quinta-feira, 3 de julho de 2014

Fazer para aprender: a experiência dos ateliês de escrita dramática em língua francesa



Para visualização em pdf acessar:

http://www.slideshare.net/adelianicolete/fazer-para-aprender




Dado o interesse cada vez mais intenso no Brasil por cursos e oficinas de dramaturgia, este artigo apresenta um levantamento de algumas experiências com os chamados ateliês de escrita dramática em língua francesa.  Com base em relatos de condutores de ateliês tais como Daniel Lemahieu, Michel Vinaver, Eric Durnez e Jean-Pierre Sarrazac, será feito um apanhado, ainda que mínimo, de objetivos e condutas com vistas à pesquisa de uma pedagogia da dramaturgia.


            A cada ano aumenta a demanda por cursos e oficinas de formação ou aperfeiçoamento em dramaturgia.[1] Por isso consideramos importante compartilhar nossa pesquisa dos ateliês de escrita dramática em língua francesa com vistas a contribuir para o desenvolvimento de uma pedagogia que atenda às nossas expectativas e também às de um teatro no presente, como considera Jean-Pierre Sarrazac.

            A tradição literária na França mantem vivo o desejo de expressão na linguagem escrita, e dá suporte aos mais diversos tipos de ateliês. Os de escrita dramática são fruto dos movimentos da contracultura na França, quando a soberania do texto foi questionada e o dramaturgo migrou do gabinete para a sala de ensaio. Muitos deles financiados pelo poder público, hoje os ateliês estão presentes inclusive nas universidades e têm à frente um grande número dramaturgos atuantes. Michel Vinaver, Jean-Pierre Sarrazac, Daniel Lemahieu, Eric Durnez são alguns desses profissionais, cuja bibliografia alimenta esta exposição. Eles atuam de forma semelhante, variando apenas em alguns detalhes e de acordo com o público que atendem: dramaturgos iniciantes, já atuantes, ou pessoas que gostam de escrever, independentemente da área em que atuam.
           
Fazer para aprender

            Em seus mais de quarenta anos de existência, os ateliês tem procurado se aproximar das tendências contemporâneas em dramaturgia, afastando-se, com isso, de uma pedagogia nos moldes tradicionais. Segundo Lemahieu, a pedagogia baseada nos cânones e em textos clássicos pode intimidar os escrevedores em vez de estimulá-los, principalmente quando o estudo é feito de maneira normativa. Por isso o condutor de ateliê considera-se um “partejador” de textos e não um professor de dramaturgia. Seu papel é estimular a busca de cada um pelo próprio caminho, pela própria voz, promovendo exercícios que resultem em diversos tipos de escrita, livres de modelos e sempre a partir da prática, donde a máxima “fazer para aprender e não aprender para fazer” (LEMAHIEU, 1992,p. 61).

            As sessões semanais ou quinzenais, em geral em torno de doze, tem de três a quatro horas de duração e se estruturam geralmente em três blocos: proposição, escrita e análise. Na primeira parte dá-se aos doze a quinze participantes o estímulo à escrita. Sarrazac propõe releituras de provérbios e parábolas, mitos e tragédias, por exemplo. Vinaver e Durnez sorteiam personagens, lugares e objetos que devem ser utilizados em um texto. Durnez propõe também improvisações escritas em duplas ou trios, diálogos elaborados “no escuro” por todo o grupo (cada um escreve uma réplica, sem conhecer a anterior), delimita número de palavras para cada frase, sorteia fotos, relações entre personagens. Nessa etapa são colocados também os delimitadores:  tamanho do texto, tempo de escrita, número de réplicas e personagens, etc. Há um sem número de recursos a serem usados ou mesmo criados, o importante é que guardem um caráter lúdico - o que predispõe o participante ao jogo, ao risco e à experimentação, além de favorecer a aceitação futura de uma escrita mais limitada por regras. A par com o lúdico está a clareza. Segundo Lemahieu (1992), as proposições devem ser tão precisas e detalhadas que permitam ao participante até mesmo desobedecer as regras.

