sábado, 12 de julho de 2014

Gertrude Stein (1874-1946)


Gertrude Stein em seu escritório - 1920
Foto: Man Ray


         É  a resistência de Gertrude Stein ao diálogo dramático que faz de suas peças textos precursores das escritas contemporâneas. Desde sua primeira obra para teatro, O que aconteceu, uma peça em cinco atos, Stein abandona as marcas do diálogo (travessões, rubricas distinguindo personagens, separação entre as réplicas), indicando, porém, no subtítulo irônico, a filiação do texto ao gênero dramático. Nas setenta peças que escreveu entre 1913 e 1946, ela usa esse tipo de paradoxo na denominação de seus textos, frustrando as expectativas do leitor, desconstruindo ou recusando cada um dos elementos estruturais do teatro: progressão de uma ação ficcional, separação em atos ou em cenas, existência de personagens definidos. Seu primeiro conjunto de peças Geography and Plays, publicado em 1922, mistura textos descritivos (retratos de pessoas e de povos) com textos para teatro. Mais tarde, em Operas and Plays (1932), o modelo geográfico surge explícito: Stein inventa a “peça-paisagem”. ELast Operas and Playscompêndio publicado postumamente, em 1949, voltando-se por vezes à ficção, ela aprofunda seu trabalho de repetição-variação.

         A característica dominante da peça-paisagem é seu rompimento e sua progressão por “reptation aléatoire”[1]. Grande admiradora de Cézanne, Gertrude Stein desejaria reproduzir na literatura a revolução que aquela pintura havia operado na tela. Em oposição à composição pictórica tradicional, em que as diversas partes convergem para uma ideia ou um ponto central que atrai o olhar, Cézanne  concebeu e realizou composições não hierarquizadas, em que todos os elementos são colocados no mesmo plano. Os diálogos “quebrados” de Stein parecem ser a transposição escrita desse princípio. Eles parecem também influenciados por um outro movimento pictórico, do qual Stein foi uma divulgadora fervorosa: o cubismo. A composição repousa na relação dos elementos entre si, princípio que substitui a troca dialogal:
        
“A paisagem tem sua própria constituição e como afinal de contas uma peça deve também ter sua constituição e relacionar uma coisa a outra e como a história não é o importante visto que nós contamos todas as histórias então a paisagem que não se move mas é sempre relacionada, as árvores às  colinas, as colinas aos campos as árvores umas com as outras não importa qual porção delas com não importa qual céu e também cada detalhe a cada outro, a história não tem importância o quanto amamos contar ou ouvir uma história mas a relação está lá não importa como.”[2]
        
Na peça-paisagem, as palavras se encadeiam por associação de ideias, jogos de sonoridade, ou reduplicação de estruturas sintáticas, como na imagem do trecho a seguir, de A circular play:
        
“The work can you work
And meat
can you meet
And flour
can you flower.”[3]

         As palavras são assim justapostas segundo um dispositivo que evoca a colagem e a escritura poética. Stein cala o diálogo, não atribuindo sequer palavras à  voz/ às vozes. “Podemos até mesmo ter preconceito contra as vozes”, ela declara no mesmo texto.

         O texto steiniano repousa não somente na justaposição de seus elementos, mas também sobre sua 'insistência'. “É expressão humana querer dizer a mesma coisa e insistentemente e nós insistimos com diferentes enfases.”[4] Quando há diálogo, a maneira com que as palavras vão e voltam, e variam ao infinito.

