terça-feira, 5 de março de 2019

Prefácio do livro "Artes manuais e seus encontros", de Karla Santori


No final de 2017, tive o prazer de participar da banca de Karla Santori na finalização de sua Pós-Graduação em Artes-Manuais para a Educação. O curso, sob a coordenação da Profª Drª. Nina Veiga teve lugar n'A Casa Tombada em São Paulo e os trabalhos finais resultaram em uma coleção que já é referência no assunto. Para minha alegria, Karla convidou-me também a prefaciar o seu texto, linhas que compartilho logo abaixo.




Encontros notáveis


“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pireneus! Ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!”

(Mário de Andrade)


Dentre as tantas interpretações de Trezentos e cincoenta - o famoso poema de Mario de Andrade – ao menos uma delas conversa de perto com o livro de Karla Santori ora publicado: a busca incessante de si mesmo por parte do narrador. Ao se deparar com uma das faces possíveis, outras são despertadas, dentro de si ou a partir do contato com o Outro, seja próximo, seja no Piauí ou alhures. Talvez o mais importante não seja a descoberta e sim a própria busca.

A partir da criação de uma personagem – Clara (um anagrama de Karla) – a autora empreende uma retrospectiva de sua trajetória sob o ponto de vista das artes-manuais. Numa expedição arqueológica e marcadamente poética, sai em busca de alguns encontros significativos, que muito provavelmente forjaram-na como artista, e dos objetos que os testemunharam. Na medida em que compartilha conosco cada um dos encontros, temos reveladas, por consequência, novas faces da narradora.

O recurso de utilizar-se de uma personagem alter-ego e de um narrador onisciente mostra-se libertador: com ele Karla pode tomar-se como matéria de estudo a fim de se reconhecer, se afirmar e saltar para novas buscas, afinal o livro é resultante da Pós-Graduação em Artes-Manuais para a Educação e espera-se que seja o primeiro de muitos. Além de libertador, o distanciamento narrativo permite que nós, leitoras e leitores, entremos em contato com as ações, com o que a personagem fala, pensa, intui, sonha, questiona e, se não bastasse, com algumas análises e conclusões.

“Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!”


O texto de palavras tecido pela autora ao longo de cada capítulo, propõe os encontros como urdidura em que será tramada uma variedade digna de nota: lembranças e relatos; questões, reflexões e sensações; poemas, sonhos, intuições; imagens, rituais, cores, cheiros e sabores e, não bastasse, projetos para o futuro. Em sua aventura pela linguagem, utiliza-se, inclusive, de negrito e diferentes tipos de fontes e suas dimensões. Cada capítulo é uma peça singular, tem unidade, tem força, é um tecido firme e único.

E do que trata cada capítulo? Numa primeira análise, de encontros significativos em torno das artes-manuais. A autora pontua sua trajetória de vida sob a ótica do fazer artístico e nós formamos, ponto por ponto, um quadro de quem é a Karla e de como se deu o contato com as diversas técnicas, por exemplo. Poderia ser isso e a tarefa já estaria cumprida. Porém, ela não se limita a um relatório ou um depoimento. Eu diria que a Antroposofia transparece no seu trabalho na medida em que a trajetória não é abordada tão somente do ponto de vista factual, mas da totalidade que ela abarca, suas implicações mais profundas.

O livro forma, pois, um conjunto harmonioso em função de mais um expediente: os entremeios poéticos – feito aqueles entremeios rendados que servem para decorar uma vestimenta ou um trabalho bordado, mas também para arejar e dar destaque a cada unidade que agrega.


“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.”


Falemos, finalmente, dos encontros que dão título ao livro. Conforme comentamos, são lembranças que vêm à tona, suscitadas por uma indagação do presente: quem e o que me formou e me forma como artista? Trata-se de um olhar atento e demorado para o que se viveu em fluxo a fim de se garimpar, de se trazer à luz algo de mais impressionante e compartilhá-lo. O que não for lembrado (a grande escuridão que suporta os lampejos da memória) presta-se a condensar as experiências realmente significativas.

Tais encontros preciosos, ao contrário do que possamos pensar, não se dão necessariamente com pessoas célebres. Sua importância é identificada a partir do nosso olhar de buscadoras e buscadores. O olhar é que atribui a essas pessoas um sentido capaz de completar, preencher, dar sentido à nossa empresa. E vice-versa: o encontro conosco pode igualmente justificar em parte a existência dessas pessoas. Artes-manuais e seus encontros é repleto de exemplos.

Clara tem dificuldade de se relacionar com uma colega de trabalho e, embora tente reconsiderar a aversão, parece que a antipatia é recíproca. Quando desiste de forçar uma aproximação e concentra-se em suas próprias atividades, leva para o escritório um trabalho de ponto-cruz. É o que basta para gerar a empatia da colega, que olha para ela como a uma igual, pois também aprecia as artes-manuais. Ambas iniciam uma nova relação, que cresce fortalecida, baseada no compartilhamento de saberes e fazeres que subjazem ao cotidiano profissional e se instalam na esfera do espírito.

Em outras oportunidades, a protagonista visita uma loja ou se hospeda numa pousada e aprecia o trabalho delicado das artistas-anfitriãs. Essas, por sua vez, encontram sentido em suas criações por meio do olhar da viajante e de seu testemunho. Encontros fortuitos, porém notáveis. Clara vive uma situação parecida com a dessas artistas quando traz uma menina para casa depois de um acidente automobilístico. A pequena admira as caixas encapadas com esmero – por um momento o acidente e a separação da mãe ficam em suspenso em seu coração. Fica fascinada por uma delas em especial e Clara identifica naquele olhar uma valorização inigualável de seu trabalho, tanto que presenteia a menina com a caixinha quando ela parte com o pai.

Nesses quatro exemplos, é pelo olhar do Outro que se atribui um sentido e um valor ao próprio fazer artístico. Um valor incomensurável de reconhecimento do talento e do esforço empreendidos.

As leitoras e os leitores, por sua vez, ao encontrarem o livro de Karla e suas narrativas, poderão, quem sabe, deparar-se consigo mesmos ao rememorarem a própria trajetória. Podem, além disso, sentir-se estimulados a partir pelo mundo em busca de encontros notáveis. Um dia, certamente, toparão consigo mesmos e toda a experiência vivida nos Encontros constituirá o abrigo da alma.


Adélia Nicolete




SANTORI, Karla. Artes-manuais e seus encontros. Org. de Ana Lygia Vieira Schil da Veiga. São Paulo: Círculo das Artes, 2018. (Coleção ARTES-MANUAIS PARA A EDUCAÇÃO: aprendizagem e processos de singularização; vol. 1)