domingo, 29 de junho de 2014

BR Trans e Hamletmachine - solos de teatro


Silvero Pereira em cena de BR Trans
Foto: divulgação

Em 1987 estreava em São Paulo o espetáculo Hamletmachine, de Heiner Müller. A encenação de Márcio Aurélio propunha uma interpretação solo, a cargo de Marilena Ansaldi. No pequeno Teatro Igreja (há tempos desativado, no bairro do Bixiga), personagens diversos, femininos e masculinos, eram trazidos à cena pela atriz, também bailarina, que dava a cada um uma voz, um corpo e tônus diferentes. Ela era a dona daquela História (a peça propõe uma visitação a fatos e personagens históricos mesclada à fábula shakespereana), não só pela enunciação/interpretação do texto como pela operação de luz e som, e pela proximidade com a plateia.

Passados tantos anos, ainda é vívida para mim a total entrega de Marilena. A princípio comedida e controlada, aos poucos ela era tomada pela loucura, que a impelia a uma movimentação cada vez mais veloz e furiosa - o suor empapando sua roupa e fazendo escorrer a maquiagem. Lembro claramente das inscrições que fazia pelo corpo com o batom vermelho: autosacrifício/martírio dos personagens e também da atriz, naquela entrega despudorada ao público.

Ao assistir recentemente a BR Trans, do Coletivo Artístico As Travestidas, de Fortaleza, foi imediata a remissão ao trabalho de Marilena Ansaldi e de Márcio Aurélio. Escrito a partir de pesquisa do universo transexual, o espetáculo interpretado pelo ator Silvero Pereira retoma e potencializa o famoso “ser ou não ser” hamletiano, além de expor uma máquina social que produz discriminação, medo e violência.

Tal como Marilena, Silvero é um performer e é dono da História: interpreta, dança, canta, encarrega-se da luz e do som gravado, das movimentações de cenário; pesquisou, escreveu e produziu a obra. No entanto, se em Hamletmachine uma das intenções ao monologar o texto talvez tenha sido a metaforização do homem contemporâneo e sua consciência cindida, em BR Trans o conteúdo precipita-se na forma adotada. O transexual, o transformista e a travesti representam, por si só, a pluralidade. Estão em constante movimento, assumem identidades diversas, diferentes papeis/máscaras em casa, na rua, no trabalho, de tal maneira que o fato de o intérprete se desdobrar em várias funções, propõe uma nova camada de leitura. Seu esforço ao cumprir tantas marcações e mudanças em busca de um bom resultado (um dos holofotes falhou na sessão a que assisti) é também a peleja dos personagens retratados e de tantos outros.

Tal como Marilena, Silvero usa a pele como suporte de inscrições: o rosto, maquiado e borrado em sucessivas transformações, o corpo, cartaz onde exibe o nome das personagens que ele dá a conhecer. Ambos se expõem, desnudam-se, entregam-se em queda livre, poeticamente.

Em Hamletmachine, a ironia afiada de Heiner Müller.  Em BR Trans, o poder do deboche. Sob a co-direção de Jesebel di Carli, Silvero alterna as histórias dramáticas com um show de variedades, com direito a aula de dublagem. A tragédia social revisitada (como no texto alemão) – assassinatos, desespero, loucura – é temperada com o humor próprio do tipo de personagem retratado. Debochar de uma situação é um modo de enfrentá-la, de torná-la aparentemente menos grave. E o público ri, quem sabe sem perceber os mecanismos de defesa (ou de ataque) implicados em algumas situações.

Silvero é o dono de sua História e de outras, fruto da pesquisa realizada no Ceará e no Rio Grande do Sul, graças a edital da Funarte. Grande parte do teatro realizado hoje no Brasil é fruto de projetos pessoais, de esforço coletivo. Difícil imaginar a dramaturgia textual de BR Trans como trabalho de um escritor, em gabinete. É uma dramaturgia que nasce necessariamente da cena, ou antes dela, no diálogo entre o pesquisador e as pessoas e ambientes com os quais entrou em contato. Trama de ações que não só das palavras, mas do gesto, da luz; dos cenários, figurinos e objetos; da música, do vídeo, bem como do suor de Silvero Pereira e de toda equipe. Do suor de Márcio Aurélio e Marilena Ansaldi, que mesmo desconhecidos pelo grupo, deixou rastos tão bem marcados em nosso teatro, que eles ressoam no espetáculo da companhia.