            Das propostas iniciais surgem textos breves, escritos em sala na segunda parte do encontro. Podem configurar-se como “teatro processo, teatro documentário, dramaturgia da constatação e do cotidiano, jogo de sonho, parábola, narrativa de vida, melodrama, tragédia, e até entrada de palhaços – e outras formas de tal modo inéditas, que não sei verdadeiramente nomeá-las” comenta Sarrazac, irmanado por Durnez, indicando “a extrema diversidade das 'formas-desvios' possíveis no teatro contemporâneo” (SARRAZAC, 2005, p. 212).
           
Um exercício de escuta

            Na terceira parte da sessão cada um tem asseguradas a leitura de seu texto e a apreciação crítica por parte dos colegas, mesmo em cursos de iniciação. No dizer de Maria Lúcia Pupo, cria-se um “contexto de trocas interindividuais nos quais o processo que leva à escrita é explicitado”, colocando às claras um domínio antes tido como estritamente individual (PUPO, 2005). O autor pode ler ele mesmo ou ouvir seu texto na voz do outro. Pode igualmente falar sobre o processo, os desejos e problemas que identifica no próprio trabalho. Em seguida fala o grupo. São questionamentos, comentários, sugestões, nunca julgamentos.

            Para Vinaver (1992) trata-se de um exercício de escuta – complementar ao da escrita – que permite ao dramaturgo-aprendiz sair do próprio universo e se dirigir ao do outro, rompendo a solidão do ato da escrita, solidificando as relações grupais. Além do que uma observação feita acerca de um texto pode ecoar nos demais e ser ainda mais produtivo que para aquele a quem foi diretamente endereçada (Durnez, 2008).

            Para quem escreve, ouvir o próprio texto enunciado por outra pessoa elucida sonoridades e ritmos, a eficiência da proposta. A análise do grupo permite identificar a distância entre o pretendido e o efetivamente alcançado. O exercício de escuta do autor é respeitar a opinião alheia, sabendo, porém, que tem autonomia para acatá-la ou não. Dessa forma, criam-se condições para que se adquira uma percepção da própria escrita a fim de dominá-la, modificá-la, transformá-la (Lemahieu, 1992).

            Se algumas questões importantes não tiverem sido, o condutor comenta ou esclarece algum aspecto; atenta para poesia, metáforas, uso da língua; dá sugestões, indica leituras, remete a outros textos criados pelo grupo, reforçando a importância da reescrita, em qualquer altura do trabalho.

            De maneira geral escreve-se a analisa-se um texto a cada encontro. Vinaver prefere não ler todos, mas sortear alguns a cada sessão. Os demais, escritos com cópia, são entregues a ele, que traz anotados na sessão seguinte para a reescrita. Na quarta sessão ele pede que cada participante escolha um dos pequenos textos para desenvolver como peça maior e, a partir daí, apresente a cada semana novas versões. Outros condutores preferem trabalhar apenas com formas breves, sendo possível, porém, visualizar as condições necessárias para desenvolver textos maiores.

O lugar da teoria e o papel do acaso

            Tanto quanto a erudição a experiência profissional guia o condutor em seu trabalho. Daí a tranquilidade em adequar a teoria à prática do ateliê ou em reservar momentos de reflexão que não se enquadram nos padrões convencionais. Alguns condutores reservam um breve momento da primeira parte do encontro para discussões acerca de dramaturgia e temas correlatos. Vinaver traz trechos escritos por artistas diversos acerca de seu processo criativo, sobre o papel do acaso na arte, etc. Sarrazac lança mão de seus “tarôs dramatúrgicos”, espécies de cartas que abrigam afirmações ou provocações tais como “Ação: desde já, que tua linguagem seja ação” (SARRAZAC, 2005, p. 206). Lemahieu, por sua vez, expõe logo no primeiro encontro regras de escrita que ele mesmo desenvolveu ao longo da carreira. A de número três, por exemplo, aconselha que a estrutura seja aberta, com réplicas suficientemente claras a ponto de dispensar as rubricas (LEMAHIEU, 1992, p. 53).

