quinta-feira, 7 de agosto de 2014

As formas não convencionais e o público de teatro



            Um guia de entretenimento de São Paulo em março de 2012 registra mais de 50 espetáculos teatrais na cidade.[1] Se nos detivermos no perfil de cada um, veremos que a maioria transgride, mais ou menos radicalmente, a estrutura dramática consagrada. Assim, notamos a utilização de recursos tais como ausência de uma história facilmente reproduzível; simultaneidade ou fragmentação de cenas/situações; paralelismo e assincronia das falas, emissão de texto que foge à troca dialógica, ou um diálogo que  parece conversa; trânsito por diferentes tempos e lugares; interlocução com a dança, a música, o cinema, as tecnologias; indefinição, indeterminação ou inexistência de personagens; participação mais concreta do espectador, motivada pela disposição da plateia, pela movimentação no espaço ou pela interação com a cena; o caráter de experiência, de evento ou comunhão, de “presentificação” mais que de representação, e tantos outros. Isso tudo desenvolvido, em grande parte, por coletivos de criação – fator determinante para a liberdade de pesquisa, pelo não atrelamento às exigências de um  mercado que supõe o que vai atrair ou não público e prestígio.

            O que temos notado, porém, é que mesmo com o aumento de trabalhos que fogem a uma estrutura dramática conhecida - e reforçada pelas novelas e pelo (melo)drama cinematográfico – permanece certa resistência a tais iniciativas. Reações semelhantes às que encontramos em certas exposições de artes visuais são hoje recorrentes no teatro, mesmo por parte de colegas: “isso não é arte”, “isso não quer dizer nada”, “faz-se qualquer bobagem e vira arte contemporânea”. Digamos que “teatro contemporâneo” é, para grande parte do público, a definição de um tipo de espetáculo complicado, que não somos capazes de “decifrar” e que, em geral, não diverte. Isso não deixa de ter um fundo de verdade: o “contemporâneo” oferece mesmo alguns obstáculos e cabe a nós, artistas e pesquisadores, oferecer condições para que eles sejam ultrapassados pelo público.

            O filósofo italiano Giorgio Agamben sugere algumas imagens para se referir ao termo “contemporâneo” que podem ajudar nossa reflexão. Fala primeiramente da intempestividade, retomando Nietzsche, que em 1874 publicou Considerações intempestivas, cujo objetivo era “acertar as contas com o seu tempo, tomar posição em relação ao presente.”[2]  “Intempestivo” traz um sentido de inadequação, de algo que não é próprio ou característico do tempo em que ocorre. Portanto, para Nietzsche – e para Agamben – é verdadeiramente contemporâneo aquele que é extemporâneo, que não está perfeitamente ajustado com o tempo presente e, por isso mesmo, é capaz de percebê-lo e apreendê-lo mais do que qualquer outro.[3] É como se o fato de se estar completamente mergulhado no presente e em tudo o que isso implica – permanente atualização - nos tirasse a capacidade de nos posicionarmos frente a ele. Só o conhecemos verdadeiramente quanto dele nos afastamos e sobre ele formulamos nosso pensamento.

            Agamben utiliza também a imagem das trevas do presente. Sugere que se olhe o escuro do próprio tempo e não suas luzes para se identificar o contemporâneo, afinal  “todos os tempos são, para quem deles experimenta a contemporaneidade, obscuros”. É contemporâneo quem é capaz de mergulhar nessas trevas e criar daí a sua obra.[4]  É isso: afastarmo-nos do presente a fim de buscarmos o que há de escuro nele, porque as luzes são o aparente, o óbvio e, por isso, o que é mais fácil de identificar. Portanto, mais do que preconceito ou ignorância, aqueles comentários acerca do teatro contemporâneo revelam que estamos, muitas vezes, identificando a luz, o aparente da obra. E que talvez, para uma melhor fruição, precisemos aprender a identificar o que a obra não revela. Isso se faz, a nosso ver, colocando-nos diante dela sem as lanternas que trazemos sempre conosco: nossas referências e preferências, verdades, certezas, nosso modo de ver, nossos critérios e julgamentos. Mergulhar os olhos nas trevas que a obra nos propõe, aceitando a vertigem, o desconforto, o desequilíbrio, a insegurança e, aos poucos, deixar que ela mesma nos mostre o que traz oculto.

            Sabemos o quanto há de relativo nessa proposição. O sucesso maior ou menor desse mergulho vai depender da predisposição do espectador e de sua formação, da mediação com a obra, do exercício e sua frequência etc. Trata-se, porém, de uma prática necessária em relação à arte contemporânea.

            A nosso ver existem três caminhos principais e coligados para que o contato com o teatro não convencional se torne uma prática menos dolorosa e mais efetiva. Um deles é a abertura do processo criativo ao espectador e a desmistificação do fazer artístico. Grande parte das vezes obra e processo são indissociáveis. Pensamos que uma formação de público só se efetiva com o compartilhamento da criação, pois quando se conhecem as bases, as inquietações e propostas que movem o trabalho, as referências práticas e teóricas do grupo, por exemplo, pode-se chegar a uma compreensão maior do resultado.[5] Paralelamente, os Festivais e Mostras tem papel fundamental na oferta de uma diversidade de produções, cursos e seminários com vistas à ampliação de referências e à reflexão, tanto por parte dos artistas quanto do público em geral. E aliamos a essas duas vias a constante reflexão teórica e sua divulgação em publicações especializadas e meios acessíveis ao espectador em geral – a internet tem sido grande aliada nesse sentido.

            Quem sabe, numa ação conjunta entre artistas, organizadores de eventos e pesquisadores possamos conquistar cada vez mais espectadores que fruam, destemida e apropriadamente, de um teatro não convencional.


publicado originalmente em
papelferepedra.blogspot.com.br 





[1]     Divirta-se. O Estado de S. Paulo. 23/3 a 29/3/2012, p. 67 a 82
[2]     AGAMBEN, Giorgio.  O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. de Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó : Argos, 2009. p. 57
[3]     Idem, p. 58.
[4]     Idem, p. 63.
[5]    Com relação ao tema recomendamos a leitura de Patrice Pavis.  A análise dos espetáculos. São Paulo : Perspectiva, 2003.

3 comentários:

  1. O não convencional e o seu lado misterioso que tanto nos oferece em reflexão e formação do pensamento crítico! Sempre um desafio - cortante, ousado, mas sempre um desafio! Pode me chamar para ir junto sempre que quiser! abraços! Paz e bem! Elaine

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  2. Nós e as aventuras teatrais, hein, Elaine? A última foi em Praga! Mas é melhor esquecê-la! Beijos!

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  3. Misericórdia!!! rsrs Querida, apesar de tudo, eu lembro sempre da menina girando...rsrsrs beijos

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