quarta-feira, 30 de julho de 2014

"O que é a dramaturgia" - fragmentos de Joseph Danan


     Nosso mestrado, sob orientação da Profª Sílvia Fernandes, abordou a dramaturgia em processo colaborativo. Consideramos que o dramaturgo que atua junto da cena, compartilhando com os demais artistas a criação do texto (mesmo quando ele não é verbalizado) seria herdeiro tanto das práticas da criação coletiva quanto das funções do dramaturgista – responsável por pesquisas, proposição de reflexões, adaptação ou transcriação de textos já existentes, acompanhamento de ensaios, escrita de diversas versões até a definição do texto “final”.

      No projeto de doutorado, sob orientação da Profª Maria Lúcia Pupo, nos deparamos novamente com o tema da dramaturgia contemporânea. E ao tomarmos contato com o livro Qu'est-ce que la dramaturgie?, verificamos que, segundo seu autor, Joseph Danan, o espectro da dramaturgia enquanto função se ampliou, abarcando, inclusive, o trabalho de dramaturgismo.

      Objetivamos, nos limites deste artigo, apresentar algumas das reflexões de Danan, com vistas a nutrir a discussão do tema no contexto brasileiro: a dramaturgia como escrita e como passagem para a cena.

Dualidade fecunda e significativa
     
      Depois de fazer um levantamento das diversas definições de dramaturgia ao longo do tempo, Danan propõe dois sentidos básicos para o termo, que se ramificam e interagem permanentemente. O primeiro deles se refere à função do autor dramático, dramatiker, em alemão. É a noção mais convencional e, sob alguns aspectos, mais limitada do termo.

      O segundo sentido se refere à função do dramaturgista, dramaturg, em alemão. Aquele que não é o autor do texto dramático, mas que desempenha uma série de atividades que efetivamente envolvem a dramaturgia.

      Danan avisa que não são as máscaras (personas) do autor dramático e do dramaturgista que interessam, “mas a função nomeada dramaturgia que elas encarnam, assim como a carga teórica e prática desta noção” (DANAN, 2010, p. 6). Temos, portanto, uma primeira reflexão a respeito de nosso tema: a noção de dramaturgia que se amplia da criação individual de uma peça de teatro (sentido 1), com toda a pesquisa que tal atividade implica, para o trabalho junto da cena (sentido 2). Para Danan o dramaturgista desempenha a função dramaturgia, tanto quanto o autor dramático e, como veremos adiante, toda a equipe.

      No Brasil, porém, embora recorramos esporadicamente ao trabalho do dramaturgista desde os anos 1980,  sua função, por aqui, ainda não tem o status da do dramaturgo. É o que podemos notar no depoimento de Cacá Brandão, dramaturgista do Grupo Galpão, de Belo Horizonte:

“Se na Alemanha, onde sua figura surgiu, ele tem um dos mais altos cachês e, junto com o diretor, é quem começa e vai definindo a peça, aqui ele é pouco veiculado na mídia e aparece mais como figura acessória aos olhos do próprio meio teatral e, por consequência, do público. Costumam apresentá-lo apenas como criador de alguns textos. Só o grupo sente, mais do que sabe, o que ele significa.” (BRANDÃO, 1993, p. 22)

      Notamos que, na maioria das montagens brasileiras, a equipe divide as múltiplas tarefas do dramaturgista: pesquisa de campo e teórica; seminários temáticos; escolha e estudo do texto a ser representando; possíveis transcriações e junções de textos teatrais ou de gêneros diversos, e muito mais. Esse expediente se dá seja  seja por falta de verba para a adoção de mais um colaborador, seja por falta de alguém capacitado para tal função, ou por simples ignorância a respeito do dramaturgismo. Nesses casos, para Danan, o grupo todo está encarregado da dramaturgia.


G. E. Lessing e Bernard Dort
     
      Ao ampliar a noção de dramaturgia abarcando também o dramaturgismo, Danan toma como referências, entre outros, G.E. Lessing (1729-1781), em sua Dramaturgia de Hamburgo, e Bernard Dort (1929-1994), principalmente no que se refere à emancipação da representação e ao estado de espírito dramatúrgico.

      Pouco conhecida entre nós, a Dramaturgia de Hamburgo é uma compilação de críticas e reflexões escritas por Lessing no dia-a-dia de seu trabalho no Teatro Nacional de Hamburgo, entre 1767 e 1768. São registros de processos, abarcando a escolha dos textos e seu estudo, a interpretação dos atores, o trabalho da direção, a crítica das montagens. A escolha de Dramaturgia para o título da obra é sintomático, pois além de permitir novos sentidos para o termo, trazia uma intenção política: fundamentar um teatro verdadeiramente alemão, que pudesse se libertar das normas do classicismo - mais aristotélico que Aristóteles, segundo o crítico. Inferimos daí que é também dramaturgia fundamentar um pensamento teatral, um modo de abordar os textos - dramáticos ou teóricos - que seja próprio de determinado contexto.