Publicado no Caderno Ilustrada
Folha de S. Paulo - sem data registrada - 1987


Mais informações sobre o espetáculo e o projeto acessar:
http://www.projetobrtrans.com

4 comentários:

  1. Ainda na semana passada assisti, aqui em Salvador, aos dois dias (um só não foi suficiente) de apresentação do BR Trans, que veio para o FILTE. Eu já o havia assistido em 2013, quando de sua estreia em Porto Alegre, cidade onde morava àquela altura, e não podia perder a oportunidade de revê-lo. Saí do teatro - como, infelizmente, é raro acontecer - extasiada, acreditando na potência estética e política do fazer teatral contemporâneo. O seu texto, Adélia, indica pontos fundamentais. Me parece que o espetáculo tem uma série de elementos que contribuem tanto para a fruição quanto para a reflexão do espectador e esses elementos são, como você colocou, precipitados do conteúdo, que é o universo transexual. O humor ácido, para não dizer "negro", que é característico das travestis e dos transformistas permite que se fale de temas difíceis como a discriminação e a violência com um mínimo de leveza, tornando-os mais suportáveis, mas não menos críticos, ao espectador. E nesse sentido a música tem um papel fundamental, ela também dando o tom de ironia (particularmente, achei a escolha do repertório muito precisa, tanto do cancioneiro popular quanto a música original que acompanha Silvero em alguns momentos... Além de ser um luxo ter um músico daquela qualidade executando algumas das canções ao vivo).
    A diversidade de identidades/papeis/máscaras que o ator/performer assume em cena e que também guarda relação direta com o universo representado, como bem colocastes, me parece uma estratégia que tem tudo a ver com a chamada contemporaneidade e com o sujeito que habita nela.
    E realmente, falando agora em dramaturgia, também não acho que seria possível a um dramaturgo de gabinete escrever o texto desse espetáculo (tenho muita curiosidade, inclusive, de vê-lo na sua versão por escrito).
    Enfim, é, para mim, um dos melhores espetáculos que já assisti nos últimos tempos.

    Antes de encerrar meu comentário, que já se estende meio demais da conta, rs, eu queria dizer que a essa lista de "melhores espetáculos" (falando do meu ponto de vista de espectadora) acrescentaria, certamente, Luís Antônio - Gabriela, espetáculo dirigido por Nelson Baskerville que aborda basicamente o mesmo universo, mas organizando a narrativa em torno de um único personagem (de inspiração biográfica, Luís Antônio, a Gabriela, foi irmão/irmã do diretor), que dá título à peça. Ali também se juntam delicadeza, humor, crueza e um trabalho notáveis sobre a linguagem e a estética teatrais e sua contemporaneidade.

    Adélia e demais, perdoem-me se me alonguei no comentário! É que vertendo uma primeira olhada pelo blog, deparei-me com o seu próprio comentário sobre o espetáculo de Silvero e acabei me empolgando.
    Mas como isso é bom!

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  2. Nayara, que privilégio poder escrever sobre um espetáculo ao qual se assistiu três vezes. Ainda mais se a gente gostou, como foi o seu caso com BR Trans. Há tantos detalhes a se saborear!

    Obrigada pela sua visita e pela comentário. Venha quando quiser, escreva o quanto achar necessário. Não faço crítica de teatro, apenas escrevo minhas impressões, o que fará dessa nossa conversa algo bastante informal.

    Assisti ao "Luis Antonio - Gabriela" há um bom tempo, de modo que nao me recordo o suficiente para arriscar um comentário responsavel. A impressão que ficou em mim foi de excesso - de informação, de recursos, de atores. Precisaria assistir de novo para definir melhor onde e por que isso se deu. Mas a maioria das pessoas que conheço gostou. Elas não devem ser tão ranzinzas como eu. ;)

    Em tempo: meu mais novo deslumbramento em teatro foi "Incêndios", com o grupo mexicano Tapioca Inn. Mas não tenho condições de escrever a respeito! Ainda estou sob impacto.

    Abraço de boas vindas, Nayara.

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  3. Pois, ao "Luis Antonio - Gabriela" eu só assisti uma vez e já faz um tempo. Apesar de ter gostado muito, entendo a sua impressão de excesso, da qual, puxando bem da memória agora, compartilho. Adoraria ver de novo e poder prestar mais atenção a isso.

    Quanto ao "Incêndios", é o mesmo que Marieta Severo e Aderbal Freire Filho montaram? Ouvi falar muito bem desse espetáculo (dessa montagem, pelo menos). Mas não cheguei a assistir, nem tão pouco ao filme, que também dizem ser muito bom. Quem sabe não aproveito a deixa pra ver agora? :)

    Grande abraço!

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    1. Isso mesmo, Nayara. O "Incêndios" de que falei é o mesmo texto encenado pela Marieta. Também não assisti ao espetáculo brasileiro, infelizmente.
      Consegui baixar o filme da internet e espero ter um tempinho em breve para poder conferir. Parece que é muito bom. Vamos lá? ;)

      Abração também e obrigada pela re-visita.

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