“A questão da repetição é muito importante. É importante porque a repetição é uma coisa que não existe. (…) Se você ouvir atentamente, você diz alguma coisa, a outra pessoa diz alguma coisa, mas a cada vez ela muda um pouco, até que finalmente você a convence, ou não a convence.”[5]

         O mais célebre exemplo de “insistência” é sem dúvida a divisa de Gertude Stein: “a rose is a rose is a rose”.[6] A tautologia engendra paradoxalmente uma abertura do sentido, localizada não somente nas microvariações que o afetam, mas também nos diferentes contextos nos quais a fórmula é repetida. Em Captain Walter Arnold – a play, Gertrude Stein afirmou por outro lado: “Posso explicar como ao repetir duas vezes você muda o significado você na verdade muda o significado. Isto torna a coisa mais interessante.”[7]

         Bem entendido, a aplicação exagerada da repetição pode também provocar um esvaziamento de sentido em proveito do significante e do ritmo do texto. Nas peças de Stein, sua utilização implica em uma progressão textual de tipo lírico, em oposição à evolução da ação dramática. Instilada no diálogo, ela tem a tendência a modificar sua estrutura: a identidade dos locutores é atenuada em proveito de uma certa coralidade, os efeitos de ritmo e de ecolalia substituem a troca de réplicas, não se pode falar propriamente de início, ponto nodal ou encerramento de uma troca dialógica. Assim, em Lista, o ritornelo aparece tanto de uma réplica a outra, quanto no interior de uma mesma réplica:

MARYAS. Maybe I do but I doubt it.
MARTHA. I do but I do doubt it.
MARTHA AND MARYAS. Maybe I do but I doubt it. I do but I do doubt it.[8]

         Por outro lado, muitas vezes a troca é gramatical e sonora mais que semântica. A escritura de Stein é principalmente musical. É por isso que o texto steiniano dificilmente dispensa a leitura em voz alta. Ele evoca os trava-línguas, essas acrobacias verbais que são desafios à articulação, e que se repetem indefinidamente a fim de se apropriar, tropeçando sobre as palavras e tentando múltiplas entonações.

         Desde os anos 1920, Stein radicaliza certos gestos representativos do diálogo contemporâneo. Já podemos falar de um teatro do verbo e da palavra, em que constata-se, com efeito: o desaparecimento do personagem em proveito das entidades vocais ou de ilhotas textuais sem designação de emissor; a primazia da dimensão sonora e rítmica da linguagem; a repetição coral das réplicas, assim como sua ruptura e sua incompletude. Por essas razões, a obra de Stein exige a perseverança tanto do leitor como do espectador. Enquanto o primeiro deve oralizar o texto e orquestrar as vozes na cabeça, o segundo deve aceitar se situar num presente contínuo de um teatro que não é senão linguístico.



CHÉNETIER, Marion, MARTINEZ, Ariane.  Gertrude Stein (1874-1946). In: RYNGAERT, Jean-Pierre. (org) Nouveaux territoires du dialogue.  Arles : Actes Sud-Papiers, 2005.  p. 75-80.


Tradução livre de Adélia Nicolete para uso em sala de aula.


Publicado anteriormente em
http://papelferepedra.blogspot.com.br/
http://www.primeirosinal.com.br/





[1]    Ao contrário da forma dramática, em que as ações progridem por encadeamento de causas e efeitos, por exemplo, na peça-paisagem ela “progride numa fluência aleatória,  por justaposição casual de micro-ações descontínuas” Michel Vinaver (org). Ecritures dramatiques. Essais d'analyse de textes de théâtre, Actes Sud, 1993, p. 905. (N.T.)
[2]    Gertrude Stein, “Théâtre”, in Lectures em Amerique, traduzido [do inglês para o francês] por Claude Grimal, Christian Borgois, 1978, p. 122.
[3]    “A circular play (1920)”, in Las operas and plays. Rinehart, New York [1949], p. 141
[4]    Gertrude Stein, “Portarits et répétition”, in Lectures em Ameriqueop. cit. p. 132
[5]    Gertrude Stein, “Comment l'écrit s'écrit”, ibid., p. 217
[6]    “Objects lie on a table (1922), in Operas and plays, Station Hill Press, Barrytown, 1987, p. 110
[7]    “Captain Walter Arnold (1922)”, in Geography and plays, The University of Winconsin Press, Madison, 1993, p. 260. Trad. para o português de J. C. Guimarães (N.T.)
[8]    “A list (1923)”, in Operas and plays, op. Cit, p. 91-92.

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