      Para Danan, dramaturgia é o nome da parte imaterial de um espetáculo, é o pensamento que atravessa a encenação, que a trabalha e se constitui através dela, no cadinho de sua materialidade (DANAN, 2010). É pertinente pensar, então, que, sob certo aspecto, pode-se fazer dramaturgia nacional a partir de um texto estrangeiro. O exemplo vem do próprio TNH. Embora não tenha havido tempo para a criação de peças nacionais no curto período em que atuou, Lessing colaborou colocando-se não como um autor dramático, mas um terceiro homem, intercessor entre o autor e o ator. Promoveu um estudo livre de amarras normativas – leia-se francesas, já que, para ele, as regras não valem por si mesmas, e nem se deve respeitar cegamente as prescrições (rubricas) do autor. As regras valem por sua “dimensão estética e dramatúrgica e, finalmente, sua eficiência”. Ao abordar a eficiência de um texto, o crítico incluía a encenação e o espectador em suas considerações. Incluía a recepção, e “o vai-vem, o entrançamento que se opera sem cessar entre o texto e a representação”, entre a obra e o público daquele tempo e daquele lugar. (Idem, p. 14).

      Hoje, boa parte do trabalho que Lessing desempenhava como dramaturgista é cada vez mais assumido pelo dramaturgo e pela equipe. Notamos que a preocupação com a eficiência de um texto (dramático ou cênico) está presente desde o início dos trabalhos. Na medida em que cenas são criadas, elas são exibidas – primeiro para o próprio grupo, depois em ensaios abertos – avaliadas, reformuladas, até atingirem uma forma que satisfaça, ainda que provisoriamente, os criadores.

      À primeira vista, pode parecer que as notas publicadas por Lessing sobre os espetáculos atinham-se a uma análise da peça como texto escrito. O conceito de encenação ainda não existia, havia, sim, “um efeito de transparência que fazia com que se visse na cena o que se via na peça escrita”. Às vezes aflorava nas análises “a crítica moderna da representação; não ainda escolhas de encenação, mas frequentemente, modos de atuação, de interpretação dos atores, onde poderia ser entrevista uma encenação ainda em gestação” (Idem).  Para Danan, a Dramaturgia de Hamburgo prenuncia o nascimento da encenação, seu desenvolvimento ao longo do século 20, e as fricções entre texto e cena que obrigarão a repensar a própria noção de dramaturgia – temas caros a Bernard Dort.

       A dramaturgia, concebida como uma atividade que se distingue ao mesmo tempo da escrita e da encenação é, para Dort, um estado de espírito, uma prática transversal, possível apenas com a emancipação da representação. Para ele,

“O advento do encenador e a compreensão da representação como lugar próprio da significação (não como tradução ou consecução de um texto) constituíram apenas uma primeira fase [de transformações]. Constata-se hoje uma emancipação progressiva dos elementos da representação e podemos verificar uma mudança em sua estrutura: a renúncia a uma unidade orgânica  prescrita a priori e o reconhecimento do fato teatral como polifonia significante, aberta ao espectador.” (DORT, 1988, p. 178)

            Com isso, a representação não postula mais uma fusão ou uma união das artes -  como pretendiam Richard Wagner (1813-1883) ou E. Gordon Craig (1872-1966) - e o texto não é mais o centro de gravidade da criação teatral. Ocorre, portanto, uma relativa independência dos elementos, a partir de sua equivalência: não só o texto é emissor de sentido, mas também a luz, o espaço, o cenário, os objetos, o figurino, a interpretação e tudo o mais. Há um discurso que percorre cada um deles, paralelamente, o que produz, segundo Dort, um combate pelo sentido, combate em que o espectador é, no final das contas, juiz:

“Portanto, a questão do texto e da cena se encontra deslocado. Não se trata mais de saber o que prevalece, o texto ou a cena. Sua análise, assim como as relações entre os componentes da cena, não precisa ser pensado em termos de união ou subordinação. É uma competição, uma contradição que se instaura diante de nós, espectadores. A teatralidade, então, não é mais tão somente a “espessura de signos” de que falava Roland Barthes. Ela é também o deslocamento desses signos, sua conjunção impossível, seu confronto sob o olhar do espectador desta representação [que é] emancipada [do texto dramático]. (Idem, p. 183)