            Na maioria dos casos, porém, o próprio texto analisado é que vai suscitar as reflexões teóricas. Durnez tem “na manga” uma série de peças que disponibiliza aos participantes ao notar semelhança entre seus textos e de autores consagrados. Sarrazac prefere peças curtas e contemporâneas, a serem tomada como referência e nunca como modelo.

            Junto do conhecimento e da experiência do condutor encontra-se o acaso. Não se formula rigorosamente um plano de trabalho, uma progressão exata - depende-se do ritmo da turma, do nível de resposta às proposições, do rumo tomado pelos escritos. Durnez recomenda aos participantes que não fechem demasiadamente a estrutura de seus textos, que deem espaço para soluções inusitadas, para reações e rumos imprevistos. Acaso e combinações aleatórias – provocadas pelos sorteios ou pelas sugestões de outrem, por exemplo – podem ser fonte de uma matéria-prima não convencional, instigante para a escrita (PUPO, 2005).

           Ao final do ateliê tem-se uma série de formas curtas que podem ser levadas a público. Sarrazac sugere uma montagem em torno de temas decididos pelo grupo, onde são lidos textos de um ou mais escrevedores, ou do conjunto deles. Vinaver reserva um domingo inteiro para a leitura das peças. Convida diretores e atores para “montar” e criticar os textos e, algumas vezes, chega a publicá-los pela universidade.

           Em todo caso, o objetivo dos ateliês não é a formação de escritores. No dizer de Sarrazac

“Se o participante já é escritor, a oficina é suscetível de fortificar seu trabalho de escrita. Se ele não é escritor e se jamais vier a sê-lo, pelo menos ele terá sido, durante o tempo do exercício, autor de uma ou de várias peças. Experiência que o tornará, certamente melhor leitor, melhor espectador, melhor 'compreendedor' do teatro contemporâneo.” (SARRAZAC, 2005)

            Nosso trabalho tem demonstrado que muitos daqueles que se interessam por um curso de formação em dramaturgia vem de experiências anteriores, principalmente como atores. Uma boa parte não é frequentador assíduo de teatro, nem leitor de peças, portanto, a “simples” vontade de escrever vem antes de qualquer interesse em montagem ou sucesso. O ateliê torna-se, então, um espaço em que “a conexão entre o desejo de escrever e o imaginário é facilitado, e a porção emuladora do próprio grupo ajuda cada um a assumir os riscos, a fazer tentativas” (DURNEZ, 2008, p. 7) – e, quem sabe, a predispor o autor a trabalhar também junto da cena. Ao condutor cabe oferecer condições para que o participante forje suas próprias ferramentas, das quais poderá lançar mão no futuro. Afinal, como diz Durnez à mesma página, “É quando se termina [o ateliê] que se começa”.

Bibliografia

DURNEZ, Eric.  Ecritures dramatiques: pratiques d'atelier.  Belgique : Lansman, 2008.

LEMAHIEU, Daniel. Faire faire la poésie dramatique. Revue d'etudes théâtrales, Louvain-la-Neuve, Belgique, n.1, p. 51- 62, 1992. “Théâtre et université”.

______ (Org.) Ateliers d'écriture dramatique . Théâtre/Public, Gennevilliers, mai-juin 1991, nº 99, pp.22-58.

PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros.  Entre o Mediterrâneo e o Atlântico : uma aventura teatral.  São Paulo : Perspectiva, 2005.

SARRAZAC, Jean Pierre.  A oficina de escrita dramática. Trad. de C. dos S. Rocha.  Educação e realidade. Rio Grande do Sul, v. 30, n. 2, p. 203-215, jul-dez 2005.

VINAVER, Michel. Ateliers d'écriture théâtrale à Paris III e VIII. Revue d'etudes théâtrales, Louvain-la-Neuve, Belgique, n.1, p. 43-50, 1992. “Théâtre et université”.



Adélia Nicolete


(Publicado anteriormente nos Anais do VI Congresso da ABRACE 2010)







[1]   Essa informação se refere ao contexto paulista, embora haja, sim, um aumento de demanda e, consequentemente, de cursos, em outros estados.

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