoiévski tornam-se a mesma coisa”. Aliás, coisificação parece ser um termo bastante adequado nesse contexto.

Detalhe do cenário do espetáculo Verniz náutico para tufos de cabelo
(Foto: Alécio Cezar)


“FILHA DA MULHER — Então. Todos terão uma lembrança linda e macia da mamãe. Aliás, está na hora de arrumar mamãe pra festa.

A Filha da Mulher procura sua Mãe e remove muitas quinquilharias.

FILHA DA MULHER — Pare de pendurar bexigas e me ajude a procurar mamãe.

Cuidadora a ajuda a procurar e remove muitas quinquilharias sem achar a Mulher Inerte.

FILHA DA MULHER — Sempre deixei minha mãe entre os CDs de axé e as enciclopédias Barsa e Conhecer. Agora vejo os CDs e as enciclopédias e nada de mamãe. Você tirou alguma coisa do lugar?

CUIDADORA — Você pediu para limpar as enciclopédias, mas tomei todo o cuidado de colocar no mesmo lugar.

FILHA DA MULHER — Pelo jeito todo o cuidado que você tomou não foi suficiente, senão minha mãe continuaria entre os CDs e as enciclopédias.

CUIDADORA — Hoje está sendo um dia péssimo, talvez eu...

FILHA DA MULHER — Qual é sua função nesta casa?

CUIDADORA — Cuidar da sua mãe.

FILHA DA MULHER — Então não se meta a limpar as coisas.” **


É como se o que restasse das vivências e dos contatos com o mundo fosse somente a espuma, o que é superficial. Assim, a relação patroa-empregada se desumaniza tanto quanto a relação mãe-filha. Daquela, resta a exploração e a insensibilidade, desta, o verniz de uma comemoração de aniversário sem sentido.

Curiosamente, a ideia original para o texto surgiu de uma situação vivida pelo dramaturgo: na festa de aniversário de uma moribunda, os convidados eram levados a posar com a aniversariante, obrigando-se a um sorriso “envernizado”. A partir dessa potente imagem geradora, Nóvoa recuperou cheiros, sensações e outros estímulos que, “friccionados” entre si, agregados a outros materiais e sujeitos a interferências externas de parceiros, geraram a peça. Um excelente exemplo de dramaturgia do descarte.


"CUIDADORA — Olha... Hoje está sendo um dia péssimo, não consigo me concentrar em nada, cada palavra que você fala fica girando demais antes de eu entender, talvez seja o dente, deixa eu...

FILHA DA MULHER — Achei mamãe.

(Por debaixo de muitos objetos está uma maca de hospital e em cima dela a Mulher Inerte, completamente paralisada, mas com olhos abertos)

FILHA DA MULHER — Vamos deixar a mamãe mais bonita do que já está pra festa. Afinal, ela é a aniversariante. “Cada ano que passa ela fica mais velha”, de quem será esta frase? Tem umas coisas profundas que gritam dentro da gente e ninguém sabe quem criou. Bonito, né? Me ajude a trocá-la. (Silêncio) Me ajude a trocá-la." **

Cena do espetáculo Verniz náutico para tufos de cabelo
(Foto: Alécio Cezar)



Adélia Nicolete



Eijiró Miyama pode ser visto em ação nos endereços abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=3NKVuYaeSUk

https://www.youtube.com/watch?v=Q9OTrJVzdxw



* DEL CURTO, Mario. Eijiró Miyama. In: AMERICAN FOLK ART MUSEUM. When the curtain never comes down : performance art and the alter ego.  New York: American Folk Art Museum, 2015.  p. 81 (Tradução de Bernardo Abreu)

**  NÓVOA, Victor. Verniz náutico para tufos de cabelo. São Paulo: Giostri, 2016.

(Obs: essa postagem foi atualizada em 27 de janeiro de 2017)