      Ao retomarmos a proposta de Danan em relação aos dois sentidos básicos da dramaturgia, verificamos que o sentido 1 estaria do lado do texto, o segundo, mais amplo, do lado da passagem do texto à cena. No teatro contemporâneo isso não implica mais numa ordem cronológica, pois a cena pode vir antes do texto dramático ou de um roteiro de ações. Não implica também numa função específica do dramaturgo ou do diretor, já que, segundo Dort, “o trabalho dramatúrgico sobre um texto não é um trabalho para especialista, e sim para todos os responsáveis pelo espetáculo, donde é necessário um 'estado de espírito dramatúrgico”, “uma reflexão sobre as virtualidades” (DORT, 1986, p. 8).

      O estado de espírito dramatúrgico vem substituir o “estado de espírito semiológico”. Este, em vez de estruturar a representação como o confronto dos signos proposto por Dort, procura constitui-la em um sistema de signos milimetricamente codificados, que erguem grades de leitura a fim de controlar a construção do sentido por parte do espectador. (DANAN, 2010, p. 35). A “reflexão sobre as virtualidades”, ao contrário, permite que os signos se multipliquem na medida em que cada criador contribui de maneira singular para a narrativa geral do espetáculo – imbuído que está do estado de espírito dramatúrgico.

            O trabalho de dramaturgia começa antes dos ensaios: na pesquisa e nas proposições iniciais. Em seguida, pode se dar uma dramaturgia de palco, em que o dramaturgo ou dramaturgista escreve a partir dos estímulos propostos pelos demais criadores. Trata-se de “experimentações cênicas, que o olho do dramaturgo (que difere, nessa atividade, do olho do encenador tão somente porque não dirige o trabalho e permanece, então, mais exterior que o 'olhar exterior' daquele) observa, analisa, seleciona, adota, recusa” e retribui em forma de palavras - faladas e escritas (Idem, p.36). No caso de um texto já escrito, o trabalho da equipe consiste em analisar, comparar versões anteriores do texto e de encenações, pesquisar autor e época, a recepção quando da primeira exibição/edição, por exemplo.

            O estado de espírito dramatúrgico assumido por todos nos ensaios foi integrado e assimilado pelo encenador a tal ponto que ele pode se abandonar à dramaturgia em ação que se chama encenação.
           

Referências bibliográficas
BESSON, J-L, KUNTZ, H.  La Dramaturgie de Hambourg - Introduction. In: Théâtre/Public, Gennevilliers, jan-mar 2009, pp.4-8.
BRANDÃO, C. A. Leite. Romeu e Romeu e Julieta : o trabalho do dramaturg ao sabor do barroco mineiro. Máscara. Ribeirão Preto. v.2, n.2, p. 20-22, jun. 1993
DANAN, Joseph. Lectures du texte de théâtre. In: ANRAT.  Le théâtre et l'école : histoire et perspectives d'une relation passionnée. Arles : Actes-Sud, 2002. pp. 154-164
______. Qu'est-ce que la dramaturgie? Arles : Actes Sud, 2010 (Apprendre, 28)
DORT, Bernard.  La représentation emancipée. In: DORT, Bernard. La représentation emancipée – essai.  Arles : Actes Sud, 1988. p. 171-184. (Le temps du théâtre)
______. L’état d’esprit dramaturgique. Théâtre/Public, jan-fev 1986, nº 67, p. 8-12.
NICOLETE, Adélia. Ateliês de dramaturgia: práticas de escrita a partir da integração artes visuais-texto-cena. 2013. Tese (Doutorado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. 
______. Da cena ao texto : dramaturgia em processo colaborativo. 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. 





Artigo publicado originalmente nos Anais da VI Reunião Científica da ABRACE - 2011

Para visualização em pdf, acessar:
http://www.portalabrace.org/vireuniao/pedagogia/1.%20Adelia_Nicolete.pdf

2 comentários:

  1. Artigo de primeira Adélia! Seria maravilhoso que muitas e muitas pessoas o lessem, em especial alguns grupos de teatro que estão "mordendo o próprio rabo" esquecendo-se de nutrir a alma do coletivo com informações e transforma-las em sabedoria... Mas isso é apenas uma percepção a que seu texto me incitou. Apenas uma faceta. Ele vai além! Mas é muito bom ver que nada como a arte fazendo arte! Um abraço, Elaine

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  2. Obrigada pela leitura e pelo comentário, Elaine. É sempre bom contar com interlocutores. beijo grande!

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