Um
guia de entretenimento de São Paulo em março de 2012 registra mais de 50
espetáculos teatrais na cidade.[1]
Se nos detivermos no perfil de cada um, veremos que a maioria transgride, mais
ou menos radicalmente, a estrutura dramática consagrada. Assim, notamos a
utilização de recursos tais como ausência de uma história facilmente
reproduzível; simultaneidade ou fragmentação de cenas/situações; paralelismo e
assincronia das falas, emissão de texto que foge à troca dialógica, ou um
diálogo que parece conversa; trânsito
por diferentes tempos e lugares; interlocução com a dança, a música, o cinema,
as tecnologias; indefinição, indeterminação ou inexistência de personagens;
participação mais concreta do espectador, motivada pela disposição da plateia,
pela movimentação no espaço ou pela interação com a cena; o caráter de
experiência, de evento ou comunhão, de “presentificação” mais que de
representação, e tantos outros. Isso tudo desenvolvido, em grande parte, por
coletivos de criação – fator determinante para a liberdade de pesquisa, pelo
não atrelamento às exigências de um
mercado que supõe o que vai atrair ou não público e prestígio.
O
que temos notado, porém, é que mesmo com o aumento de trabalhos que fogem a uma
estrutura dramática conhecida - e reforçada pelas novelas e pelo (melo)drama
cinematográfico – permanece certa resistência a tais iniciativas. Reações
semelhantes às que encontramos em certas exposições de artes visuais são hoje
recorrentes no teatro, mesmo por parte de colegas: “isso não é arte”, “isso não
quer dizer nada”, “faz-se qualquer bobagem e vira arte contemporânea”. Digamos
que “teatro contemporâneo” é, para grande parte do público, a definição de um
tipo de espetáculo complicado, que não somos capazes de “decifrar” e que, em
geral, não diverte. Isso não deixa de ter um fundo de verdade: o
“contemporâneo” oferece mesmo alguns obstáculos e cabe a nós, artistas e
pesquisadores, oferecer condições para que eles sejam ultrapassados pelo público.
O
filósofo italiano Giorgio Agamben sugere algumas imagens para se referir
ao termo “contemporâneo” que podem ajudar nossa reflexão. Fala primeiramente da
intempestividade, retomando Nietzsche, que em 1874 publicou Considerações
intempestivas, cujo objetivo era “acertar as contas com o seu tempo, tomar
posição em relação ao presente.”[2] “Intempestivo” traz um sentido de
inadequação, de algo que não é próprio ou característico do tempo em que
ocorre. Portanto, para Nietzsche – e para Agamben – é verdadeiramente
contemporâneo aquele que é extemporâneo, que não está perfeitamente
ajustado com o tempo presente e, por isso mesmo, é capaz de percebê-lo e
apreendê-lo mais do que qualquer outro.[3]
É como se o fato de se estar completamente mergulhado no presente e em tudo o
que isso implica – permanente atualização - nos tirasse a capacidade de nos
posicionarmos frente a ele. Só o conhecemos verdadeiramente quanto dele nos
afastamos e sobre ele formulamos nosso pensamento.
Agamben utiliza também a imagem das trevas
do presente. Sugere que se olhe o escuro do próprio tempo e não suas luzes
para se identificar o contemporâneo, afinal
“todos os tempos são, para quem deles experimenta a contemporaneidade,
obscuros”. É contemporâneo quem é capaz de mergulhar nessas trevas e criar daí
a sua obra.[4] É isso: afastarmo-nos do presente a fim de
buscarmos o que há de escuro nele, porque as luzes são o aparente, o óbvio e,
por isso, o que é mais fácil de identificar. Portanto, mais do que preconceito
ou ignorância, aqueles comentários acerca do teatro contemporâneo revelam que
estamos, muitas vezes, identificando a luz, o aparente da obra. E que talvez,
para uma melhor fruição, precisemos aprender a identificar o que a obra não
revela. Isso se faz, a nosso ver, colocando-nos diante dela sem as lanternas
que trazemos sempre conosco: nossas referências e preferências, verdades,
certezas, nosso modo de ver, nossos critérios e julgamentos. Mergulhar os olhos
nas trevas que a obra nos propõe, aceitando a vertigem, o desconforto, o desequilíbrio,
a insegurança e, aos poucos, deixar que ela mesma nos mostre o que traz oculto.
Sabemos o quanto há de relativo
nessa proposição. O sucesso maior ou menor desse mergulho vai depender da
predisposição do espectador e de sua formação, da mediação com a obra, do
exercício e sua frequência etc. Trata-se, porém, de uma prática necessária em
relação à arte contemporânea.
A nosso ver existem três caminhos
principais e coligados para que o contato com o teatro não convencional se
torne uma prática menos dolorosa e mais efetiva. Um deles é a abertura do
processo criativo ao espectador e a desmistificação do fazer artístico. Grande
parte das vezes obra e processo são indissociáveis. Pensamos que uma formação
de público só se efetiva com o compartilhamento da criação, pois quando se
conhecem as bases, as inquietações e propostas que movem o trabalho, as
referências práticas e teóricas do grupo, por exemplo, pode-se chegar a uma
compreensão maior do resultado.[5]
Paralelamente, os Festivais e Mostras tem papel fundamental na oferta de uma
diversidade de produções, cursos e seminários com vistas à ampliação de
referências e à reflexão, tanto por parte dos artistas quanto do público em
geral. E aliamos a essas duas vias a constante reflexão teórica e sua divulgação
em publicações especializadas e meios acessíveis ao espectador em geral – a
internet tem sido grande aliada nesse sentido.
Quem sabe, numa ação conjunta entre
artistas, organizadores de eventos e pesquisadores possamos conquistar cada vez
mais espectadores que fruam, destemida e apropriadamente, de um teatro não
convencional.
publicado originalmente em
papelferepedra.blogspot.com.br
[1] Divirta-se.
O Estado de S. Paulo. 23/3 a 29/3/2012, p. 67 a 82
[2] AGAMBEN,
Giorgio. O que é o contemporâneo? e
outros ensaios. Trad. de Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó : Argos, 2009.
p. 57
[3] Idem,
p. 58.
[4] Idem,
p. 63.
[5] Com
relação ao tema recomendamos a leitura de Patrice Pavis. A análise dos espetáculos. São Paulo :
Perspectiva, 2003.
O não convencional e o seu lado misterioso que tanto nos oferece em reflexão e formação do pensamento crítico! Sempre um desafio - cortante, ousado, mas sempre um desafio! Pode me chamar para ir junto sempre que quiser! abraços! Paz e bem! Elaine
ResponderExcluirNós e as aventuras teatrais, hein, Elaine? A última foi em Praga! Mas é melhor esquecê-la! Beijos!
ResponderExcluirMisericórdia!!! rsrs Querida, apesar de tudo, eu lembro sempre da menina girando...rsrsrs beijos
ResponderExcluir